Resolvi comentar as dez últimas edições de três revistas semanais brasileiras. Mas, como são edições recentes, decidi por uma reflexão sobre essas trinta capas – afinal, é a capa o espaço privilegiado por excelência e a vitrine de toda publicação impressa. Também é corrente a percepção que as capas das revistas são os primeiros textos lidos, e, mais ainda, são elas que despertam o interesse pelo conteúdo e o desejo de consumo. Escolhi Época, Veja e CartaCapital. Elas cobrem o período de 15 de agosto a 17 de outubro de 2009.
CartaCapital foi política da primeira à décima capa. Em 19/8/2009, levou à capa a imagem de morador da favela da Maré, na zona norte do Rio, morto no asfalto do morro e aproveitou para chamar a atenção para depoimentos de familiares de vítimas de chacinas, os efeitos da impunidade e do descaso na segurança dos cariocas. Em 26/8/2009, a revista de Mino Carta estampou, lado a lado, fotos de Dilma Rousseff e Lina Vieira. Tratou daquela típica tempestade da imprensa nas profundezas de um copo d´água descartável: as versões do ‘me encontrei com você’ com ‘você não se encontrou comigo’.
As capas seguintes trataram de submarino nuclear e dos objetivos militares do Brasil (2/9/2009); o pré-sal e a urgência de sua regulamentação fazendo emergir o velho discurso privatista em um momento em que o mundo repensa o dar ao Estado o que é do Estado (9/9/2009); o destino de Cesare Battisti e as relações ítalo-brasileiras (16/9/2009). Depois tratou do que chamou na capa de ‘a tragédia da privatização’ (23/9/2009). Coerência editorial da revista, nada mais. Depois vem a capa com Gilson Dipp, do Conselho Nacional de Justiça, que comanda a fiscalização do Judiciário, em sua reportagem ‘Devassa na Justiça’ (30/9/2009).
Em 7/10/2009 a revista trata do golpe em Honduras, com Zelaya na capa com seu chapéu típico de homem de Marlboro dos trópicos; e em 14/10/2009 sobe ao altar da capa o tema ‘Um Deus cabo eleitoral’, abordando a luta pouco surda de evangélicos e católicos sobre os meios de comunicação em função das eleições majoritárias de 2010. A capa da última semana (21/10/2009) traz Barack Obama com o semblante fechado, mão no queixo, olhos no chão. O título não podia ser outro: ‘Obama em dificuldade’.
Em cada capa sua visão política. Com CartaCapital não tem muro. É a favor de uma política de segurança mais eficiente no Rio de Janeiro, denuncia factóides políticos que desejam desaguar em 2010, é contra privatizar empresas públicas como a Petrobras e o Banco do Brasil e, no futuro, o pré-sal. É a favor da extradição italiano Cesare Battisti, condena as privatizações ocorridas no Brasil entre 1994 e 2002, considera inadiável fiscalizar o próprio Poder Judiciário, apóia o Itamaraty no imbróglio Honduras advogando reempossar o deposto Zelaya, não se faz de rogada na guerrinha pelo Ibope travada pelas redes de televisão Globo e Record e analisa com a frieza possível a pesada herança deixada por George Bush para seu sucessor, o recém-laureado com o Nobel da Paz, Obama.
Quatro das dez capas trazem pessoas: Battisti, Dipp, Zelaya e Obama. Quatro tratam de guerras: segurança no Rio, compra de submarino nuclear, Dilma versus Lina e Globo versus Record. Guerra aqui é mais que força de expressão. Dietas milagrosas, cuidados com o bebê, filmes com Brad Pitt, nossos amores virtuais, bugigangas eletrônicas e ginástica para o cérebro são temas que passam longe das pautas de CartaCapital. Assim como kriptonita deve ficar longe, muito longe, do Super Homem.
Conta de chegar
Em Época imperou auto-ajuda, amenidades e assemelhados. A revista trouxe em suas dez capas assuntos como as 100 melhores empresas para trabalhar, o amor nos tempos da internet, pessoas que têm alergia a comida, o novo filme de Quentin Tarantino, a Olimpíada no Rio em 2016, o lançamento no Brasil do leitor de livro digital Kindle e os melhores conselhos que pessoas ‘bem sucedidas’ receberam em suas vidas.
