O coronavírus escancara as fraturas brasileiras. A doença está aí e atinge a todos, ricos ou pobres. No final de março, enterraram trinta pessoas por dia em São Paulo, metrópole econômica e financeira do país. Um vento de pânico, de protestos surpreendentes, sacode a instituição social e governamental. As incongruências e os limites, embora bem conhecidos, do chefe de Estado Jair Bolsonaro, abriram a página, até agora adiada, da sucessão, da rendição e da acusação no colegiado do Executivo. A covid-19, que parecia bem longe até o final de fevereiro, se alastra como mancha de óleo. Em 26 de fevereiro de 2020, o primeiro suspeito de infecção é hospitalizado em São Paulo. E a primeira morte é notificada, ainda em São Paulo, em 17 de março. Os números disparam rapidamente: 4.579 infectados em 29 de março, 4.683 em 29 de março, 5.713 em 1º de abril. O Brasil passa de um caso para 1.000 em 27 dias, de 26 de fevereiro a 27 de março. E de 1.000 a 2.000 em seis dias, de 21 a 27 de março. O ritmo das mortes registradas do dia D–1 (data da primeira morte) ao D-13 ultrapassa o do Itália, com 107 falecidos na Itália e 136 no Brasil¹.
A resposta na cúpula do Estado, no entanto, não foi a mesma na Itália e no Brasil. Desde o início, sobre esse assunto como em muitos outros, o presidente Bolsonaro adotou, tal como fez seu modelo Donald Trump, o negacionismo. Em 10 de março, na Flórida, ele qualificou a epidemia de “fantasia”. Posteriormente, em 24 e 25 de março, ele falou de “gripezinha” e de “resfriadozinho”. Passando para o trabalho prático, ele tomou, nos dias 15 e 29 de março, banhos de multidão, apertando as mãos, dando abraços, sob o olho das câmeras das televisões nacionais. O essencial, disse ele, é preservar a economia e o emprego. Proclamou seu “não” ao confinamento e criticou a atitude de governadores e prefeitos de terem adotado medidas em prol do isolamento, o que, segundo ele, era uma “política de terra arrasada”. Disse ainda: “a quarentena é um crime”. Pressionado pelo avanço da crise, fechou as fronteiras aéreas asiáticas e europeias, deixando abertas as rotas com os Estados Unidos – no entanto, como sabemos hoje, grandemente afetado pela pandemia. Por intermédio do deputado Eduardo Bolsonaro, seu filho 03, como ele o designa, aproveitou a oportunidade da covid-19 para questionar a China e “seu vírus”. Em seguida, admitiu que as empresas deviam fechar, e, por conseguinte, propôs a elas o direito de não pagar mais o salário dos seus funcionários durante dois meses, antes de voltar atrás nessa decisão e propor o pagamento, pelo Estado, de uma ajuda mensal com vencimento de 200 reais, elevados a 600 reais por um Parlamento que passou por cima do decreto presidencial.
O bloco político e social que levou Jair Bolsonaro ao poder é, de fato, rompido pela ameaça do coronavírus. A direita moderada, o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), distanciou-se. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso abertamente pediu uma sucessão no topo do Estado. Seu correligionário João Doria, governador de São Paulo, decidiu confinar seu estado, como seu colega do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, provocando a extrema-direita, em particular o cowboy Wilson Witzel, governador do estado do Rio de Janeiro.
Em 25 de março, 24 dos 27 governadores do Brasil, em uma carta aberta, romperam com o presidente e decidiram implementar as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS). O campo próximo de Jair Bolsonaro então começou a dar os sinais de afastamento presidencial. Ronaldo Caiado, governador do estado de Goiás, amigo político de primeira hora, distanciou-se. O ex-presidente Michel Temer, cúmplice do golpe de Estado parlamentar que destituiu a presidenta eleita Dilma Rousseff – golpe que abriu caminho para Jair Bolsonaro -, escreveu-lhe para solicitar que tomasse as medidas necessárias neste desafio à saúde. O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, claramente desobedeceu ao presidente e estimulou a aplicação estrita das instruções da OMS². Fato mais preocupante para Jair Bolsonaro, Sergio Moro, o juizeco que, depois de encarcerar Lula, foi agraciado com uma pasta ministerial, disse, em 30 de março, que autorizava as forças de segurança pública a apoiar os esforços do Ministério da Saúde. Em sua conta no Twitter, Moro³ repetiu os comentários de um magistrado do Tribunal Superior Federal, aconselhando a confiar no julgamento dos cientistas.
Pouco a pouco, foram também as “elites” sociais, em amplo sentido – muitos daqueles que facilitaram a ascensão de Jair Bolsonaro ao poder – que tomaram distância. Em 27 de março, a Justiça anulou o decreto presidencial que autorizava igrejas e templos a permanecer abertos com a justificativa de serem “serviços essenciais”. Em 28 de março, a Justiça federal interditou a difusão da campanha governamental “O Brasil não pode parar”, que desqualificava as quarentenas decididas pela maioria dos governadores. Em 29 de março, a Justiça federal infligiu uma multa de 100 mil reais ao governo federal após uma caminhada nas ruas feita por Jair Bolsonaro. Vários chefes das Forças Armadas reportaram mal-estar e tomaram distância. O general Hamilton Mourão, vice-presidente, desmentiu as afirmações contra a China feitas pelo filho do presidente, Eduardo Bolsonaro.
