A OMS recomendou que a população consuma menos notícias durante a pandemia. Concretamente, a indicação da entidade é atualizar-se com reportagens uma ou duas vezes por dia¹. Até agora, esse tipo de alerta de “consuma com moderação” era feito principalmente para drogas (legais) ou radiações solares comprovadamente cancerígenas. Mas, agora, a principal referência global em saúde, que direciona nossos atos e as políticas públicas, gera essa recomendação em referência a uma das únicas ferramentas com eficácia comprovada para enfrentar o vírus: a informação.
A última reunião da RedeComCiência (Rede Brasileira de Jornalistas e Comunicadores de Ciência), que aconteceu via Google Meet na segunda-feira, dia 1º de junho, teve o objetivo declarado de que os jornalistas e divulgadores de ciência refletissem acerca do trabalho que está sendo feito. O convite aberto, feito pelas mídias sociais, foi para uma atividade que teria duas horas integralmente dedicadas a responder duas perguntas:
1) Como você avalia a cobertura do jornalismo e da divulgação científica em relação ao novo coronavírus no Brasil?
2) O que pode ser feito para melhorar a qualidade da cobertura?
“Gostamos de ter um espaço para trocar ideias e projetos. Dali, surgem conexões improváveis e projetos incríveis”, comentou André Biernath, jornalista especializado em saúde, repórter de Veja Saúde e presidente da RedeComCiência. Ele solicitou que os participantes desabafassem livremente “para que as nossas dores de hoje sejam o alívio de amanhã”. O resultado foi o que Juliane Duarte, diretora de comunicação da RedeComCiência, definiu como “uma reunião aberta, com diversidade de vozes e senso de coletivo”.
Na opinião do biólogo e divulgador científico Eduardo Lobl, que durante a pandemia produziu um podcast e infográficos para as redes sociais, os meios enfrentam um desafio inédito na hora de cobrir a maior crise sanitária mundial. Não é apenas a velocidade e o volume de informação que se publica e compartilha, mas, pelos dados preliminares, são informações desencontradas e notícias falsas com agenda própria que geram confusão. “O usuário não consegue distinguir o que é correto ou incorreto, o que tem validade científica e o que não tem, e os meios de comunicação gastam muita energia em estabelecer fatos esclarecidos pela ciência.”
Eduardo propõe reavaliar o volume e a forma da informação que se produz, mas, acima de tudo, “devolver às pessoas o poder de julgar o que é certo e o que não é, proporcionando educação científica”.
“Estamos diante de uma grande demanda por informações corretas, rápidas e de qualidade sobre ciência e Covid-19. Qual é a formação do jornalista que escreve sobre ciência no Brasil?”, indagaram outros dois membros do grupo, Graciele Almeida de Oliveira e Diogo Lopes de Oliveira. Diogo, jornalista que trabalha com comunicação da ciência, participou na Live diretamente dos Estados Unidos, onde é professor visitante da Universidade de Cornell. Graciele, com doutorado em bioquímica, especializada em jornalismo científico e que faz parte da equipe de administração de Blogs de Ciência da Universidade de Campinas (Unicamp), mora em São Paulo.
Graciele e Diogo pesquisaram quantos dos cursos de Jornalismo oferecidos no Brasil têm uma disciplina dedicada exclusivamente ao jornalismo científico e quais têm o jornalismo científico como um dos tópicos em dada disciplina. “Nós procuramos, um a um, nos cursos de jornalismo das Universidades Estaduais e Federais, as grades, ementas e Projetos Políticos Pedagógicos. Nos cursos em que as informações não estavam disponíveis, consultamos os coordenadores dos cursos de jornalismo. Dos 524 cursos de jornalismo no Brasil, 64 estão distribuídos em Universidades Federais e Estaduais, 26 deles têm uma disciplina exclusiva para jornalismo científico e três delas são obrigatórias”.
Este levantamento faz parte do conteúdo do livro “Pensando o Brasil pós-Pandemia: Reflexões e Propostas” com lançamento previsto para o dia 10 de julho de 2020. “Hoje há também cursos, oficinas e webinários e gostei muito do Manifesto da RedeComCiência, que trouxe sugestões” – disse Graciele.
