Em todo mês de fevereiro (ou, em determinadas ocasiões, em março), é praticamente impossível para qualquer cidadão brasileiro ficar indiferente ao carnaval. Muitos de nossos compatriotas aproveitam intensamente os festejos nas ruas, clubes e sambódromos. Mesmo aqueles que não gostam acabam sendo afetados pelo carnaval de alguma maneira, seja fugindo da folia, indo para retiros ou simplesmente passando os dias de feriado em casa. Poucas questões polarizam tanto nossa sociedade quanto o carnaval. Argumentos pró e contra a festa invadem as rodas de conversa nessa época.
Na grande mídia, além das tradicionais notícias sobre os principais festejos carnavalescos Brasil afora, tiveram destaque as homenagens a Beth Carvalho, os cerca de 8 bilhões de reais injetados na economia brasileira durante o reinado de Momo, o assédio do apresentador Dudu Carmargo à cantora Simony (em plena transmissão ao vivo pela Rede TV!) e a cobertura do carnaval dos famosos em programas de fofocas (aliás, em tempos de intimidade compartilhada nas redes sociais ao alcance de todos, saber o que famosos fizeram já não é mais tão interessante para os alcoviteiros de plantão).
Já a esquerda identitária, com toda a paranoia politicamente correta que lhe é peculiar, tentou proibir homens de se vestirem de mulher, problematizou se a fantasia de indígena da atriz Alessandra Negrini era apropriação cultural ou não e acusou as letras de marchinhas clássicas, como Maria sapatão, O teu cabelo não nega e Cabeleira do Zezé de incentivarem o preconceito às minorias.
Para se ter uma ideia sobre como a pressão de setores que defendem o controle e a vigilância em relação à fantasia alheia esteve tão forte, segundo matéria do jornal O Globo, houve até uma campanha para que o tradicional bloco carioca Cacique de Ramos não se apresentasse este ano, pois seus integrantes geralmente se vestem de índio.
Nas redes sociais – espaço onde, em tese, não há limites para a liberdade de expressão -, internautas demonstraram todo o seu repúdio em relação à maior festa popular do Brasil a partir de postagens como “Odeio carnaval: micareta, urina, vômito, álcool e mina fácil. Junta tudo que não presta em 3 dias”, “Quem quer ficar seminua na rua não pode reclamar do machismo” e “E se o número de pessoas em um megabloco, por exemplo, fosse protestar na porta da CEDAE?”.
Engrossando o coro de discursos preconceituosos, um professor rondoniense escreveu em seu blog que o carnaval é o “ópio dos brasileiros”. Segundo ele, “travestida de cultura popular, essa ‘droga’ [referindo-se ao carnaval] tem o poder de amortecer a realidade e de escamotear as agruras de um povo sofrido e espoliado, [levando] uma multidão às ruas num delírio jamais visto numa sociedade civilizada”.
Por sua vez, a psicóloga ultraconservadora Marisa Lobo, conhecida defensora da “cura gay”, afirmou em entrevista ao site Pleno.News que o “carnaval é usado para alienar seus admiradores e promover promiscuidade, travestido de festa turística e cultural. O foco exclusivo é o ativismo contra valores e agora contra governos que não apoiam suas causas. […] Já deixou de ser festa para virar lacração subversiva e esquerdopata”.
No entanto, é importante desfazer algumas falácias sobre o carnaval. Quem associa essa festa à alienação popular desconhece a história brasileira. Ou, como afirmou o jornalista, roteirista e escritor Felipe Lucena, “alienado é quem só vê alienação no carnaval”. Só o fato de inverter a ordem social durante alguns dias já faria do carnaval um evento potencialmente subversivo (no melhor sentido do termo). Mesmo com tantos ataques de alguns setores religiosos e tentativas de mercantilização, o carnaval ainda é a festa em que o protagonismo pertence ao povo.
Porém, essa questão é muito mais ampla. Trata-se de um período marcado por vários protestos. Conforme apontou o historiador, pesquisador e compositor Luiz Antonio Simas, “o carnaval é uma festa que satiriza, que lida com a galhofa, com o simulacro, então. Não é um momento de alienação, porque essa sempre foi uma festa que esteve relacionada à política, seja como adesão ou como resistência”. Indivíduos vão, o carnaval fica. Lembrando Nelson Sargento, “o samba agoniza, mas não morre”.
Ao longo do tempo, marchinhas e sambas-enredos foram importantes instrumentos de conscientização. No longínquo século XIX, o carnaval já era uma festa que problematizava a abolição da escravatura e as disputas por terras. Nos anos 1950, a marchinha Retrato do velho, interpretada por Francisco Alves, fazia campanha pela popular candidatura de Getúlio Vargas à presidência da República, algo que as elites da época insistiam em impedir (qualquer semelhança com o atual contexto de perseguição a Lula não é mera coincidência). O precário abastecimento de água no Rio de Janeiro inspirou Paquito e Romeu a comporem os versos “tomara que chova três dias sem parar, a minha grande mágoa é lá em casa não ter água e eu preciso me lavar”. A famosa Mulata bossa nova é uma homenagem a Vera Lúcia Couto, vítima de racismo durante um desfile de Miss Brasil.
Em 1982, no clássico Bumbum, paticumbum, prugurundum, o Império Serrano criticava a espetacularização do carnaval. Nessa mesma década, a Mangueira cantou o que a hipocrisia cotidiana insiste em esconder: denunciou que o negro, apesar de livre do açoite e da senzala, está preso à miséria da favela. Já o desfile da Paraíso do Tuiuti, há dois anos, conseguiu explicar o que muitos sociólogos ainda não entenderam: escancarou para o grande público todos os recentes ataques à democracia brasileira.
