Com relação à matéria publicada no Observatório da Imprensa em 2002 (ver ‘Ex-editora vence na Justiça‘), informamos que a noticiada decisão foi confirmada pelo E. Tribunal de Justiça de São Paulo, conforme acórdão disponível aqui.
Trata-se do caso da jornalista Eliana Simonetti, demitida da Editora Abril em 2001, quando ocupava o cargo de editora de Economia da revista Veja.
Pouco antes de sua demissão, em 24 de outubro de 2001, a revista Veja publicara reportagem que denunciava possíveis relações do lobista Alexandre Paes de Barros com funcionários do Palácio do Planalto e de alguns ministérios, revelando a apreensão de documentos pela Polícia Federal, entre eles uma agenda pessoal do investigado que revelaria suas ligações com o alto escalão de Brasília.
Ocorre que, em tal agenda, conforme aventado por outros veículos de informação, como, por exemplo, o Jornal do Brasil (edição de 13/11/1, caderno ‘Brasil’, pág. 3), ‘aparecia o nome de Eliana anotado no diário’, o que não havia sido mencionado na matéria publicada pela revista Veja.
Eliana confirmou para imprensa que conhecia o lobista, com quem havia namorado e ainda mantinha relação de amizade, e que havia dele recebido empréstimos pessoais. Também tinha recebido empréstimos de outros familiares e até mesmo de bancos, pois, sozinha e com dificuldade, criava quatro filhos adolescentes.
Condenação em primeira instância
A fim de se isentar de qualquer relação com o lobista, a revista Veja houve por bem demitir a jornalista sem justa causa, mas publicou nota no seguinte teor:
Veja e o lobista:
‘Na sexta-feira, 9 de novembro, a jornalista Eliana Simonetti, editora de Economia de Veja, procurou a edição da revista para informar sobre seu relacionamento com o lobista Alexandre Paes dos Santos, de Brasília, de quem seria amiga e ex-namorada. Nessa conversa, a revista não foi notificada da existência de nenhum vínculo financeiro entre ambos. Na segunda-feira, por meio da redação do jornal Correio Braziliense, Veja tomou conhecimento de que Alexandre Paes dos Santos fornecera a título de empréstimo perto de 40.000 reais a Eliana, informação que o jornal colhera com a própria jornalista. A partir daí, Veja entendeu que se configurava uma situação de conflito de interesses e decidiu por seu desligamento’ (Veja, 21 de novembro de 2001, seção ‘Cartas’, página 29).
Além dessa publicação, a revista Veja enviou nota à imprensa informando que a jornalista teria sido demitida por ‘relacionamento impróprio’, quando, na verdade, foi demitida sem justa causa.
Em primeira instância, o MM. Juízo condenou a revista Veja a indenizar a jornalista ‘a titulo de danos morais e patrimoniais, a importância equivalente a 20 (vinte) vezes o último salário percebido por esta na empresa ré, respondendo está, ainda, pelas custas e despesas deste processo e pela verba honorária advocatícia dos patronos dela que fixo em 20% do valor dado à ação. Condeno, finalmente, a requerida a publicar a presente sentença, após seu regular trânsito em julgado’ (cf. decisão anexa).
Indenização proporcional ao dano
Entendeu aquele MM. Juízo que a notícia foi lesiva à honra da jornalista, uma vez que não provado pela revista o noticiado comportamento impróprio ou qualquer conflito de interesses: ‘Ademais, ao falar em conflito de interesses, sugere a publicação (fls. 42/44) que haja um favorecimento de algum interesse, ou seja, a publicação sugere que em função do empréstimo a autora seria parcial. Qualquer um pode perceber isto. Está claro que quando a ré diz que o conflito advém do vínculo financeiro entre a autora e Alexandre, está dizendo que ela, em função deste vínculo, representa interesses conflitantes com os da revista Veja, sendo esta única interpretação razoável que pode ser dada ao texto. É nítida, portanto, a lesividade da notícia, que não retrata cruamente fatos, fala em vínculo financeiro e conflito de interesses. Houvesse alguma prova de que a autora, jornalista, tivesse favorecido interesses de Alexandre, lobista, durante a relação deles, o comportamento dela seria impróprio, o que não é o caso dos autos.’
Tal decisão foi confirmada pelo E. Tribunal de Justiça de São Paulo, que ainda acresceu à condenação correção monetária e os juros moratórios a partir do evento danoso; determinou que os honorários incidam sobre o valor atualizado da condenação, e não do valor dado à causa; e, quanto ao dever de publicar a sentença, fixou multa cominatória, no valor de R$ 3.500,00 por edição que deixar de publicá-la, a contar da intimação para o cumprimento do preceito.
