Desde a adolescência, vislumbramos o jornalismo em sua função social de incorporar coleta e checagem de informações para veicular notícias de interesse social. O empenho precoce advém da influência de um jornalista com alma e coração de jornalista. Autodidata, sem diploma nas mãos e com ética em suas ações, meu pai nos deixou esse legado. Por isso, talvez, nossa indignação e repulsa diante de loucuras que vêm ocorrendo no âmbito jornalístico brasileiro, em geral, não apenas no estado do Piauí, incluindo suportes impressos, radiofônicos, digitais e eletrônicos, com ênfase na TV, a qual, por força de sua imagem e imaginação, constrói uma utopia comunicacional e atrai audiência significativa.
Dentre as modalidades da profissão, reconhecimento ao jornalismo policial voltado à divulgação de fatos criminais, judiciais, de segurança pública e similares. O jornalismo investigativo, por sua vez, refere-se a reportagem especializada em desvendar mistérios e fatos ocultos do grande público, sobretudo crimes e casos de corrupção. Vez por outra, está ele na telinha dos cinemas, a exemplo de produções hollywoodianas, como Todos os homens do presidente (1976) e Spotlight: segredos revelados (2015). É tão profunda a marca deixada pelo caso Watergate que, até hoje, após décadas e décadas, o nome se tornou sinônimo de falcatrua política, além de exemplo máximo de jornalismo investigativo. Dois jovens repórteres do Washington Post, Carl Bernstein e Bob Woodward, trouxeram à tona esquema escabroso de espionagem e sabotagem montado sob o comando do então presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, que renunciou ao poder em 1974.
Esclarecidas as funções do jornalismo policial e investigativo, andamos envergonhadas frente à violência presente, com frequência, na mídia televisiva. A prática do jornalista está pautada no Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, revisto pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), em Vitória do Espírito Santo, ano 2007, em substituição ao vigente por mais de vinte anos, ou seja, desde 1985. O Código antevê os moldes idealizados da prática jornalística da contemporaneidade e, portanto, reflete as mutações identificadas no processo histórico do jornalismo.
Mesmo sem detalhar a história do jornalismo no país, reconhecemos a força da indústria cultural em sua esfera. O idealismo dos primeiros grandes jornalistas, em geral eruditos e intelectuais, à semelhança de Raquel de Queiroz, Clarice Lispector e Jorge Amado, há muito vem sendo substituído pela ganância empresarial, que privilegia os fins lucrativos mais e mais elevados em detrimento da identidade do jornalismo/jornalista como elemento essencial à formação cidadã.
E muito pior do que tudo isso: ao tempo em que o Código vigente preceitua, literalmente, em seu Artigo 11, que o jornalista não pode divulgar informações “de caráter mórbido, sensacionalista ou contrário aos valores humanos, especialmente em cobertura de crimes e acidentes (Inciso II)”; e “obtidas de maneira inadequada […] (Inciso III)”, são crescentes os casos de desrespeito aos indivíduos, recorrendo-se ao sensacionalismo (recusamo-nos a chamar de jornalismo sensacionalista). Imagens chocantes e de forte apelo emotivo são expostas a qualquer hora e em emissoras de categorias também diversificadas.
A cada dia, a exibição do grotesco ganha espaço, incrementando o fosso já existente entre a proposta ética do Código e a postura dos profissionais. Interpretações tendenciosas de entrevistas são constantes. Declarações pejorativas, racistas, polêmicas, não checadas e, com frequência, irreplicáveis, são jogadas literalmente ao ar. Expressões coalhadas de adjetivos e advérbios repulsivos têm como alvo os que cometeram delitos. Exemplos: “este já está nos buracos do inferno, juntinho com o chifrudo”; “caiu com a cabeça no meio-fio e não morreu, o cretino”; “bandidos, direto para as covas”; “aplausos! Menos um”; “todo castigo para vagabundo é pouco”; “cabra safado, descarado, cínico, miserável, bandido, criminoso, desavergonhado, filho do capeta; filho da put*” etc.
Dentre as “pérolas”, há o depoimento de um empresário ricaço que declara ao entrevistador que o coronavírus é uma mera gripezinha e completa com todas as letras: “não vai acontecer porr* nenhuma se o vírus entrar na favela [comunidade], pelo contrário”. Esquece ele que uma síndrome chegou e se instalou à porta de sua vida.
Um jornalista “de diploma” afirma no ar que o governo brasileiro, em todas as instâncias, está equivocado em investir tanto por tão poucos. A medida mais acertada seria a construção de um campo de concentração para abrigar os infectados do vírus. Nem tão jovem, mas ignorante o suficiente para desconhecer o impacto da expressão – campo de concentração – nas pessoas minimamente instruídas… Outro apresentador com programa diário de longa duração acompanhado de uma trupe fantasiada e com instrumentos musicais tripudia em cima dos que erraram. Dançam. Pulam. Aclamam aos gritos para comemorar a partida dos malfeitores. Em plena quinta-feira da Semana Santa, colocaram no cenário um caixão por eles carregados nos ombros em meio às chacotas mais cruéis. Não dá para sintetizar!
O espetáculo desse tipo de noticiário escancara a violência grotesca, fere os princípios legítimos do cidadão e ameaça a dignidade da pessoa humana ao espetacularizar crimes hediondos, com visões panorâmicas até de estupros. De maneira hostil e teatralizada, as notícias ganham dimensão de imaginário ou pesadelo. Esse misto de realidade e ficção causa embaraços entre fatos e simulações, entre jornalismo e realidade. A violência é banalizada no ar, razão pela qual o jornalismo televisivo grita por socorro, diante da inércia dos órgãos da classe, incluindo, além da Fenaj, Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e sindicatos em âmbitos estaduais!
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Maria das Graças Targino é jornalista, docente e escritora, com doutorado em Ciência da Informação (Universidade de Brasília), pós-doutorado junto ao Instituto Interuniversitario de Iberoamérica da Universidad de Salamanca (USAL) e Máster Internacional en Comunicación y Educación da Universidad Autónoma de Barcelona.