Mas tem uma lógica, sim. Imaginemos que tivéssemos de cruzar uma das nossas revistas semanais com emissora de televisão brasileira… com quem você casaria a revista Época? Acertou. Época e Jornal Nacional, tudo a ver. Sete capas poderiam ficar de prontidão em uma despensa imaginária pois não teriam prazo de validade. A qualquer momento, a qualquer semana, poderiam ser colocadas à venda em bancas de revistas e remetidas aos assinantes. Mais uma vez a ordem natural das estações não seria alterada pelos temas de sete das dez últimas capas de Época. Apenas três trataram de assuntos, vamos dizer, ligados à realidade brasileira.
Em 15/8/2009, a edição trazia bela foto da senadora Marina Silva com a pergunta em destaque: ‘Presidente Marina?’. A edição de 5/9/2009 chegou às bancas com uma capa tratando do pré-sal e sua potencial crise de identidade: um navio na linha do horizonte e 60% da capa abaixo do navio com a pergunta: ‘Dádiva ou ilusão?’. No dia 14/9/2009, a revista trazia na capa a foto de Farah Jorge Farah, o cirurgião plástico que matou e esquartejou a amante – e hoje estuda Direito e Filosofia. E a manchete: ‘Como pensa e vive um assassino’.
A julgar pelas capas, a revista Época é a menos antenada em assuntos do Brasil. Nenhuma de suas dez capas tratou da economia brasileira que, não por acaso, foi a última a entrar na crise e a primeira a sair. E, por portentoso, o feito foi matéria de capa de publicações influentes como Financial Times, Newsweek e Der Spiegel. Mas não teve apelo suficiente para ‘emplacar’ uma capa de Época.
O Brasil e sua realidade só foi alçado a duas das dez capas de Época sob análise. Foi correta quando colocou uma medalha de ouro no peito da imagem do Cristo Redentor em sua edição de 26/9/2009, e foi a insegurança em forma de revista semanal ao ver um lado muito, mas muito sombrio e farsesco da recém-descoberta da riqueza do Brasil em sua camada de pré-sal, como vemos na capa da edição de 5/9/2009.
Época foi nórdica em suas capas. Os temas principais de suas edições poderiam ser de qualquer revista européia, publicada em Frankfurt ou em Paris. Até a capa com senadora Marina cabia bem no perfil das semanais européias, já que sua principal bandeira é a defesa do meio ambiente. Agora, convenhamos, destacar as cem melhores empresas para se trabalhar em um país com 1,8 milhão de desempregados deve ter algum apelo jornalístico que não consegui captar por inteiro. O ideal seria destacar ao menos as 10 mil melhores empresas que, numa conta rápida, dariam esperanças a boa parte do sofrido contingente de desempregados.
Jornalismo engajado
Veja trata em sua edição de 19/8/2009 da batalha infindável, tipo dízima periódica midiática, existente entre as redes de televisão Globo e Record. A capa tem como fundo encarnado uma prosaica sacola de tecido azul e, dentro, uma bomba com estopim já aceso. A manchete é abrangente: ‘Fé e Dinheiro – uma combinação explosiva’. Mas o conteúdo é marcado pela parcialidade: aqui, Edir Macedo só faz apanhar. E muito. A abertura prenuncia o que vem pelas páginas seguintes:
‘Há 32 anos, os templos da Igreja Universal do Reino de Deus recebem ricos e pobres, crédulos e descrentes, doentes, despossuídos e desesperados. A todos a igreja oferece consolo e, muitas vezes, também uma porta de saída para escapar do vício, do crime e da solidão. Mas cobra caro por isso.’