A jornalista continua desempregada, desde 2001.
Eis a íntegra da sentença:
‘A autora, ex-editora de economia da revista Veja, editada pela ré, propôs a presente ação sob o argumento de que a publicação de nota sobre sua demissão na seção `Cartas´ da referida publicação (edição de 21.11.2001, pág. 29) teria lhe causado sérios danos em sua vida pessoal e profissional. Requer, por isso, a condenação da ré ao pagamento de indenização proporcional ao dano, bem como a publicação da sentença na íntegra no topo da seção `Cartas´ da revista Veja, sob pena de pagar multa diária pelo descumprimento do preceito e, ainda, condenada a publicar nota à imprensa divulgando o teor da decisão, além de responder pelos demais ônus da sucumbência.
Os autos conclusos
Regularmente citada, a requerida, tempestivamente contestou a ação e ofertou reconvenção. Na primeira, sustenta, preliminarmente, decadência do direito de ação com a base na Lei de Imprensa, bem como inépcia da inicial por indeterminação do pedido. No mérito, afirma a improcedência da demanda tendo em conta que houve justa causa para a demissão da autora dos quadros da requerida, com base em informação fornecida pela redação do jornal Correio Braziliense, que violou a ética jornalística, inclusive manual do Grupo Abril, contendo normas e conflitos de interesse e atividades externas do jornalismo.
Na peça reconvencional, postula a ré-reconvinte seja a autora-reconvinda condenada a lhe pagar danos morais, repisando e reiterando matéria alinhada na contestação, consistente em ter mantido ela, em sigilo, relacionamento afetivo e de amizade íntima com uma de suas fontes de informação, inclusive desta recebendo empréstimos, o que feriu princípios de éticas jornalísticas.
Após manifestação da autora sobre a contestação (fls.220/238) e reconvenção (fls. 242/258) replica da contestação à reconvenção (fls. 260/274), as partes (fls. 281/282 e 284/285) se manifestaram sobre o despacho de fls. 259. Cumprido o despacho de fls. 276, com as manifestações de fls. 286/293 e 294/296, após o que, regularizados, vieram-me os autos conclusos.
Publicação é falsa
É o relatório.
Decido.
‘O presente feito comporta julgamento antecipado, embora insistida a produção de outras provas, já que o juiz somente está obrigado a abrir a fase instrutória se, para seu convencimento, permanecerem fatos controvertidos, pertinentes e relevantes, passíveis de prova testemunhal ou pericial. Pois, em matéria de julgamento antecipado da lide, predomina a prudente discrição do julgador, no exame da necessidade ou não da realização de prova em audiência, ante as circunstâncias de cada caso concreto e a necessidade de não ofender o princípio basilar do pleno contraditório.
Nesse passo, por primeiro, cumpre repelir as preliminares invocadas na contestação da ré. A primeira, porque a Constituição Federal de 1988 submeteu a indenização por dano moral ao Direito Civil comum e não a qualquer lei especial (STJ – REsp 52.842/RJ), revogando, ainda que implicitamente, o prazo decadencial de que trata a Lei de Imprensa. Anote-se, apenas para ficar consignado, se a presente ação estivesse se processando nos termos da Lei de Imprensa, a ré seria revel, pois o prazo para contestação seria de 05 dias (art. 57, parágrafo 3º da Lei 5250/67). Da mesma forma, rejeita-se a segunda preliminar, tendo em conta que a petição inicial, no item 92 deixa clara a pretensão quanto ao dano material, enquanto nos itens 93 a 105 há explicitação dos danos morais.
Quanto ao mérito, a ação é, indiscutivelmente, procedente para os fins pretendidos pela autora, não obstante as extensas contestação e reconvenção da ré.
Importante notar, que a publicação da ré que trata do desligamento de sua empregada, a autora, é falsa. O Termo de Rescisão do Contrato de Trabalho informa que a demissão deu-se sem justa causa. Anote-se que a publicação questionada não é informativa, é julgadora, que não condiz com a real forma como foi acordada a demissão.
Fatos ofensivos à reputação
A alegação da ré de que o alegado relacionamento afetivo entre a autora e o lobista Alexandre Paes dos Santos era desconhecido pela direção da revista Veja, em nada altera o conjunto dos fatos. Aliás, restou confessado pela ré que na revista Veja todos sabiam que o lobista `era uma fonte, com a qual a jornalista, como era de se esperar, tinha um bom contato´. Daí porque o fato de constar o nome de Eliana Simonetti na agenda do lobista, conforme admitido pela própria ré na contestação, nada tinha de desabonador.
