O problema do Brasil ter virado uma nau de insensatos é que estamos dentro dela. À deriva. Dói admitir que o destino do Brasil é a chanchada, estapafúrdio como as gargalhadas arrancadas por Oscarito e Grande Otelo. Ou que o protótipo do brasileiro é Jeca Tatu no elenco ora de um espetáculo circense, ora de uma ópera-bufa. Quem acertou foi Mário de Andrade, o brasileiro Macunaíma, herói sem nenhum caráter, comandando a nação e nós dentro dela sem nem poder sair às ruas para evidenciar o desejo do impeachment.
Há quem prefira um Brasil idealizado por H.G. Wells, que, em 1895, escreveu A máquina do tempo, onde os morlocks, zumbis encarnando antropóides, aterrorizavam os habitantes da Terra: nós. Três anos depois, o genial escritor britânico escreveria A guerra dos mundos, cujo prólogo, lido por Orson Welles em 1938 no rádio-teatro, durante meia hora, causou pânico e suicídios nos Estados Unidos. O cineasta relatava uma invasão alienígena devastadora com tanto realismo que simulou marcianos invadindo a emissora.
Estamos vivenciando um reality show de assombrações estrelado por Jeca Tatu, Macunaíma, marcianos e morlocks. Tudo num cenário de pandemia que é a própria guerra dos mundos, onde 4 milhões foram infectados pela Covid-19 – mais de 11 mil no Brasil.
Ficou mais ou menos explicado quando cientistas descobriram que o coronavírus pode se multiplicar nos neurônios, atacando o cérebro. No dia em que o Brasil enterrou 751 corpos em 24 horas, Bolsonaro anunciou que faria um churrasco para trinta, 3 mil amigos, com pelada. Dias antes, havia cruzado a praça dos Três Poderes rumo ao STF acompanhado de uma comitiva fúnebre formada por lobistas-empresários que anunciariam o enterro – não do CPF de brasileiros, mas do CNPJ das empresas. Jô Soares chamou a comitiva de exército de Brancaleone.
Bolsonaro nos ameaça com ameaças de golpe. O que, segundo o historiador José Murilo de Carvalho, deixou um dilema aos militares que embarcaram no governo. O presidente disse que as Forças Armadas estão com ele – tem 22 militares no governo, quatro dentro do palácio. Até a Saúde o ministro Teich recheou com vários militares. “Bolsonaro dará o golpe se puder”, afirma o ex-juiz e governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB). Mesmo que as Forças Armadas tenham, em seguida, reforçado o desejo de democracia, Mario Sergio Conti detalha na Folha vários pretextos que facilitariam o golpe de Bolsonaro, amparado pela elite financeira, o corporativismo das Forças Armadas e uma parcela de 25% de “idiotas e canalhas”: ele descumpriria uma ordem judicial, haveria saques, a prisão de um dos Zeros, inventaria a sublevação de um setor do PM, um levante popular ou, os culpados de sempre, inventaria uma conspiração comunista.
Bolsonaro quer a Polícia Federal do Rio. Troca o comando para aliviar casos envolvendo a morte de Marielle que estourariam como uma bomba no seu pé e no dos seus garotos. Para evitar que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, coloque em pauta o impeachment obedecendo aos mais de trinta pedidos, Bolsonaro faz o que prometeu que não faria na campanha: a velha política, acordos de R$ 78 bilhões com o Centrão, comprometido com corrupções de vários quilates, em troca de apoio e, assim, da pulverização de Maia.
Os exames atestando que está livre do vírus ele não mostra. E segue abraçando, apertando mãos, emitindo perdigotos malditos. Se ficar provado que está infectado, terá cometido o crime de responsabilidade incompatível com o decoro do cargo e incorre em vários artigos do código penal por causar epidemia, propagar doença contagiosa.
Bolsonaro irriga fake news. Coloca no Ministério da Saúde um ministro que os próprios secretários da pasta vêem como “perdido”, sem colocar máscara nem colete do SUS. O Brasil já ocupa o sexto lugar do mundo na crise do coronavírus, que pesquisadores como a doutora Margareth Dalcomo, da Fiocruz, estimam prestes a infectar 1,6 milhão de pessoas. Sem conseguir acessar os R$ 600,00 que lhe cabem, o cordão da pobreza extrema cada vez aumenta mais e atinge 13,88 milhões de brasileiros. Leitos públicos de UTI devem acabar na maioria dos estados. Já está identificado como o pior presidente do planeta nesta crise.
Bolsonaro, em dia de luto, passeia de jet-ski no lago Paranoá. Nada de mais para quem fechou as Comissões da Anistia e dos Direitos Humanos. No alto de seu um terço de apoiadores nanicos, manda a imprensa calar a boca. Os bolsonaristas podem tudo (“é a democracia”, explica cinicamente o comandante desta nau de insensatos), agridem, chutam, batem nos enfermeiros que pedem reclusão e – como sempre – na imprensa.
