Em tempos de maratonas de séries, vale lembrar que nem só de ficção vive o streaming. Há uma infinidade de documentários disponíveis e, como jornalistas, temos que manter atenção em várias outras temáticas. Uma delas está diretamente vinculada ao clima de disputa “ideológica” que ressurgiu com os mais recentes comentários equivocados do presidente da República. Trata-se da ditadura civil-militar, que teve seu início há 56 anos, e que invariavelmente vem à lembrança nos discursos pró e contra Bolsonaro – mesmo que poucos brasileiros tenham conhecimento do que ela realmente representou, como demonstra a pesquisa do Datafolha divulgada no início deste ano, em que 65% dos entrevistados alegaram jamais ter ouvido falar do AI-5, a mais grave das medidas antidemocráticas e de repressão impostas pela ditadura.
Pois neste mês de descomemoração do golpe de 1964, a HBO acaba de exibir o documentário Em nome dos pais, uma série em quatro episódios de uma hora cada convertendo para a linguagem audiovisual o livro homônimo do jornalista Matheus Leitão, publicado em 2017 pela editora Intrínseca. É uma bem feita edição em vídeo de partes dos depoimentos colhidos para o livro, com a inclusão de algumas passagens encenadas com a técnica de docudrama e outros recursos de linguagem audiovisual. Ver os depoimentos os tornam mais fortes, apesar de suavizar a profundidade alcançada na versão impressa.
Trata-se da busca pessoal de Matheus Leitão pelo que havia ocorrido, entre 1972 e 1973, com seus pais Marcelo Netto e Miriam Leitão, além de seu irmão Vladimir – com poucos meses de gestação no útero de uma jovem universitária de 19 anos -, quando ficaram presos em quartéis da ditadura no Espírito Santo e no Rio de Janeiro, após terem sido delatados como membros do PCdoB. Não é necessário, aqui, nenhum alerta de spoiler, pois é uma história que todos conhecem – ou deveriam conhecer.
O documentário mostra o extenso trabalho jornalístico de levantamento de documentos oficiais, depoimentos de militantes aprisionados na mesma época, militares aposentados que atuaram na ditadura, a historiadora Heloisa Starling, o jornalista Ivo Herzog, o ministro do STF Luís Roberto Barroso, o então procurador-geral da República Rodrigo Janot e o então deputado federal Jair Bolsonaro, que é apresentado no gerador de caracteres como “presidente da República”.
Aliás, cabem aqui parênteses sobre a forma como os entrevistados são referenciados. À exceção de Marcelo Netto e Miriam Leitão, que aparecem sempre com o crédito de “jornalista”, todos os outros presos na época são apresentados como “ex-militante do PCdoB”. Com isso, são transformados apenas em personagens coadjuvantes da trama familiar que dá nome ao documentário. Por exemplo: Magdalena Frechiani e Beth Madeira, estudantes de Medicina à época de suas prisões, são hoje respeitadas médicas oncologista infantil e sanitarista, respectivamente. Quando Guilherme Lara Leite diz: “O pior de todos foi o meu xará, o capitão Guilherme. Esse era terrível, era sádico”, não é um ex-militante e estudante ressentido falando, mas sim um psiquiatra, com todo seu conhecimento acumulado para analisar a condição humana de uma pessoa que se divertia ao torturar jovens em quartéis do Exército. Ou, ainda, o então professor de Medicina Vitor Buaiz, não apenas um vizinho de cela, mas ex-deputado federal, ex-prefeito de Vitória e ex-governador do Espírito Santo. Isso poderia muito bem ser corrigido pelos produtores e pela HBO.
A intenção de Matheus Leitão era reencontrar o passado de seus pais e de seu irmão mais velho, e ele reforça isso em alguns momentos, mesmo com os três repetindo que não teriam feito isso como jornalistas. No entanto, os produtores tinham em mãos um material acumulado tão rico que podiam ter aproveitado para contar melhor um pouco mais dessa história que o documentário conclui quererem deixar esquecida e apagada. Dava para continuar focando no drama pessoal familiar, mas, para os que desconhecem a história, pode ficar a impressão de que foi um caso isolado. Seria uma oportunidade de revelarem mais desse momento do Brasil tão esbravejado e tão pouco conhecido.
Uma outra sugestão seria a exibição não no pouquíssimo acessado canal HBO Mundi ou perdido entre as séries de ficção do HBO GO, mas nos canais do grupo Globo, onde dois dos protagonistas desta trama – Miriam Leitão e Vladimir Netto – são vistos cotidianamente.
Quem quiser conhecer um pouco mais do que foi o drama vivido por estes e outros estudantes, professores e técnicos da Universidade Federal do Espírito Santo na época da ditadura pode acessar o Relatório Final da Comissão da Verdade da Ufes, publicado em 2016.
Fique em casa. Assista Em nome dos pais. Conheça a história que jamais deve ser esquecida, para não ser repetida.
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Edgard Rebouças é jornalista, professor e coordenador do Observatório da Mídia na UFES.