Ficou sob a responsabilidade de Monique Oliveira, jornalista com ampla experiência na cobertura de ciência na revista IstoÉ, Folha de S.Paulo, G1 e formada em Ciências Sociais, falar das dificuldades do jornalismo de ciência em lidar com as controvérsias. Após um mestrado no Labjor, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e terminando o doutorado em Saúde Pública, o interesse de Monique é pela ciência como um campo de disputa e o mapeamento de controvérsias científicas.
Monique afirma que a mística da ciência a coloca como a resposta exata e correta “quando sabemos que, dentro da própria ciência, ela se configura como um campo de disputa. Mas o jornalismo não leva para o campo do texto as disputas que estão no campo científico”, explica. “Há uma dificuldade histórica, relacionada com o positivismo e a uma ciência do século XIX, que é unicausal. Hoje não é assim, temos esferas de multicausalidade para os fenômenos ou sistemas de caos. Parte da preparação do jornalista é entender a ciência, e o jornalismo tem que se moldar para refletir as controvérsias”.
Monique fez questão de falar de um outro fator que afeta a qualidade da cobertura: as condições materiais e como as empresas dão suporte aos jornalistas. Ela usou como exemplo sua própria história, em que para fazer um curso ou assistir uma palestra ligada à divulgação científica tinha que pagar aquelas horas trabalhando mais dentro da redação.
“No G1, cobria ciência, saúde, astronomia, meio ambiente, e depois juntaram educação. Era algo insano”, sintetizou Monique. “Por isso, redes de jornalistas como esta, fora do campo, fora das condições de trabalho de uma redação, são fundamentais. E se tiverem apoio financeiro para produzir conteúdo, poderia se fazer jornalismo de qualidade fora da condição estruturante de como as redações se configuram”.
Ana Beatriz Tuma, Mestre em Divulgação Científica pela Unicamp, doutoranda em Ciências da Comunicação na Universidade de São Paulo, onde estuda Divulgação Científica, com foco nos youtubers da ciência, levou o bate-papo longe dos estudos dela, para uma descoberta nascida da sua experiência pessoal na quarentena.
Ana Beatriz está fazendo o isolamento em uma cidade do interior do estado de Minas Gerais. “Tinha conhecimento pelo Atlas da Notícia dos desertos e semidesertos de notícias, mas nunca tinha vivenciado. Aqui existem dois veículos locais, que só informam números, e na base do Boletim Epidemiológico. Não há jornalistas que deem outra informação, e mesmo sofrendo uma epidemia, não tem notícias sobre dengue”, ressaltou. “Aqui, o melhor local para se informar é ouvir o que se fala no supermercado”.
Ana Beatriz não fugiu à pergunta de “O que fazer?”: “É fácil falar em investir mais no jornalismo, mas a realidade é outra. Podemos talvez tomar o exemplo da BBC, que é mantida por impostos. Mas também é preciso ter cuidado para manter a independência editorial”, sugeriu.
A jornalista Eveline Araújo, com mestrado em Antropologia Social e doutora em Saúde Pública, trouxe para a discussão a deficiência na cobertura jornalística sobre o Sistema Único de Saúde (SUS). “Os jornalistas deveriam entender o SUS como sendo um sistema que tem um valor muito grande. E quanto mais a população se apropriar de como funciona, mais forte ele fica”. Ela lembrou que existe um movimento político grande de desmantelar o SUS ou descaracterizá-lo por meio de parcerias público-privadas e afirmou que o SUS merece “um olhar mais acolhedor por parte da mídia. É necessário mais empenho para fazer isso, pois, durante e após a pandemia, precisamos de um SUS mais forte”.
Eveline destacou que o público se beneficiaria se a imprensa fizesse uso de outras fontes de informação, como antropólogos, cientistas sociais, conselheiros de saúde e os próprios usuários, e se tivessem um olhar sobre a periferia que não reforçasse estigmas. Recomendou à imprensa inovar, prestando mais atenção aos comentários, que “servem de conteúdo para novas pautas”. Para a questão do financiamento, deixou uma sugestão de seguir o modelo das startups.
José Paiva trouxe uma outra visão. Faz um ano que dirige a Agência de Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Jornalista com mestrado em Educação, José começou a trabalhar com divulgação científica sem muito conhecimento prévio no Instituto do Cérebro: “Vim da política e caí na divulgação da pesquisa básica em neurociência!”.