O projeto fascista se alastra e somos obrigados a ver Regina Duarte na CNN cantar o hino da ditadura, Prá Frente, Brasil (“não era bom quando a gente cantava assim?”), meio dançando na cadeira para explicar que tortura sempre houve, “olha o Stalin”, e mortos sempre teve. Regina estava parodiando Bolsonaro, que, sobre o caso Herzog, disse: “suicídio acontece”. Ela está adorando o cargo de Secretária. Nós e os 500 artistas que assinaram um manifesto em seguida é que não. O general Villas Bôas, figura de proa entre os militares, elogiou a sensibilidade de Regina, que se recusou a dar uma nota de pesar aos artistas e escritores mortos. E olha que não foram poucos: Flávio Migliaccio, Moraes Moreira, Aldir Blanc, Rubem Fonseca, Luiz Alfredo Garcia-Roza…Depois, viriam mais, Jesus Chediak, Sergio Sant’Anna… “Não sou um obituário”. Grande Regina.
A invasão de alienígenas aumenta. Um grupo de peso reagiu à gravíssima irrelevância do Itamaraty, ao seu ridículo papel na crise do coronavírus, à “vergonhosa subserviência” e à irracionalidade. O documento saiu na imprensa assinado por Fernando Henrique Cardoso, os ex-chanceleres Aloysio Nunes Ferreira, Celso Amorim, Celso Lafer, Francisco Rezek, José Serra, o ex-embaixador em Washington, Rubens Ricupero, e o ex-secretário especial da presidência da República, Hussein Kalout. E não é que o chanceler Ernesto Araújo chamou a todos de hipócritas? E daí?, diria o presidente. No tal vídeo do dia 22 de abril, apontado por Sergio Moro como prova das acusações contra Bolsonaro, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, descreve a corte do Supremo como composta por onze “filhos da puta”.
As despesas com cartão corporativo da Presidência dobraram nos quatro primeiro meses deste ano e chegam a R$ 3,76 milhões, sem qualquer detalhamento. Ultrapassaram os gastos de Lula, Dilma e Temer. Só nesses quatro meses, o desmatamento na Amazônia aumentou 55,5% e os grileiros avançam. O Ibama e o ICMBio passam a ser subordinados aos militares. Um despacho do ministro Ricardo Salles, do Meio Ambiente, recomenda que se esqueça a Lei da Mata Atlântica, uma conquista de vinte anos de luta no Congresso, e se use o Código Florestal – o que, trocando em miúdos, cancela multas e o reconhecimento de áreas de proteção permanente. Sebastião Salgado adverte sobre o risco iminente de extermínio dos indígenas.
O filósofo Ruy Fausto, morto no primeiro dia de maio deste ano, avisou: “nunca se mentiu e se enganou tanto como se mente e se engana no Brasil de hoje”. E a ministra Cármen Lúcia, no Globo de 10 de maio, escreve sobre o medo e adverte: “há sempre um pirata corsário de desumanidades pronto a tomar de assalto o navio de desistentes”.
É nessa nau que mora o Brasil? Vamos sucumbir aos zumbis?
José Eduardo Agualusa escreve no Globo (9 de maio) que há milagres no subdesenvolvimento, transformar fraqueza em força é algo que aprendemos a fazer. Ele se refere aos africanos, mas nós cá também estamos mais treinados para o imprevisto do que os norte-americanos, europeus ou asiáticos.
Só tem um problema. Como diagnosticou Nelsinho Motta (Globo, 8 de maio), de tanto sofrer, estamos enlouquecendo. Regina enlouqueceu. O Planalto enlouqueceu. O panorama do país é enlouquecedor. Os marcianos estão invadindo a Terra, será a hora de cometer suicídio por pânico, como fez Flavio Migliaccio, dizendo “daqui pra frente, só vai piorar?”. Ou de sermos mestres equilibristas dançando na corda bamba de sombrinha do lúcido Aldir Blanc?
O ator Lima Duarte, ao chorar a morte de Migliaccio, disse sentir “o hálito putrefato de 64, o bafo terrível de 68. Os que lavam as mãos, o fazem numa bacia de sangue”.
PS – A fantástica capa do Globo de domingo, 10 de maio, já foi ultrapassada. Não somos mais 10 mil, e sim 11.123 mortos.
PS² – Com a morte do jornalista, escritor, cineasta e dramaturgo Jesus Chediak, diretor cultural da Associação Brasileira de Imprensa, e do fundamental escritor Sergio Sant’Anna e do artista plástico Abraham Palatinik o Brasil bom, o bom do Brasil está indo embora depressa.
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Norma Couri é jornalista.