Neste ano, comprovando o caráter de engajamento político da maior festa popular do país, logo na primeira noite de desfiles na Marquês de Sapucaí, a Acadêmicos de Vigário Geral apresentou um palhaço gigante com uma faixa presidencial, fazendo sinal de arma com a mão. Seguindo essa linha, com o verso “não tem futuro sem partilha, nem messias de arma na mão”, a Mangueira deixou o seu recado em relação à escalada do autoritarismo e ao empoderamento das forças de repressão por parte do governo federal. Mas o engajamento mangueirense não parou na letra do samba. Em uma oportuna provocação, a verde-rosa questionou em seu desfile: e se Jesus tivesse nascido nos dias de hoje? Negro, pobre, favelado, indígena, LGBT ou mulher? Como ele seria tratado pelas classes mais abastadas, pela polícia e pelos “profetas da intolerância”? A escola fundada por Cartola ainda jogou confetes no autointitulado “cidadão de bem”, estampando em suas alas as frases “bandido bom é bandido morto” e “vai tacar pedra?” (em referência à comunidade LGBT). Não deu outra: a transmissão da Rede Globo minimizou o caráter de crítica social do desfile da Mangueira e a escola foi intensamente atacada pelas milícias digitais. No UOL, o colunista Mauricio Stycer enfatizou que Alex Escobar e Fátima Bernardes, apesar de citarem o movimento feminista, em momento algum mencionaram os versos mais polêmicos do samba mangueirense e “a presença de Humberto Carrão, um ator da Globo, no papel do Cristo revoltado com o comércio da fé, também não estimulou a equipe da emissora a algum comentário mais ousado”.
No carnaval de rua paulista teve o bloco Fora Bolsonaro. Também na maior cidade do país, de acordo com matéria do Brasil 247, a deputada federal Tabata Amaral foi alvo de críticas por ter votado a favor da reforma da Previdência. Em Belo Horizonte, um bloco promoveu a inclusão de pessoas com necessidades específicas (indivíduos historicamente segregados em boa parte dos espaços sociais). Ainda na capital mineira, o bloco Quem deu, deu. Quem não deu, não Damares ironizou a medieval campanha de abstinência sexual proposta pela ministra Damares Alves. Do Recife saiu o bloco Me tira da foto, Regina, em alusão aos atores e atrizes que solicitaram a Regina Duarte que suas imagens fossem retiradas de uma postagem em apoio ao governo federal.
Diante dessa realidade, não foi por acaso que até a reacionária revista Veja anunciou que 2020 será marcado como “o carnaval da resistência, o mais político dos últimos anos”. “Exageros verbais e o conservadorismo das alas evangélica e ideológica do governo alimentam os protestos dos foliões nos blocos e avenidas”, destacou a publicação da Editora Abril. Já para a Gazeta do Povo – uma espécie de “imprensa oficial” do governo Bolsonaro, assim como Record e SBT -, “quem politiza o carnaval é ruim da cabeça ou doente do pé”. Por falar em Record, a emissora do bispo Edir Macedo deu pouca atenção às festividades carnavalescas em sua programação. Todos os grandes canais de televisão, sem exceção, negligenciaram as manifestações contra o governo que ocorreram em todo o país (não é difícil supor que, se tais protestos fossem relacionados a políticos de esquerda, as coberturas seriam bastante diferentes). Ou seja, para se ter uma visão mais ampla sobre o que aconteceu nos quatro dias de folia, foi preciso recorrer às redes sociais e à mídia alternativa.
Além dos argumentos ideológicos e das tentativas de despolitizar a festa mais popular do Brasil, há as justificativas econômicas contra o carnaval. Muitos afirmam que, se o poder público cancelasse os festejos carnavalescos, teríamos mais verbas para áreas como saúde e educação. Não por acaso, um desses vídeos fakes que circularam nas redes sociais nos últimos dias apontava que as reações negativas ao governo eram esperadas, pois “Bolsonaro não destinou milhões e milhões de reais para uma festa carnavalesca. Ele preferiu destinar para hospitais, escolas e segurança. É natural que venham escolas de samba o criticar. Afinal, secou a mamata”.
Ora, qualquer pessoa que entenda minimamente sobre finanças públicas e não construa seu conhecimento a partir de conteúdos presentes em grupos de WhatsApp sabe que o montante arrecadado nos quatro dias de carnaval é bastante superior aos recursos investidos. Portanto, o carnaval é altamente rentável para a coletividade.
Evidentemente, não gostar de carnaval é um direito que deve ser respeitado. Ao contrário do que cantava Dorival Caymmi, quem não gosta de samba também pode ser bom sujeito.
No entanto, estragar a festa alheia ou militar pelo fim do carnaval, torcendo para que “chova quatro dias sem parar”, não são apenas atos egoístas: significa negar um dos únicos momentos de alegria ao (sofrido) povo brasileiro.
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Francisco Fernandes Ladeira é mestre em Geografia pela UFSJ. Autor dos livros A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas pedagógicas e imaginários discentes (parceria com Vicente de Paula Leão) e 10 anos de Observatório da Imprensa: a segunda década do século XXI sob o ponto de vista de um crítico midiático (em processo de edição), ambos pela editora CRV.