A primeira vítima do covid-19 aqui em casa foi meu celular: entupiu de vídeos, fotos, áudios, ansiedade internáutica. Colapsou. Foi tanta fake news e “nervosas news” que as pessoas foram buscar informação qualificada no jornalismo profissional. Papel.
O que o papel fez pelos leitores em quarentena? The Economist já avisava uma semana antes do Carnaval: um dos primeiros a capitular foi o médico chinês que alardeou o perigo, Li Wenliang, dia 7 de fevereiro, aos 33 anos.
Como, no Brasil, nenhum vírus é capaz de adiar o Carnaval, só depois houve overdose de notícias sobre a peste negra que devastou a Europa no século XIV, lembrando Decameron, de Bocage, A distant mirror, da historiadora americana Barbara Tuchman, ou enumerando quantos foram consumidos pela gripe espanhola em fins de 1918: 50 milhões em menos de três meses. Até hoje, não sei se Rodrigues Alves (1848-1919) morreu de gripe, mas não desta gripe, como afirmou Ruy Castro, ou se quem tem razão é Elio Gaspari, que publicou um despacho recebido do presidente, do além: “eu deveria ter voltado à presidência em 1918, mas peguei a gripe espanhola e morri”. Ambos no domingo, 15 de março, na mesma Folha de S.Paulo.
Vamos morrer? De repente, nossa “gripezinha”, segundo Bolsonaro, matava mais de 3 mil na China e quase 5 mil na Itália; no Brasil, já levou 28. A gripezinha atacou vítimas sem nome – até hoje, não sabemos o nome da doméstica que morreu cuidando da patroa que voltou da Itália e deixou Miguel Pereira, estado do Rio, esvaziado de medo. Nova York, quem diria, também esvaziou de brasileiros; Buenos Aires, “a cidade da fúria”, anoitece em silêncio. A capa da The Economist desta semana tem uma tarja sobre o globo terrestre, “fechado”, “closed”. Quem ironizou foi o Estado Islâmico, que alertou seus operacionais a evitar o “mundo rico”.
Estamos contaminados. O vírus detectou as prioridades de cada país. No Brasil e na Alemanha, a corrida desesperada pelo papel higiênico; nos Estados Unidos, pelas armas; mas, na França, por preservativos e vinhos. O vírus também está conseguindo o impensável: até uniu Israel e Palestina no combate ao inimigo comum, invisível.
Como evitar a catástrofe? Religião. A Itália católica lastima que os infectados tenham morrido sem extrema-unção. Aqui, a Monja Coen, ex-jornalista, ensina a serenidade da solidão, “nos faz lembrar que somos todos humanos”. A doença como metáfora, avisa Nelson Motta em O Globo. Como na Aids, atribuída ao castigo divino pelos pecados dos homens, o bispo Macedo vê na nova pandemia “uma estratégia de Satanás e da mídia”. Colapsólogos falam em fim do mundo. Como sobreviver sem padarias, bares, restaurantes, lojas?
Lições de como lavar as mãos são publicadas junto com registros de falta de ar causada pelo pânico, que só aumenta com as notícias prevendo recessão global no segundo semestre, risco de depressão na economia e na gente, autônomos na lona, o que vai acontecer depois que a gripe passar? Cada articulista tem a sua versão e todas desembocam no caos.
Fronteiras fechadas, flagelo no mundo, o inverno está chegando e pode trazer uma das crises mais mortais! Empresários pedem plano Marshall, um pacote de reconstrução como o da Europa depois da Segunda Guerra Mundial – para evitar a catástrofe dos quarenta milhões de desempregados que resultará da pandemia. Fique em casa, leia um livro, relaxe, faça ioga, lição da Folha sobre “como montar um escritório e se manter produtivo em casa”, em O Globo “exercícios para a quarentena, mantenha o corpo em casa”, especialistas respondem a 55 perguntas sobre home office no Estadão. As pessoas se dão conta de como o Brasil envelheceu. Como estamos velhos e pobres.
