Parte I – Algo mudou
Depois que a peste se instalou na cidade, eu abandonei o tempo. Só vejo chuva. Me aprofundei sobre o tema da moléstia planetária e depois abri mão de tudo quanto era modo de informação. Sem televisão, redes sociais, fuxico de corredor ou qualquer tipo de signo que me trouxesse a essa realidade com “olheiras e olhos profundos” que assolava a minha vida. Só quem sussurrava algo do hoje era a dona Jocasta, que morava no terceiro andar, tinha 92 anos e era irrepreensível há décadas. Ela gritava uma palavra que me trazia ao contemporâneo e seu peso.
Lia Graciliano e fazia o almoço. A chuva se instalou na cidade há dias, havendo variações de intensidade, e por duas tardes apareceu a famosa chuva branca amazônica. Diziam alguns que ela realizava pedidos.
Sentia a mudança do tempo pela madrugada após o segundo canto, ela se levantava e vestia- se para trabalhar, salvar vidas, eu não me mexia, fingia que estava dormindo, mas estava chorando, pois sabia que qualquer dia desses o telefone iria tocar e eu ouviria a frase “Amor, estou infectada…” Ter certezas, às vezes, é desnecessário. Tudo seguia essa cinza cena em meu microcosmo, exceto por duas novidades: No terceiro canto do galo, percebi que a chuva tinha cessado e o milho havia terminado.
Parte II – A saída
Usei todos os protocolos de segurança para sair. Havia bilhetes espalhados por vários cantos da casa, com prescrições médicas caso fosse tocado pelo mal, profilaxia recomendável, uso dos EPIs necessários para saída de casa, receita de bolo, poemas coletivos…
Peguei a bicicleta e saí na Monsenhor Coutinho, uma rua silenciosa e quase solitária do centro da cidade, tinha esse nome em homenagem ao padre paraibano que fez muito pela caridade e foi levado à beatificação. Espero que tenha sido, também, pelo reconhecimento do trabalho nordestino na construção dessa capital. Muitos morreram de malária e outras doenças tropicais para retirar a seringa e reger os alicerces de Manaus com seus centenários. De volta à rua, provavelmente povoada por cachorros, ratos e prédios entediados por não ver uma novidade trafegando à sua frente, eu aguardava um acolhimento frio e distante como de costume. Dessa vez foi pior, nem o amigo vento estava lá, apenas duas mucuras passaram apressadas na esquina da praça do Congresso, indo em direção ao prédio dos Correios, alguma urgência telegráfica. Rss.
Parei rapidamente para olhar a praça e lembrar de momentos vividos ali, os festivais, namoros, porres, brigas, as primeiras reuniões para a criação de nossa revista literária, manifestações políticas… Tudo na minha cabeça e não se encaixava mais naquele local que vi. Parecia uma passagem das cidades invisíveis de Calvino. Segui minha missão, agora com pressa, pedalei mais intenso e cheguei a esquina da Tapajós, de um lado a igreja e do outro o centro de artes, fé e cultura, frente a frente. Me parecia que a soberba dos prédios era o que restava nesse trecho de minha trajetória, eles e suas cores, desenhos, pichações, colagens, portas e telhados, tudo tinha algo de altivez, talvez por me sentir tão pequeno nesse mundo doente. Fui até o fim da rua e tudo só estava começando…
Parte lll – Como disse Belchior: “Como o diabo gosta”
Quando pego a 10 de julho, tudo se retransforma, uma multidão desembestada ocupava o núcleo do centro antigo da cidade. Não sei de onde saiu, mas estava ali com toda a sua ignorância e propósitos supérfluos ou necessários, bares abertos, gringos passando, filas tão grandes que dava tédio de ver, calçadas povoadas de bípedes que poderiam pensar uma vez sequer. Não sei se foram incitados a estar ali ou é de sua cultura serem andarilhos, pois após a covid-19 chegar ao Brasil, o procedimento usado foi semelhante ao exercido nos outros países: isolar, classificar, controlar e tratar, pelo menos deveria ser assim. Fiquei em choque e corri com toda a força que tinha na ocasião, subi a Getúlio Vargas e nem parei para ver suas lindas árvores, os insanos consumiam todo o território, carros, ônibus, motos, pés e tudo que pudesse ocupar espaço estava ali. Peguei as ruas marginais, mas não adiantou, sempre mais gente e gente… Cheguei ao mercado e não olhei nada, comprei o milho que pude trazer na ocasião e voltei para minha casa, lugar de onde não deveria ter saído.
O retorno foi uma angústia pior, comecei a ver pessoas que me conheciam e falavam comigo, eu estava de máscara e elas me reconheceram, desviava com a bike e outros insistiam em uma palavra, eu gritava “aleluia” e gesticulava o meu idoso chapéu de campanhas passadas. Demorei mais que a ida, nunca passei por tal inferno nessa vida.
Parte lV – Em casa: um novo começo
Da porta para dentro, sigo todo o ritual de assepsia, roupa na sacola, tênis na sacola, banho demorado e todo o inferno de atos que possivelmente protegeriam a minha casa. Finalmente bebo uma cerveja demorada e dou milho às galinhas, deito na cama e vejo a chuva voltar ao mesmo, mesmo de antes, isso me trouxe algum conforto. A ausência de algo me incomodava e voltei às memórias do cárcere. O telefone toca e ouço a única frase que nunca queria ter ouvido. Ela ficaria recolhida no hospital entre os pestilentos, o telefone caiu de minha mão e chorei muito, a chuva me acompanhou com suas águas doces e intensas. Fui ao depósito e joguei as ferramentas no chão, peguei a caixa e levei ao quarto, a coloquei próximo da estante de livros, retirei o jornal que chegava todos os dias e forrei a caixa. Percebi que a manchete da edição do dia era “90% da população de Manaus tem covid-19”. Li e não liguei, fui ao galinheiro e peguei o nosso querido galo, ele não resistiu como de costume, parece que sentia a tristeza que ocupava centímetro a centímetro a minha lastimável vida. Ficamos durante a madrugada eu e Golias olhando a chuva e consolando um ao outro com o olhar.
Longe ouvi uma cantiga de aniversário, palmas e risadas. Isso é bom. Ainda há esperanças, o galo Golias não cantou nesse amanhecer molhado.
***
Max Caracol é formado em filosofia, professor e editor da revista Sirrose. Trabalhou na TV Ufam como produtor e diretor. Está no meio dessa nuvem letal que assola Manaus.