Em uma decisão surpreendente, a Globo interrompeu a produção das suas tradicionais tramas das seis, das sete e das nove. Outros produtos da emissora, como Malhação, também foram afetados. O objetivo, segundo o G1, é preservar as equipes de atores e técnicos dos riscos de contágio pelo coronavírus. O argumento de que não há novela sem beijos, abraços e agrupamentos de pessoas torna a iniciativa pertinente.
Amor de mãe, a prata da casa, foi substituída por um compacto de Fina estampa (2011) no horário nobre. A partir do dia 30, a trama das sete, Salve-se quem puder, cede espaço para uma versão enxuta de Totalmente demais (2015). A novela das seis, Éramos seis, acaba no dia 27 de março e será substituída por um compacto de Novo mundo (2017) na semana que vem.
A iniciativa da Globo de apresentar sua dramaturgia das sete e das nove em temporadas (sem data prevista para a estreia da segunda fase) constitui um capítulo especial do gênero. Além da pandemia, outros fatores pesaram na decisão. Em tempos de crise, investir em jornalismo, com equipes mais concisas que telenovelas, é um caminho menos oneroso e mais seguro.
Some-se a isso a acertada iniciativa da emissora de abrir mão de suas ficções para oferecer jornalismo de serviço sobre o coronavírus, em um momento em que o país precisa desse tipo de informação. Mas o que as telenovelas, uma obra tão característica do cotidiano e da cultura nacional, podem ganhar com essa mudança?
Teledramaturgia e temporadas
Antes de tudo, espera-se que a emissora cumpra o prometido, renove contratos de atores e equipes e, de fato, volte com as tramas. Afinal, com quase sessenta anos de idade, as novelas diárias continuam a ser um afago nas noites de muitos brasileiros, ainda que tenham perdido público e qualidade nas duas últimas décadas.
Seccionar novelas diárias não é novidade. Muitas tramas apresentaram diferentes fases, contando a saga de seus protagonistas jovens e maduros, como aconteceu em clássicos como O casarão (1976), Renascer (1993) e as versões de Éramos seis na Tupi (1977), no SBT (1994) e na própria Globo (2019). No entanto, a ideia de temporada, com um intervalo entre uma parte e outra da trama, é rara.
Nos anos 2000, uma continuação de Terra Nostra (1999) foi cogitada, mas ficou apenas em manchetes da mídia especializada. Malhação, que estreou em 1995 e está até hoje no ar, consolidou-se como ficção por temporada, embora dirigida ao público teen e com significativas alterações de elenco e roteiro a cada etapa. Vale lembrar ainda que, há algum tempo, a Globo ensaia o retorno de Verdade secretas, cuja primeira parte foi ao ar em 2015, às 23 horas.
Do streaming para a TV
Pensar com otimismo essa questão significa esperar que a Globo aproveite a ideia de produzir suas atuais novelas em temporadas para revitalizar o gênero. A pausa proposta às produções das sete e das nove reproduz um lapso temporal consolidado em séries de plataformas de streaming, como Netflix, HBO, Amazon e Globoplay. O êxito desse tipo recente de dramaturgia pode servir de inspiração para as novelas da TV.
Com as temporadas, dá-se um refresco aos autores para criarem diálogos consistentes entre personagens e programarem viradas que só com algum respiro poderiam ser pensadas. Quem escreve sabe que não há nada como o tempo, como “deixar de molho” um texto, uma ideia, para que eles ressurjam revitalizados. Da mesma forma, nada como um lapso em uma trama para surpreender o público com mocinhas que viram vilãs ou vice-versa. Quando isso acontece entre capítulos, soa artificial. Mas, entre temporadas, pode atiçar o telespectador.
Se, por um lado, nas mãos dos autores, esse tipo de expediente implica maior densidade ao enredo e aos protagonistas, por outro, diretores, técnicos e atores podem dispor de mais tempo para amadurecer ideias, elenco e personagens. Para um gênero conhecido pelo ritmo puxado de produção, frear seus passos ajuda em todos os sentidos.
Nem heróis, nem vilões
Caso as temporadas funcionem, a Globo precisará negociar seus produtos com anunciantes e funcionários não mais por obra, mas por períodos. Isso pode significar um trabalho redobrado. Esse diálogo precisará ser estabelecido de forma ainda mais cautelosa com o telespectador, já que as novelas continuarão a ser obras abertas e imersas em experimentações, por mais “redondas” que pretendam ser.
Em um país onde gerações inteiras cresceram torcendo nem sempre por heróis ou vilões de novelas, mas principalmente pelo êxito dessa instituição nacional, espera-se que as alterações feitas pela Globo em suas tramas possam ser úteis para revitalizar o gênero. Quem sabe, a empática Lourdes, vivida pela esplendorosa Regina Casé, possa reaparecer rica e diabólica na próxima fase de Amor de mãe. Que venham as cenas da próxima temporada!
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Enio Moraes Júnior é jornalista e professor. Doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (Brasil), vive em Berlim desde 2017 e escreve no Enio Online.