Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A “desprofissionalização” e a “desinstitucionalização” no jornalismo da era digital

(Foto: Freepik)

É público e notório que, até agora, tanto a academia quanto as corporações midiáticas privilegiaram o estudo do jornalismo a partir do que acontece dentro das redações, mas a era digital está provocando o surgimento de uma nova realidade cujas consequências vão abalar ainda mais o já complicado universo jornalístico.

As tecnologias digitais deram às pessoas o poder de publicar dados, fatos, eventos e opiniões, tornando-as coprodutoras de informações em sites, blogs e redes sociais. A quebra do monopólio jornalístico na captura, edição e disseminação de notícias pôs em xeque a chamada “centralidade das redações” na produção de informações e gerou o início de dois processos batizados com nomes complicados: “desprofissionalização” e “desinstitucionalização”.

Ambos podem levar o jornalismo a ser visto, no futuro, muito mais como um valor atemporal do que uma profissão ou uma instituição dependentes de conjunturas tecnológicas e econômicas. O jornalismo como um padrão de comportamentos humanos, parecido com a ética, resulta da iniciativa de pesquisadores da área da etnografia e da antropologia, segundo os quais o estudo dos processos de produção de notícias já transbordou o ambiente das redações e se expandiu para o chamado espaço público formado pelos diferentes segmentos da sociedade.

Os etnólogos e antropólogos, de certa forma, “invadiram” a área acadêmica antes exclusiva do jornalismo ao estudar como as pessoas comuns passaram a interferir no processo de produção de informações jornalísticas. Essa “invasão” é particularmente visível em temas como produção de notícias locais e hiperlocais, bem como no acompanhamento da disseminação de dados, fatos e eventos através das redes sociais. No caso da informação hiperlocal, o espaço geográfico mais reduzido permitiu que os etnólogos e antropólogos pudessem achar elementos para o que os professores britânicos Andy Williams e David Harte definiram como “desprofissionalização” do jornalismo.

Traduzindo em miúdos, a expressão está relacionada à diluição da perspectiva profissional do jornalismo, ou seja, a atividade deixa de ser caracterizada por um conjunto de normas que a distinguem de outras atividades. A separação entre jornalistas e não jornalistas tende a se tornar cada vez mais tênue e, com ela, também as diferenças entre profissionais e não profissionais, conhecidos como praticantes de atos jornalísticos ou jornalistas amadores. Não se trata de eliminar direitos legais ou normas corporativas, mas de reconhecer as consequências de transformações tecnológicas que alteraram a natureza da atividade jornalística da mesma forma que digitalização e automação alteraram o exercício de outras profissões, como biblioteconomia e contabilidade.

A plataforma Science Direct, da empresa Elsevier, define a desprofissionalização ou deprofissionalização como o processo de perda do monopólio por um determinado grupo de profissionais sobre os conhecimentos, ética e normas operacionais numa atividade específica. Ainda segundo a Science Direct, a desprofissionalização segue três parâmetros:
Quando as habilidades e conhecimentos para o exercício da profissão tornam-se acessíveis a um grande número de pessoas. É o que aconteceu depois que a internet massificou o uso de programas para produção e publicação de notícias;
Debilitação do controle estatal sobre o exercício da profissão e também do enfraquecimento do poder dos sindicatos de normatizar a atividade;
A excessiva burocratização surgida a partir da criação de grande quantidade de regras e limitações ao exercício da profissão.

O fim do “quarto poder”

Todo o conjunto de normas que rege atualmente a profissão de jornalista está baseado na produção de notícias e no acesso exclusivo à atividade por parte de pessoal formado em cursos universitários ou com reconhecida experiência prática adquirida ao longo dos anos. Esses critérios se tornaram menos rígidos quando personalidades e pessoas de notório saber passaram a exercer o papel de formadores de opinião em veículos jornalísticos. Tornaram-se ainda mais tênues quando pessoas comuns passaram a funcionar como jornalistas na internet, fazendo com que a fronteira entre profissionais e não profissionais perdesse a rigidez da era analógica. Estamos caminhando para uma nova definição do que é ser jornalista. Tudo ainda é muito incerto, mas a única coisa que parece segura é que o modelo vigente até agora está fadado a virar peça de museu.

O jornalismo como instituição enfrenta um processo de transformação similar ao que afeta o caráter profissional da atividade. Para que o jornalismo assumisse caráter profissional, ele precisaria ser exercido no contexto de uma instituição capaz de normatizar a produção, edição e publicação de notícias. O formato institucional que predominou a partir do momento em que o jornalismo passou a ser um negócio, em meados do século XIX, recebeu o nome de imprensa.

Mudanças na teoria e na prática do profissionalismo jornalístico inevitavelmente têm repercussões no formato institucional que ampara e potencializa o exercício da atividade noticiosa. À medida que o jornalismo passa a ser exercido também por profissionais autônomos ou por ativistas da notícia, a imprensa deixa de ser o formato hegemônico no contexto informativo. Isso afeta diretamente ideias como a de um “quarto poder” ou da imprensa como o “cão de guarda” de governos e empresas.

A desinstitucionalização do jornalismo não implica o desaparecimento da imprensa. Ela continuará existindo porque atende às necessidades de um determinado nicho no sistema informativo, como é o caso dos grandes jornais especializados em noticiário internacional e em grandes reportagens, por exemplo. Mas a instituição imprensa perderá o seu caráter hegemônico num mundo onde os fluxos de informação tendem a ser cada vez mais descentralizados e diversificados. Nessas condições, o conceito de “quarto poder”, encarregado de vigiar os três outros (Executivo, Legislativo e Judiciário), perde a força política que o caracterizou no passado. A defesa dos interesses dos cidadãos começa agora a ser praticada, também, por uma miríade de novas instituições formadas por sites, blogs e usuários de redes sociais. A imprensa, antes um ator de ponta na função de watchdog (cão de guarda), passa agora a ser mais um agente na defesa dos interesses do cidadão digital.

Publicado originalmente no site objETHOS.

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Carlos Castilho é jornalista profissional, colaborador do objETHOS e do Observatório da Imprensa.