Resta, portanto, a controvérsia a respeito dos empréstimos havidos pela autora do seu ex-namorado, que teria motivado sua demissão e a publicação de nota da revista. Segundo a tese da ré, um jornalista não pode, em hipótese alguma, aceitar dinheiro, presentes ou favorecimentos de qualquer natureza de suas fontes, acostando aos autos uma manual de posturas éticas com normas sobre conflitos de interesses. A autora não se enquadra nessa hipótese porque empréstimo não é presente, devendo ficar consignado que o referido manual de posturas longe está de ser lei e obrigar alguém.
Ademais, ao falar em conflito de interesses, sugere a publicação (fls. 42/44) que haja um favorecimento de algum interesse, ou seja, a publicação sugere que em função do empréstimo a autora seria parcial. Qualquer um pode perceber isto. Está claro que quando a ré diz que o conflito advém do vinculo financeiro entre a autora e Alexandre, está dizendo que ela, em função deste vínculo, representa interesses conflitantes com os da revista Veja, sendo esta única interpretação razoável que pode ser dada ao texto. É nítida, portanto, a lesividade da notícia, que não retrata cruamente fatos, fala em vínculo financeiro e conflito de interesses. Houvesse alguma prova de que a autora, jornalista, tivesse favorecido interesses de Alexandre, lobista, durante a relação deles, o comportamento dela seria impróprio, o que não é o caso dos autos.
No caso, ao publicar a nota de fls. 42/44, fez a ré imputar a autora, falsamente, fatos ofensivos à sua reputação e capazes de atingir sua dignidade pessoal e profissional.
Danos morais e patrimoniais
É por demais sabido que o ato ilícito resulta o direito à reparação do dano provocado por culpa ou dolo do agente, sendo que a indenização por danos morais independe da comprovação do prejuízo.
Ademais, do processado, está devidamente evidenciado que a conduta imputada pela autora à ré não se conduz pelo campo específico do dolo, mas sim, com lastro na culpa desenvolvida em sentido amplo, geradora da obrigação à reparação do dano causado.
Realmente, danos simplesmente morais, sem repercussão no patrimônio, não há como ser provado. E resiste tão somente pela ofensa, e dela é presumido. Basta a ofensa para justificar a indenização.
Resumindo, a liberdade da imprensa não exime os órgãos noticiosos de se acautelar na escolha do noticiário ajustado à realidade para que o público leitor seja corretamente informado.
Por outras palavras, o princípio constitucional da liberdade de imprensa deve ser exercitado com consciência e responsabilidade, em respeito à dignidade alheia, para que não resulte em prejuízo à honra, à imagem e ao direito de intimidade da pessoa ou pessoas abrangidas na notícia.
Aliás, os meio de comunicação têm dado grande contribuição à institucionalização do desrespeito nacional a pessoas e símbolos desta República. Pode parecer mero formalismo e até um exagero, por exemplo, listar as diversas formas de desrespeitos cometidas diariamente no Brasil por brasileiros.
Mas a verdade é que a democracia se faz com o respeito à lei e a liberdade precisa sempre estar acompanhada do respeito ao direito alheio, da mesma forma que não se pode conceder a convivência social pacífica sem um restrito e até religioso respeito à honra alheia. A institucionalização de desrespeito à pessoa e às instituições, criadas pelo homem para tornar possível esse convívio, é uma doença grave, à qual nenhum organismo social pode sobreviver, principalmente no caso brasileiro, como todos sabemos, ainda em estágio de fragilidade. Esse tipo de comportamento é deletério e precisa ser combatido com vigor. Porque, como diz, sabiamente, o povo, só é respeitado que respeita.
Resumindo, não tendo logrado a ré descaracterizar a responsabilidade ressarcitória decorrente dos danos morais e patrimoniais causados à autora, julgo improcedente a reconvenção e procedente a ação para condenar a requerida a pagar à requerente, a título de danos morais e patrimoniais, a importância equivalente a 20 (vinte) vezes o último salários percebido por esta na empresa ré, respondendo está, ainda, pela custas e despesas deste processo e pela verba honorária advocatícia dos patronos dela que fixo em 20% do valor dado à ação. Condeno, finalmente, a requerida a publicar a presente sentença, após seu regular trânsito em julgado, caso eventualmente mantida pelas instâncias superiores, na primeira semana após este, no topo da seção `Cartas´ da revista Veja. P.R.I. (valor do preparo em caso de apelação, R$ 104,29).’
Advogados da autora: Larissa de Athayde Ribeiro Fortes – OAB nº 184132; Felipe de Melo Franco – OAB nº 173621; advogada da ré: Sônia Maria D´Elboux – OAB nº 63777
******
Advogada