Esta semana marcou os 100 dias de vírus no mundo. Levou 100 mil mortos. “Falar do quê?”, Sergio Augusto começou sua crônica no Estadão (11 de abril). Adoçar? Escapar? “Sinto-me como se tivesse mudado para outro planeta”. Eu também. “Nunca pensei que um dia fosse experimentar, na vida real, o que tão marcadamente me intrigou ao ver, em criança, O dia em que a Terra parou”. O filme, dirigido por Robert Wise em 1951, retrata o planeta paralisado por uma força superior. Eu penso no fabuloso livro de Bernard Malamud, God’s Grace (1982), cujo título pode ser lido de duas formas, e me sinto como Calvin Cohn, único humano sobrevivente no mundo arrasado por uma guerra nuclear. No meu caso, nem conto com primatas, como o protagonista do romance, ou com pets para reconstruir uma civilização perfeita, que é a previsão dos profetas dos nossos tempos para quando a quarentena acabar. Prefiro Christiane Torloni na entrevista de Sexta Feira da Paixão (Estadão,10 de abril), “só pessoas que enfrentaram tragédias nas suas vidas sabem como é um dia após o outro”. Eu sei.
Então guardo as receitas caseiras para quando a vida normal voltar, menos uma: caso esteja se sentindo deprimido ou pensando em suicídio, disque 100. Agora não consigo nem ler, ver ou ouvir notícias. Elas se repetem. Como o editor Roberto Feith (O Globo, 13 de abril), reduzi a frequência nas redes sociais, muito ruído, pouco sinal. Só vejo a representação, a imagem projetada das pessoas substituindo quem está escondido atrás dela, captada por uma arma predatória, como Susan Sontag descreveu a câmera fotográfica (Sobre fotografia, Companhia das Letras, 2004).
Fotos de Bolsonaro rindo? Cumprimentando as pessoas nesta Páscoa? É o único rosto sorridente de toda mídia? Luan também ri numa foto anunciando show virtual do quintal de casa e uma brasileira de barriga tanquinho no biquíni parece miragem numa das ilhas do Havaí. Eu? Estou sobrevivente entre 1000 e tantos mortos no Brasil, vivendo na pele o realismo mágico. É só olhar a foto assustada de Paulo Guedes para saber a manchete: “Metade dos brasileiros já perdeu a renda, queda de até 4% do PIB”. O Banco Mundial vê queda de 5%.
Nenhuma foto tinha apanhado Trump fazendo beiço, a crise conseguiu. Mandetta, que se viu quase trocado por Osmar Terra, é estampado sempre com cara de choro, lábios puxados para baixo, máscara da tragédia. Uma grande angular do Copacabana Palace aos seus 97 anos de glamour, vazio e fechado, aciona a memória a repassar cenas daquele templo do luxo e prazer alavancado por seu hóspede mais famoso até a morte, aos 88 anos, em 2004: Jorginho Guinle. O socialite bilionário namorou Marilyn Monroe, Rita Hayworth, Jane Mansfield e, nos anos 1950, trouxe ao Copa Hedy Lamarr, Kim Novak, Susan Hayward…
Uma foto mostra no mesmo dia uma aglomeração no Largo do Boiadeiro, da Rocinha, e no Complexo do Alemão. # fiqueemcasa é para as classes de média para cima. Católicos se espremem no Mercado São Pedro, em Niterói, escolhendo o peixe no dia em que comer carne vermelha é pecado. As igrejas, vazias, o tenor Andrea Bocelli cantando sozinho na catedral de Milão.
Amir Labaki, que teve o festival É Tudo Verdade cancelado ao vivo, escreve no Valor que a praga escapou das telas. “É como viver dentro de um filme de terror… Não que o risco fosse inimaginável.” E nos descreve, à imagem da personagem de Mia Farrow em A rosa púrpura do Cairo, dirigida por Woody Allen, ainda formando casal em 1985: os astros saindo da tela para adentrar nosso mundo em casa. É bom ver nossa metáfora, O incrível homem que encolheu, Contágio, Nova York sitiada – tudo além da imaginação, como o diretor Pedro Almodóvar descreveu no El Diario sua sensação nesta quarentena. Labaki completa: “é como se as tramas de várias distopias se combinassem para somar impacto ao pular das telas para a vida”. Nem precisa de vida real, do nosso quarto imaginamos tudo, como acontece no filme dinamarquês de 2018, Culpa, 1 hora e 28 minutos de câmera focada num policial atendendo chamadas desesperadas no 911, e assim mesmo “vemos” o que se passa do outro lado, a criança sozinha, o bebê morto, a mãe tentando pular da ponte, o marido com a faca. Reality show na cuca.