A Universidade, que divulgava majoritariamente eventos e pouco do que os cientistas pesquisavam, aprovou recentemente um programa de extensão para dar mais visibilidade à ciência produzida pela instituição. Assim, conseguiram aumentar a atenção da imprensa de forma relevante. “Aumentamos o número de notícias publicadas e fortalecemos a cultura científica da região”. Entre as ações que fazem diferença, mencionou um ciclo de palestras sobre jornalismo científico, que começa este mês.
Com a pandemia, a UFRN virou uma das principais fontes de informação da região, até porque fazem a metade dos testes de Covid-19 do estado. “Hoje, o momento é muito delicado”, reflete. “É um grande desafio montar o trabalho para responder perguntas complexas com cuidado de não gerar crise política que não é bom neste momento”.
Em concordância com a missão da RedeComCiência, o debate teve a participação de uma estudante de jornalismo, Bruna Belote, de 19 anos. Bruna lamentou que as universidades não abordarem o jornalismo de ciência e mencionou também as dificuldades em fazer iniciação científica. “A ciência é muito importante para criar bons jornalistas e as faculdades precisam se adequar. O meu desejo é que a nova leva de jornalistas não precise sofrer tanto para levar a ciência à população”.
Ricardo Machado, jornalista que desempenha o papel de assessor em comunicação de área de saúde chegou com um desabafo e um grito. “A cobertura televisiva é editorializada e amplia a desconfiança e a polarização”. Mencionou a pesquisa sobre fake news realizada em 2019 pela Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) em parceria com a Aavaz. O levantamento evidenciou que os meios de comunicação têm credibilidade e “isso mostra a responsabilidade que ainda temos”, mas alertou que “é fácil fazer desandar quando se tem uma cobertura exagerada.
Machado lamentou também a cobertura generalizada da Covid-19 focada na morte. “Era importante no início, para fazer a população brasileira entender o risco, sobretudo, com o trabalho contrário do presidente da República de minimizar esse risco. Mas chegou uma hora que saturou demais e as pessoas acabam abrindo mão da notícia, porque não aguentam mais ser bombardeadas por tanta pressão negativa.”
O grito de desespero do jornalista foi em relação à cobertura da imprensa tão focada em haver logo uma potencial vacina. “Sabemos que não vai ser tão fácil”, disse com o conhecimento acumulado como assessor de imprensa da SBIm. “A pandemia trouxe de volta a valorização da ciência e das imunizações, mas sabemos que vai demorar e pode ter reações adversas. É preciso falar dos benefícios, mas também dos riscos.”
Ele não deixou de mencionar a dificuldade que enfrentam os jornalistas de encontrar fontes confiáveis e no quesito soluções e falou da importância de qualificar os cientistas para que possam se relacionar com a mídia.
O debate foi finalizado pelo vice-presidente da RedeComCiência e diretor da agência de Comunicação SENSU, o jornalista e doutor em ciências Moura Leite Netto. Moura fez um necessário olhar para o outro lado do balcão. “As pessoas não estão conseguindo entender o que estamos dizendo. A ciência tem que chegar às pessoas. Temos que levar essa cultura científica, com clareza e assertividade. Atravessar as pontes e diminuir a distância, tornando a ciência algo comum a todos”. Antes da pandemia, afirma Moura, os jornalistas, assim como os cientistas, estavam pouco valorizados pela sociedade brasileira. Ele agora fez um apelo “precisamos sair da pandemia mais fortes.”
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Referências
¹“Minimize assistir, ler ou ouvir notícias sobre o COVID-19 que fazem com que você se sinta ansioso ou angustiado; busque informações apenas de fontes confiáveis e principalmente para que você possa tomar medidas práticas para preparar seus planos e proteger a si mesmo e aos entes queridos. Busque atualizações de informações em horários específicos durante o dia, uma ou duas vezes. O fluxo repentino e quase constante de notícias sobre um surto pode fazer com que qualquer um se sinta preocupado.
– WHO Mental health and psychosocial considerations during the COVID-19 outbreak 18.3.2020. <https://www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/mental-health-considerations.pdf?sfvrsn=6d3578af_2>
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Roxana Tabakman, é bióloga e jornalista, autora de A saúde na Mídia -medicina para jornalistas, jornalismo para médicos (Ed, Summus) e co fundadora e Diretora de Conteúdo e Parcerias da RedeComCiência.