A edição de 26/8/2009 estampa o rosto histriônico do médico dublê de maníaco sexual Roger Abdelmassih. A foto tem um quê de vilão de Batman, uma mistura que vai do Pingüim ao Charada. Em 2/9/2009, a revista apela para um boné vermelho com logotipo do MST recheado com dinheiro. As notas mais vistosas que saem do boné são as de R$ 100. O título? ‘Abrimos o cofre do M$T’. Em 9/9/2009, a capa denuncia os males do alcoolismo e acena com sua prevenção não-abstêmica. Em 16/9/2009 o tema é mundo pós-crise econômica. Embora a chamada seja ‘Nasce o mundo pós-crise’, esta se encontra entalhada em uma lápide. Ato falho? Para quem enuncia um nascimento, o clima da imagem é sepulcral. A de 23/9/2009 trata dos males do açúcar. Mas é suave, pois o biscoito mesmo chorando tem resguardada sua simpatia… e em nada lembra a célebre capa com Stédile à moda capeta (Veja, 3/6/1998).
Em 30/9/2009, Veja aborda o golpe que apeou do poder Manuel Zelaya. Mas não bate em Honduras nem em seus golpistas, sejam civis ou militares: opta por bater duro na diplomacia brasileira, o que, aliás, não é novidade alguma. O título é ‘O imperialismo megalonanico’. É a forma encontrada para depreciar e desmerecer o Itamaraty. Uma ave de rapina auriverde e belicosa em sua capa substitui a tradicional ave de rapina que integra tão bem símbolos nacionais de países como os Estados Unidos. Só que a ave de rapina desses países se apresenta quase como um bem-te-vi, um canário ou um sabiá. E nada nos traz à mente idéia de beligerância.
Em 7/10/2009, temos um Redentor levitando. No peito do Cristo lemos assim mesmo, em inglês, ‘Rio loves you’, e ao lado ‘Maravilhosa e Olímpica’. As duas capas seguintes tratam de assuntos sem data de vencimento. A de 14/10/2009 com bebê ao gosto do dr. De Lamare e o título ‘Enfim, alguém me entende’. A da semana passada (21/10/2009) traz ilustração de Einstein com o cérebro fatiado e o título ‘O cérebro do gênio’.
Veja também não espera que o muro ande para que expresse seu credo. Os colunistas são engajados. Editores de suas seções, também. Basta ver as frases pinçadas para a seção ‘Veja essa’. Num relance se sabe quem deve ser sempre ridicularizado quem deve – sempre – sair bem na fita.
Caminho perigoso
A partir das capas podemos ver como a realidade é apresentada por este ou aquele projeto editorial. A própria escolha dos assuntos que vão para a capa prenuncia o pensamento, a ideologia, as lentes com que a realidade será vista, analisada e sentida. Vejamos a situação de Honduras. Leitores de Veja verão de forma diametralmente oposta a dos leitores de CartaCapital. E já começa pelo título de Veja (30/9/2009) – ‘O imperialismo megalonanico’ – e o de CartaCapital (7/10/2009), ‘A vitória da diplomacia’.
Se CartaCapital fala na tragédia da privatização (23/9/2009), Veja decide falar dos males do açúcar (também 23/9/2009). A questão do petróleo na camada do pré-sal também é cabo-de-guerra entre Época/Veja e CartaCapital. Época (5/9/2009) questiona o próprio sentido e importância da descoberta de tão extensas reservas de petróleo para o Brasil, pergunta se isso é dádiva ou é ilusão e envereda pelo velho e carcomido maniqueísmo do bem e do mal; enquanto CartaCapital (9/9/2009) resolve tratar do tamanho do Estado e resgata a longa história por trás do famoso dístico ‘O petróleo é nosso!’.
Nas trinta capas analisadas observamos a olho nu – com maior ou menor destaque – o abuso das três revistas na exploração de formas de linguagem capazes de seduzir os simples mortais. O objetivo é o de sempre: garantir vendagem, aumentar sua carteira de assinantes e, por osmose, ter um produto poderoso a oferecer aos anunciantes. E, para conseguir isso, às favas com o discurso jornalístico tradicional.
As capas tendem a ter imagens fortes, cores muito vivas, títulos impressos com a tinta do escândalo e do sensacionalismo. A revista Veja, por exemplo, é especialista em títulos fortes, com poucas letras (M$T – Desmascarado – Fé e Dinheiro ) e imagens igualmente fortes como a sacola do dízimo e a bomba com estopim aceso; Época com Brad Pitt empunhando faca de escalpelar nazista; CartaCapital com cadáver estendido à céu aberto na favela da Maré e periscópio de submarino nuclear.