Obrigando o presidente a seguir-lhe o exemplo e telefonar a seu homólogo chinês, Xi Jinping, em 24 de março, o general Edson Leal Pujol indicou publicamente que “o principal desafio das Forças Armadas era a luta contra a pandemia”. Os representantes de três setores das Forças Armadas teriam, segundo a redação do jornal espanhol El País do Brasil, feito duas reuniões visando preparar uma eventual renúncia ou afastamento de Jair Bolsonaro. Eles asseguraram sua lealdade ao general Hamilton Mourão, vice-presidente, que poderia ser eventualmente chamado a salvaguardar o interim.
O corpo médico, que havia apoiado Jair Bolsonaro, em sua quase unanimidade, a fim de pôr termo ao recurso governamental aos médicos cubanos, programa iniciado com Dilma Rousseff, alerta sobre os perigos de infecção e recomenda um acompanhamento estrito das recomendações da OMS. Concomitantemente, pronunciaram-se a Associação dos Médicos de São Paulo, a Sociedade Brasileira de Infectologistas, a Associação de Médicos do Brasil e a Associação Brasileira de Hematologia, dentre outras. A grande mídia, porta-voz de milhares de negócios, acompanha esse levante massivo. A revista Veja, protagonista no combate ao Partido dos Trabalhadores (PT) e a Lula, intitulou um de seus últimos editoriais: “O verdadeiro ‘capitão’ é Mandetta”.
Apesar disso, nada está garantido. O paradoxo da cegueira presidencial contra o perigo epidemiológico é de ter reunificado o centro e a esquerda. As quedas de Dilma Rousseff e de Lula haviam sido apresentadas como uma bênção por uma parte da esquerda, como por membros do Partido Socialista Brasileiro (PSB), da REDE, e por Ciro Gomes, candidato presidencial pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT). Reconciliados, eles tornaram público, em 30 de março, um manifesto comum, assinado pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB), Partido Comunista Brasileiro (PCB), PDT, Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), PT e REDE.
Então, tais partidos anunciaram ter transmitido ao Tribunal Superior Federal um pedido de suspensão provisória de Jair Bolsonaro como presidente da República. Se aceita, essa reivindicação deve ser validada pelo Parlamento. Embora defensor das medidas demandadas pela OMS, o presidente do Congresso, Rodrigo Maia, do partido de direita DEM, declarou que ele não apoiaria essa demanda, revelando, assim, de modo direto, as molas políticas da direita brasileira desde 2014: eliminar por completo o retorno do PT ao poder e, se possível, oferecer a presidência a um homem de Estado apresentável em sociedade internacional, de direita.
Em virtude de não dispor de um candidato ad hoc em 2018, Bolsonaro negociou, com a benção dos meios financeiros e do agronegócio, o apoio da grande mídia, das Forças Armadas, da Justiça e das igrejas pentecostais. O general Mourão, vice-presidente, é o encarregado de vigiá-lo em seus arroubos, para evitar deslizes prejudiciais aos interesses desses grupos, como evitar, por exemplo, uma aventura militar como a Venezuela, o deslocamento da embaixada do Brasil em Israel, de Tel-Aviv para Jerusalém, a ruptura com a China, com a Argentina, etc.
Hoje, o coronavírus coloca novamente e de modo gritante para o establishment brasileiro o problema de uma eventual sucessão que gerencie o país de modo mais racional e menos caótico, buscando bloquear completamente qualquer possibilidade de retorno do PT. Mas… Fernando Henrique (PSDB) tem mais de 80 anos e Aécio Neves (PSDB), infeliz candidato das eleições de 2014, que arrastou múltiplas panelas, é inapresentável. Quem será a bola da vez?
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NOTAS
¹ Os dados atualizados em 24 de abril pelo Ministério da Saúde confirmam que o número de mortos pelo novo coronavírus no país chegou a 3.670 e o total de casos confirmados da doença está em 52.995. Nas últimas 24 horas, houve 357 novas mortes.
² Em 16 de abril, Mandetta viria a ser demitido por Bolsonaro.
³ Em 24 de abril, Moro se demite e cai atirando…
Texto publicado originalmente em francês, em 3 de abril de 2020, no site IRIS – Institut de Relations Internationales et Stratégiques -, Paris, França, com o título “Brésil versus coronavirus: la débâcle d’un émergent”. Tradução e revisão realizadas por Maísa Ramos Pereira, Rafael Borges Ribeiro dos Santos e Luzmara Curcino.
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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, França, responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros livros, de Amérique Latine: Insubordinations émergentes (2014).