Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os infiltrados

(Foto: Norma Couri/Arquivo pessoal)

Estas são “histórias que não deveriam ser contadas”. O título de um dos livros de Rubem Fonseca, morto esta semana, define o que lemos na mídia, o que estamos vivendo no mundo e, em particular, no Brasil. Na semana em que a primeira morte por corona completou um mês no Brasil, já temos mais de 2.000 mortos. E histórias escabrosas para um conto de terror.

Folheando jornais:

Bolsonaro erra quando provoca e erra novamente quando recua: o discurso do presidente diante do QG do Exército no domingo (19/4), dois dias antes de Brasilia festejar 60 anos de criação, provocou reação de todas as instituições democráticas do país e fez JK e Oscar Niemeyer revirarem nas tumbas. Era um protesto no ato em que manifestantes pediam o fechamento do Congresso e do STF e um novo AI-5. Diante da reação até do Exército, no dia seguinte Bolsonaro recuou e disse que a manifestação era para quebrar a quarentena e os gritos inconstitucionais vinham de “infiltrados”. A desculpa esfarrapada piorou quando o presidente disse “eu sou a Constituição”, esquecendo-se de que ele apenas obedece à Constituição. Ou deveria.

Histórias horripilantes seguem-se e deveriam rechear a cabeça e os discursos do presidente: os mortos por corona não podem ser enterrados. Ação perversa do vírus foi ainda deflagrar nossa enorme desigualdade ou, como profeciou Warren Buffet, mostrar quem estava nu, que só aparece quando a maré baixa. Junto, apareceram os 40% de brasileiros invisíveis, sem registro, sem socorro. Como o Congresso reconheceu, o governo pode chegar a ter de prestar socorro a 100 milhões de brasileiros. Emerge o Brasil dos miseráveis.

Ainda não ficou esquecida aquela banana dada por Zero 3 ao Congresso, estampada neste mês pela piauí. Reforçando o discurso do pai, Eduardo, Bolsonaro repete ofensas ao presidente da Câmara e do Senado.

A tônica é guerra aos governadores que decretaram quarentena, como Witzel no Rio e Doria em São Paulo, alvos na disputa por ajuda do governo. Lideradas por Bolsonaro, carreatas no Rio e em São Paulo pedem intervenção militar. Seriam os “infiltrados”?

A pior história que não deveria ser contada foi a demissão do ministro Mandetta, ato tresloucado que teve 64% de repúdio e panelaço. Elio Gaspari acertou quando disse que foi Mandetta quem fritou Bolsonaro. Para não “cruzar a linha da bola”, como o general Mourão antecipou a demissão de Mandetta, Nelson Teich entra declarando-se “totalmente em sintonia com o presidente”. O ministro tem uma bela biografia com a economia da saúde – com a medicina de pessoas, deixou dúvidas quando declarou, na posse: “já fui médico”. Sem pudor, Teich afirmou o descarte dos idosos. Se precisar escolher, ficaria com o jovem e mandaria o velho para o espaço. “Médico tem de fazer escolhas”, ora. Sua posse foi feita como nos velhos tempos, sem máscaras, com beijos e abraços. Não chegou a se fantasiar de Capitão América, como fez no Clube dos Macacos, em 2019, na festa de final de ano para confraternização dos colegas formados em 1980 na UERJ. “Tudo sob controle… não sabemos de quem” foi a piada do vice-presidente Mourão na saída da festa da posse.

Com tristeza, o Brasil descobre que já não representa mais a pirâmide cuja base é um país de jovens. Velhos estão com pânico de ser velhos. “Não façam o que não deveriam fazer”, recomenda Mandetta, ao sair. O que não deveria ter sido feito era sua saída. O ministro de 76% de aprovação tem 1,1 milhão de seguidores no Twitter. O que sobrou para o capitão? Os “infiltrados”, que somam 30 e poucos por cento?

Nas histórias macabras, já há alusões ao médico e o monstro. Comparação de Teich com Tropeço, o mordomo da família Adams. Relatos de que Bolsonaro mais uma vez ganha espaço na imprensa internacional por estar se isolando ao sabotar a saúde pública, comparado aos loucos do poder, como George III na Inglaterra (1736-1820) ou, aqui em casa mesmo, dona Maria I, a rainha louca, ou o presidente Delfim Moreira, que vestia fraque para ir a lugar nenhum. No pior dos casos, a comparação é com o doutor Bacamarte, que, no conto de Machado de Assis, trancou primeiro a cidade toda no manicômio e, depois, se internou ele próprio. Louco, psicopata ou só perverso? E, ironia, internado na Colônia Juliano Moreira foi o mestre pianista e compositor – criador, entre outros clássicos, de Coração que sente – Ernesto Nazareth, nascido em 1863 no morro carioca do Nheco. Nazareth fugiu e foi encontrado boiando na represa que abastecia o hospício em 1934. Os sem coração continuam aí. Infiltrados?

Enquanto Bolsonaro afirma que “essa questão de vírus já está começando a ir embora”, aumenta a fila de espera de gente que ainda não sabe a sua doença. A Fiocruz sugere que multipliquemos por sete os números oficiais de infectados no Brasil. O país registra cerca de 40 mil casos. Ainda não temos máscaras e respiradores, ainda não temos leitos e covas. No mundo, já morreram 150 mil. Falta salário para 2,5 milhões de brasileiros, que sofreram com redução no final do mês. Faltam benefícios no INSS, fila de mais de 1,6 milhão de pedidos. Mas a falta que mais intriga Bolsonaro é a de um novo AI-5.

Na solidão de líder e gente, os brasileiros colocam na lista dos mais vendidos A arte de fazer amigos e influenciar pessoas, escrito há oitenta anos por Dale Carnegie, bíblia das mães e avós. As pessoas viajam sem sair de casa, dançam, bailam, se exercitam, cantam em espaços virtuais. Sem futuro, as pessoas aprendem a cortar o cabelo em casa, a pilotar o fogão, a fazer pão com levain caseiro e compotas com sobras, colocam o aspirador de pó no primeiro lugar dos eletrodomésticos mais vendidos, bordam, tricotam e desenham enquanto visitam museus na telinha, cuidam e conversam com plantas, arrumam os livros rebeldes que nunca leram na prateleira.

Morrer, todo mundo vai, é a máxima do capitão. Paciência. Um triste Brasil ressurge no mapa, de velhos acuados, porque se chegar a hora de serem ou não escolhidos, vão morrer. Hospitais públicos se recusam a atender pacientes para não ter de escolher. E Teich é partidário de não gastar muito dinheiro com saúde, porque, quando tudo melhorar, vai sobrar muita máscara e respirador. “O adolescente tem toda vida pela frente e o outro é uma pessoa idosa, que pode estar no final da vida. Qual vai ser a escolha?”, pérola do Teich.

Esta semana, que começou com carreatas e discurso do presidente diante de “infiltrados”, trouxe a morte de gigantes da literatura. No Chile, Luis Sepúlveda; no Brasil, dois mestres, Luiz Alfredo Garcia Rosa e Rubem Fonseca. Uma boa dica de literatura e romance policial para escapar – escapar se for possível – dessas histórias que não deveriam ser contadas.

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Norma Couri é jornalista.