Epidemia nas favelas, colapso no sistema, não temos leitos nem respiradores, Mandetta prevê disparada de casos em abril e até agosto, mas Bolsonaro acha um exagero. Cacá Diegues n’O Globo sugere ao ministro reivindicar um destaque da bateria da comissão de frente…do governo. O cognitus vírus afeta o Planalto. Bolsonaro acirra guerra contra o desafeto Witzel, governador do Rio que fechou os aeroportos. E outra guerra explode no Planalto quando o filho 03 tuíta que foi a China, nosso maior parceiro comercial, quem fabricou o vírus e exportou para o mundo. Eduardo, Bananinha ou “Loide” (apelido que ganhou dos amigos em referência ao filme Debi & Loide: Dois Idiotas em Apuros, nos informou Thais Bilenky na piauí), não se desculpa. A China não atende Bolsonaro, que não atende o Ministério Público na exigência de ver o resultado dos exames para o coronavírus, já que 23 pessoas ligadas à comitiva presidencial na viagem aos Estados Unidos receberam o diagnóstico da doença. Panelaço. O vírus pegou Bolsonaro. Até Olavo de Carvalho desistiu: ele foi eleito para “derrubar o sistema”, mas, “aconselhado por generais e políticos medrosos, preferiu adaptar-se a ele. Suicídio”, o guru escreveu no Facebook.
Bolsonaro se atrapalhou mesmo, “como se põe essa máscara? Não estou enxergando nada”. Um dos livros mais vendidos, depois d’A Peste, de Albert Camus, é Ensaio sobre a Cegueira, de Saramago. “Não sei quem teve a brilhante ideia de passar seriedade e calma ao Brasil com aqueles dez homens brancos mascarados de terno. Isso é esquete de comédia de terror”, escreveu Ruth de Aquino em O Globo. De Bolsonaro “…e quem são essas panelas que não param de bater? E essas músicas? Bella Ciao, Apesar de Você, quanto mau gosto…”. Notícias do início desta semana, Bolsonaro tem a pior avaliação nesta crise, aprovado só por 35% dos brasileiros, 48% em São Paulo, segundo o Ibope.
Muita informação. Uma olhada na CNN, a comentarista Basília Rodrigues avisa que Chile e Equador não fazem parte da América do Sul. Mil vídeos fake ou não na internet. O sistema humano vai colapsar. O leitor quer informação qualificada, volta ao papel. Cultura de graça, filmes, peças, música erudita e pop sem pagar, para todos, então é possível ou só com pandemia? Em duas páginas na Ilustríssima de domingo, 22, o sociólogo italiano Domenico de Mais descobriu “a evidência de que a vida pode ser organizada de outro modo”.
Ruy Castro oferece alguns epitáfios para o seu túmulo, “Aqui jazz”, como queria o socialite Jorginho Guinle; “ Aqui, ó”, preferia o escritor Ivan Lessa; “Escutem, agora sou apenas uma alma. Sabem lá o que é isso”?, Álvaro Moreyra escolheu; “Aqui jaz, absolutamente contra a vontade”, pediu Mièle. Licença para o horror, escreve Janio de Freitas na Folha, e começa pela devastação do programa Mais Médicos.
Rita Lee resolve oferecer uma saída, bichos, plantinhas em casa, violão. Rita Lee, 72 anos, no mato ao lado do namorado, ensina na coluna do Ancelmo Gois em O Globo: modifiquem seus hábitos, “o planeta Terra está sendo destruído pelos donos do poder de cada país”. Parece uma saída ler o artigo publicado em fevereiro no The New York Review of Books, de Nicholas Lemann, ex-reitor da Faculdade de Jornalismo da Columbia University em NY, “Como salvar o jornalismo”. Em quatro páginas, uma das conclusões finais mais realistas para o autor é de que só o governo, subsídios públicos, podem salvar, o que nos lembra: estamos no Brasil! Presidente: Bolsonaro.
Se vencermos esta guerra viral, o jornalismo sobreviverá? “Juntos vamos derrotar o vírus – #imprensacontravírus” na sobrecapa de todos os jornais desta segunda, 23. Um colunista da Folha receita as lições do doutor Pangloss, personagem de Cândido, de Voltaire: otimismo a qualquer custo. Joaquim Ferreira dos Santos, n’O Globo, vai mais fundo: chorar, como o comentarista internacional do Manhattan Connection fez no vídeo ao falar do vírus.
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Norma Couri é jornalista.