Por todos os motivos, é muito bem-vinda a criação do Conselho Público de Comunicação da TV Câmara Taubaté. É uma iniciativa única no país, por seu caráter deliberativo e em razão de conferir peso majoritário à sociedade civil na composição de seu plenário, que em última análise pode intervir na programação e, se for o caso, emitir voto de desconfiança a integrantes da direção executiva da emissora. Se essas particularidades fossem apenas de um manifesto de boas intenções, estaríamos no pior dos mundos; mas, aqui, a vontade foi além do discurso e a existência da TV e do Conselho resultou institucionalizada por iniciativa da Câmara Municipal de Taubaté (SP).
Resolução 138/2009
(…)
Art. 5º O Conselho Público de Comunicação da TV Câmara Taubaté será composto da seguinte forma:
I – um representante da Mesa Diretora da Câmara Municipal, escolhido por eleição direta entre os membros da Mesa;
II – um representante dos servidores efetivos da área de Comunicação da Câmara Municipal, escolhido por eleição direta entre os servidores efetivos da emissora;
III – um representante dos servidores efetivos da Câmara Municipal, escolhido por eleição direta entre os servidores efetivos da Câmara;
IV – um representante de veículo de comunicação escrita, radiofônica e televisiva local;
V – quatro membros indicados por entidades da sociedade civil e instituições;
VI – diretor da TV Câmara Taubaté.
§ 1º A sociedade será representada no Conselho por quatro entidades de âmbito local, com o seguinte perfil:
I – instituição acadêmica atuante na área de pesquisa de comunicação social;
II – entidade representativa dos trabalhadores em atividades de comunicação social;
III – entidade da sociedade civil dedicada à defesa da democratização dos meios de comunicação, à conscientização política e à promoção da cidadania.
IV – instituição local de defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, ou a instituição local de orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, aos necessitados.
Quero crer que os senhores vereadores e vereadoras têm a exata consciência da importância do passo que deram, sobretudo num cenário – o da radiodifusão – que no Brasil ainda não conseguiu atingir a maturidade advinda de marcos regulatórios isonômicos e socialmente legitimados. O fato é que a tradição da administração pública brasileira no manejo das políticas públicas de radiodifusão foi historicamente deformada pela utilização desabrida de concessões e outorgas para composições políticas e manutenção de privilégios.
Se na república velha uma poderosa moeda de troca eram os cartórios e as benesses da legislação sob medida, na república novíssima os canais de radiodifusão assumiram essa preponderância – quanto mais não fosse pela condição de centralidade que a mídia ocupa na vida das sociedades no geral e dos cidadãos e cidadãs, em particular.
Outra história
O momento capital dessa deformação histórica deu-se no âmbito do Congresso Constituinte, em especial na discussão e votação da duração do mandato do então presidente José Sarney. Para garantir de cinco anos na Presidência, um dos seus principais operadores políticos, o senador Antonio Carlos Magalhães (1927-2007), então titular do Ministério das Comunicações, comandou farta distribuição de concessões de emissoras de rádio e TV a políticos com e sem mandato, ou a seus prepostos. Foram exatas 1.028 concessões, num período de três anos. Num ambiente regulatório que se reportava à Lei Geral de Telecomunicações, de 1962 – ainda hoje, quarenta e sete anos depois, produzindo efeitos –, o que parecia uma festa virou farra, verdadeira orgia.
Um parênteses. Em 2005, o Instituto Projor, entidade mantenedora do Observatório da Imprensa, produziu a pesquisa ‘Concessionários de radiodifusão no Congresso Nacional: legalidade e impedimento‘ [rolar a página], conduzida pelo professor Venício A. de Lima, aposentado da UnB e colunista do Observatório. Foram então analisados 762 processos de renovação e outorga de concessões de radiodifusão. O levantamento mostrou que entre 2003 e 2004, 51 dos 513 deputados federais eram controladores diretos de canais de radiodifusão, ao arrepio do artigo 54 da Constituição, que proíbe parlamentares com mandato ‘firmar ou manter contrato’, ‘aceitar ou exercer cargo, função ou emprego remunerado’ em empresa concessionária de serviço público – como é o caso das emissoras de rádio e de TV. E mais: boa parte dos membros da Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados (CCTCI) são – e ainda hoje são – eles próprios, concessionários de radiodifusão, o que desnuda um clamoroso conflito de interesses. Tamanha a permissividade, e nossa pesquisa mostrou isso, que no período estudado dois deputados integrantes da CCTCI chegaram a votar favoravelmente a renovação de suas próprias concessões…
Esta pesquisa subsidiou uma representação do Instituto Projor junto à Procuradoria Geral da República, solicitando a instauração de medidas judiciais cabíveis. O processo ainda está em andamento.
Em 2007 realizamos nova pesquisa, também coordenada por Venício A. de Lima, com Cristiano Aguiar Lopes, dessa vez focada nas rádios comunitárias, e ali detectamos a ocorrência de um coronelismo eletrônico de novo tipo (ver ‘Rádios comunitárias: coronelismo eletrônico de novo tipo (1999-2004)‘. Mas esta é uma outra história.
Em nome de quem
Note-se que a Constituição de 1988 mudou a regra imperial então vigente, transferindo do presidente da República para o Congresso Nacional a decisão sobre a outorga de concessões de radiodifusão. O que naquele momento sugeria um avanço esbarrou na falta de regulamentação de vários dispositivos da chamada Constituição Cidadã. Registre-se que o Capítulo 5, o ‘Da Comunicação Social’, foi o que mais polêmica provocou, primeiro nas comissões temáticas, depois na Comissão de Sistematização e, finalmente, no plenário do Congresso Constituinte.