Não, a cultura não escapou, a pandemia deve ao setor brasileiro R$ 46,5 bilhões e um recolhimento de 24%. “Não é todo dia que a seta do trágico penetra na história da humanidade com tal velocidade e potência”, diz a psicanalista Maria Homem.
Estado do Rio, com déficit de R$ 25,7 bilhões, só suporta mais dois meses de corona, governador e prefeito fotografados com riso de espanto… ou escárnio? Nas favelas, o morador comprando por R$ 130,00 o botijão que chega ao Brasil por R$ 14,00 e é revendido pela Petrobrás a R$ 21,85.
A bola está parada no mundo. “Não, não e não. A rara leitora e o raro leitor jamais viveram tempos nem sequer parecidos”, escreve Juca Kfouri na Folha de S.Paulo (9 de abril).Tem gente sonhando que, quando a quarentena acabar, vai viajar para Marte. Alguns personificam o fotógrafo de perna quebrada vivido por James Stewart em Janela indiscreta (Hitchcock,1954), que mata o tempo de quarentena focando a teleobjetiva nas janelas do prédio vizinho – quem sabe descobrem um crime?
O filósofo Franco Beraldi (Folha, 8 de abril) aposta que, fartos das relações virtuais, talvez até possamos resgatar o erotismo. “A vida mudou de endereço. Não acontece mais na rua”, escreve Cora Rónai no Globo do mesmo dia. “Domingo eu almocei duas vezes”, confessa Hélio Schwartsman (Folha,7 de abril). E, entre as coisas mais estranhas que estão acontecendo na quarentena, este país está aprendendo a doar, R$ 1 bilhão, marca histórica no país. Reaprendendo a vida, não seremos mais os mesmos.
“Nosso navio acabou de raspar num iceberg (segundo o capitão, é só uma pedrinha de gelo) e… continuamos discutindo o repertório da orquestra”, diz Eduardo Afonso (Globo,10 de abril). O emérito navegador Amyr Klink vai mais longe: “Sabe qual a qualidade mais bacana do barco? É que o desgraçado afunda. E a humanidade está em cima de um barquinho chamado Terra. Se tem algum furo, todo mundo tem que investigar e atuar em conjunto” (Globo, 7 de abril). E Mandetta, num de seus discursos: “É um mar revolto. Vamos passar na marcha certa. Nem tão parado que possa ser arrastado, nem tão acelerado que possa cair numa cachoeira”. Somos forçados a abandonar o Titanic no qual o planeta navega e embarcar num barquinho salva-vidas. Nem tudo está perdido, o filósofo Yuval Harari vem lembrar: “Não estamos na Idade Média, agora temos a ciência e a tecnologia para derrotar esta epidemia”(Estadão, 12 de abril).
No dia a dia, oscilamos entre incendiários e bombeiros. Já morreram mais de 1000? Estamos quase quites com Jim Jones, que, em novembro de 1978, aos 47 anos, levou quase 1000 – 909 – seguidores de sua seita a se envenenar voluntariamente. Nós, que nos amamos tanto, detestamos este momento histórico. José Eduardo Agualusa (Globo, 11 de abril) escolheu falar de homens peçonhentos, que transformavam em remédio seu próprio veneno, sugerindo que sempre temos essa possibilidade: “A escolha é sua. E não, juro que não estava a pensar em Jair Bolsonaro enquanto escrevia esta coluna”. Nem eu.
Mas é difícil não pensar em Bolsonaro ao ligar a TV Brasil e ver a TV que já foi pública passar duas horas transmitindo evento de Bolsonaro com religiosos apoiadores, como revolta-se a jornalista Tereza Cruvinel, criadora do projeto, em seu blog. Pior ouvir o que ele diz, no auge da contaminação do corona, como lembra Mandetta, perigoso até o final de abril. O chefe da nação afirma que o vírus está indo embora. TV Brasil, que já brilhou por vinte anos transmitindo o bom jornalismo do Observatório da Imprensa, programas de craques como Ancelmo Gois, agora traz Bolsonaro. Acho que vou ligar para o 100.
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Norma Couri é jornalista.