Em sua maioria, as capas conjugam jornalismo com publicidade. Mas o tom de polêmica é buscado à exaustão. O caso do tratamento de Veja para o açúcar ou a ave de rapina auriverde em momento de semifúria. E também o caso de ‘devassa na Justiça’ na capa de CartaCapital. E, finalmente, o reducionismo de Época às propaladas riquezas do pré-sal brasileiro ao enveredar pelo simplório maniqueísmo.
Como o poeta
Não foi necessário reunir um amplo estoque de capas dessas revistas semanais para comprovar que a ideologia da objetividade – ou imparcialidade – no tratamento dos fatos pelo jornalismo não se põe de pé – e ganha terreno a concepção dos estudiosos da comunicação de que a realidade é que é uma construção da atividade jornalística. É o velho uso da agenda pública imposta pelos meios de comunicação que entorta a visão que temos do mundo.
É também curioso observar a preocupação de nossas revistas semanais com temas de saúde pública ou de comportamento. É o caso das capas tratando da alergia a comida, do males do açúcar, do alcoolismo, do leitor de livros digitais (Kindle), dos amores no mundo virtual, das boas empresas para trabalhar e dos conselhos que fizeram as pessoas serem profissionais de sucesso. Cabe perguntar: estariam as revistas semanais enveredando pelo caminho sem volta da auto-ajuda? Ou cada um desses temas tem em sua retaguarda interesses menos explícitos e de natureza eminentemente publicitária/financeira?
Outra constatação: critérios tão antigos quanto o ofício de informar vem sendo colocados à margem do processo. Refiro-me a critérios como noticiabilidade e relevância pública, que cedem cada vez mais espaço a interesses políticos e mercadológicos. Arrisco-me a inferir que não vejo futuro no médio prazo para nossa atividade jornalística se não houver, desde logo, uma tomada de posição – isso que os ingleses chamam de turning point – em relação ao sentido do jornalismo de forma específica e da comunicação social, de forma mais abrangente.
Chega um tempo em que os leitores e telespectadores, os ouvintes e os internautas exigirão respostas imediatas – e assertivas – quanto aos interesses que movem as engrenagens disso que chamamos de imprensa. Não tardará a chegar o dia em que o leitor mediano ao comprar determinada revista em banca de jornal irá se perguntar:
– Qual a contrapartida que a empresa que edita essa revista está levando com essa matéria?
– A quem interessa essa campanha contra este movimento social?
– Induzir a população ser a favor ou a ser contra este ou aquele governo… interessa, mesmo, a quem?
– Quem está por trás dessa reportagem?
Mas há dois tipos de perguntas. Uma que precisa ser respondida e outra precisa ser vivida. Há perguntas práticas e perguntas existenciais. Perguntas práticas se contextualizam no horizonte da objetividade. Perguntas existenciais não provocam respostas imediatas, mas precisam ser respondidas. É o caso destas que começam a se aninhar no imaginário do distinto público consumidor de notícias. E existe também esse imenso vazio de humanidade a ser preenchido. Há que se escrever de outra forma, alijando velhos paradigmas da comunicação para os porões da memória.
Pensei em escrever apenas manchetes para jornais. Sem notas explicativas e sem seções do tipo ‘entenda o caso’. A própria manchete daria conta do recado. Pensei em escrever um poema sem nome, desses que se acerta com o nome à medida que se vai lendo. Nada de poemas fabricados com as placas duras e cinzentas do concreto que tanto se enraízam em Brasília. Pensei em escrever uma palavra de consolo e esperança aos que tombam inocentes, nas guerras inúteis e sem sentido que povoam nossos noticiários. Nada de lágrimas de luto nem de desespero incontido.
Na verdade, queria escrever mil páginas com um só sopro, sopro de vida, sopro de alma. Nada de lufadas criando sensações de desalinho e de desalento. Queria – como o poeta – compor sinfonia que contivesse pausa de mil compassos. E queria escrever a quem me alfabetizou que fiz bom uso da maioria das letras do alfabeto. Nada de x, y ou z e muito menos de palavras que vagam pelos dicionários sem qualquer senso de direção, desnorteadas em meio a tantos milhares de verbetes.
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Mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo; seu twitter