Um dos grandes avanços contemplados no texto constitucional previa a instalação do Conselho de Comunicação Social, que nem de longe se assemelhava às funções de órgão regulador, como originalmente fora concebido. No processo de negociação parlamentar, transmudou-se em órgão tão somente consultivo, vinculado ao Senado Federal. Mesmo assim, esvaziado, o Conselho só começou a funcionar em 2002 – quatorze anos depois.
Curiosamente, a cobrança pela instalação do Conselho de Comunicação Social é a manchete da primeira edição na internet do Observatório da Imprensa, de abril de 1996. Curiosidade perversa, porque depois uma primeira gestão animada e profícua, sob a presidência do jurista José Paulo Cavalcanti, o CCS passou a sofrer boicotes vários até cair na mais completa inatividade. Pasmem: faz três anos que o Conselho sequer se reúne, esvaziado por interferência direta do senador Sarney, ele próprio um poderoso radiodifusor em seu estado. De resto, este é um péssimo exemplo que o Conselho de Comunicação da TV Câmara Taubaté deve liminarmente rejeitar.
É na contramão desse processo nada edificante que merece relevo a atitude desta Casa em conferir à TV Câmara um Conselho Público de Comunicação de caráter deliberativo. Haverá muito a ser feito, é ponto pacífico, e em mais de uma circunstância deverá ocorrer a sensação de se estar construindo um avião em pleno vôo. Ainda assim será importante reiterar: é muito bem-vinda a constituição do Conselho. A TV Câmara Taubaté só terá a ganhar e a crescer com isso. É uma oportunidade institucional da mais alta relevância.
Se me permitirem duas observações, recomendo fortemente à direção aos vereadores e vereadoras a conferirem a máxima transparência ao processo de indicação e escolha dos representantes da sociedade civil no Conselho de Comunicação. A presença e a atuação desses integrantes são o diferencial mais evidente do Conselho, o exemplo que esta Casa dará às suas congêneres de todo o país. Será de todo desejável que, nesta primeira etapa, a decisão final sobre os nomes possa ser tomada em audiência pública, aberta ao debate franco e democrático, sempre norteado pelo compromisso com o interesse público.
O exemplo que esta Casa dá com a instituição do Conselho é importante demais para não ser capitalizado em nome da cidadania, é relevante demais para que não tenha a pretensão de estimular atitudes semelhantes em outras emissoras legislativas. E sem correr o risco de comparar alhos com bugalhos, já que são duas emissoras de natureza diversa, vejamos o exemplo do Conselho Curador da Empresa Brasil de Comunicação, mantenedora da TV Brasil. Ali, o Conselho está prestes a completar dois anos de funcionamento e 16 de seus 22 membros são indicados diretamente pelo presidente da República. Cinco integrantes são escolhidos pelo Congresso Nacional e apenas o representante dos funcionários é eleito por seus pares.
Não estou a sugerir qualquer espécie de democratismo ou de assembleísmo vago. Ocorre que a comunicação, hoje, é muito mais diálogo do que discurso unívoco – e aqui uma segunda sugestão: será recomendável que o Conselho e a própria TV Câmara estejam atentos para as amplas possibilidades da convergência de mídias, e construam uma política editorial que privilegie a plataforma digital como forma de abrir as portas da Câmara Municipal ao escrutínio da cidadania. Isso não é democratismo, é ferramenta democrática em estado ótimo. Diante das inevitáveis dificuldades que surgirão no trabalho do Conselho, será sempre melhor errar num ambiente democrático do que buscar o acerto com base no poder discricionário.
Para a TV Câmara Taubaté isso faz tanto mais sentido quanto mais relevante é o fato primário de ser esta uma Casa de representantes do povo, em cujo nome deve atuar. O surgimento do Conselho transcende a um protocolo de intenções: é mais um movimento na grande articulação com vistas à democratização da comunicação em nosso país.
Informações fidedignas
Estamos às vésperas de uma Conferência Nacional de Comunicação, e conviria desde já não atribuir a esse evento os foros de panacéia para os graves problemas encruados na radiodifusão brasileira. Por exemplo, a inexistência de limites para a propriedade cruzada dos meios de comunicação, a concentração acelerada da oferta multimídia fora dos grandes centros, e o virtual controle da produção simbólica por parte de um número reduzidíssimo de organizações empresariais de mídia. Estas são situações que precisam vir ao debate público.
A Conferência convocada para dezembro deverá ser apenas o começo, não o fim. Se dali saírem indicativos consistentes de futuras políticas públicas de comunicação – que privilegiem a diversidade ante a concentração e a pluralidade de pontos de vista em vez do discurso monocórdio – então estaremos no caminho de uma comunicação mais democrática para um país que vem reconstruindo a sua própria democracia há apenas 25 anos.
Radicalizar o compromisso com o interesse público é mais do que uma meta, é a função de uma TV legislativa – e não poderá ser diferente com a TV Câmara. A emissora está desobrigada de disputar ‘mercado’, mas em paralelo aos seus compromissos institucionais de dar divulgação às atividades legislativas, pode muito bem atuar como um fator de diferenciação de qualidade em âmbito local, estimulando a produção independente de programas focados na promoção social e na inclusão cidadã.
Os desafios não são poucos. Nada mais auspicioso do que uma Câmara Municipal criar canais permanentes de interlocução com a sociedade que representa. A disputa prioritária será por qualidade, sempre mais qualidade. E a meta inegociável será fazer com que a emissora seja cada vez mais percebida pela população como um canal de informações fidedignas, uma TV ciosa de sua credibilidade. Zelar por este preceito será missão precípua do Conselho Público de Comunicação. Que faça um excelente trabalho.