A emissora Deustche Welle com matriz em Bonn e estúdios em Berlim, tem incumbência de ser o espelho da Alemanha contemporânea, cartão de visitas de valores regentes no país assim como multiplicá-los pelos quatro cantos do mundo. A Deutsche Welle (DW) possui em seu quadro 3.000 funcionários em 60 países.
A emissora é veiculada à pasta do Ministério Cultura e Mídia e financiada com verba de impostos. Em 2020, DW teve seu orçamento aumentado para 350 Milhões de EUR, 15 a mais do que 2019. Além disso, recebe verbas pontuais para realização de “projetos programáticos” dos ministérios das Relações Exteriores (AA) e do Ministério para Cooperação de Desenvolvimento (BMZ).
A missão da Deutsche Welle, consiste em garantir a diversidade da informação e que vozes oprimidas ganhem visibilidade. Nos últimos anos, com o estrangulamento da Liberdade de Imprensa, a DW vinha aguçando seu perfil como “Voz da Democracia”, “Voz do mundo livre” como no apoio ao Blogueiro da Arábia Saudita.
Yoani Sánchez, ativista cubana vilipendiada muitas vezes pelo regime, teve, na emissora alemã, forte parceira. Durante a feira digital re:publica em Berlim (2013), na qual Sánchez foi palestrante, a blogueira e ativista foi acompanhada durante todo o dia pela equipe pelas diversas esquinas de Berlim. Na sequência, teve espaço no programa “La voz de tus derechos” na redação de língua espanhola.
Pautas sobre Direitos Humanos e Liberdade de Imprensa se fazem imprescindíveis para o fator legitimação, para continuar recebendo robusto orçamento, além de também para exibir os valores alemães para o mundo. Mas como dizia minha sábia avó: “Nem tudo que brilha é ouro” e no caso da Deutsche Welle, existem paradoxos.
Política corporativa
É muito comum a percepção de quem vive no Brasil ou recém-chegados à Alemanha que, trabalhar na Deutsche Welle é “chegar lá” e isso é um imenso engano. Quem é movido pela paixão e pelo ofício de jornalista não será feliz ali. Não por muito tempo.
A minha experiência de uma semana “estacionada” na redação da DW em Bonn, ratificou a impressão que eu já tinha desde sempre: um aparato gigantesco que exercita jornalismo com o freio de mão puxado. No caso do jornalista e escritor carioca, J.P. Cuenca, acrescenta-se também o item dois pesos e duas medidas.
O horizonte vislumbrado pelos chefes de redação e expressado em pautas escolhidas se mostrou e ainda se mostra raso e previsível.
Minha inquietação foi o motivo para que, em vez de permanecer em Bonn, ficasse “estacionada” como freela em Berlim. Qualquer informação que enviava para o chefe de redação, era quitada com respostas ríspidas e desrespeitosas como: “Você já deveria saber disso, caso ninguém tenha te falado”. Num telefonema, ele pronunciou a sentença de morte. Na lata, disse: “Eu não vou mais pegar nenhuma matéria sua”.
Durante a edição 2020 da Berlinale, a repórter da DW, sem horário para entrevistar especificamente a atriz protagonista do filme “Todos Os Mortos”, Clarissa Kiste, segundo o assessor de imprensa, passou na minha frente, pegando o meu “Plot”, e extrapolou a janela temporária dada pelo assessor de imprensa a ela, impedindo que eu pudesse realizar a entrevista com os diretores naquele fim de tarde, já que seria necessário esperar a repórter terminar com a protagonista e entrevistar os diretores. Depois disso, a equipe teria que deixar o Lounge. Assim, o aviso do assessor de imprensa. Chegar com o aparato e com o microfone com as letras DW parece, para alguns a legitimação para furar fila e se comportar de forma nada colegial.
Essa mesma jornalista, em fevereiro de 2019, enquanto eu entrevistava de forma exclusiva o ex-deputado Jean Wyllys na Fundação Rosa Luxemburgo para um veículo brasileiro, apesar de já haver terminado sua entrevista, se manteve sentada à 1 metro do lugar atrás de mim (de forma que não pudesse vê-la) enquanto visivelmente filmava com o celular o conteúdo da entrevista, o que me causou grande susto ao constatar, já que todo o meu trabalho poderia virar pó, caso ela decidisse publicar; o que não aconteceu, mas o susto foi grande e o comportamento, ao meu ver, infame.
Jornalistas brasileirXs vivem situação dramática desde o Golpe de 2016. Profissionais dentro e fora do país tiveram que enfrentar a queda vertiginosa de perspectiva de trabalho. Para quem está no exterior, o quadro ainda é mais grave. O honorário de freela internacional está sempre acoplado ao valor do dólar e esse caminho se tornou intransponível. Com a profissão sucateada, vive-se de um status de trabalhar para empresa x e y, mesmo enfrentando grandes dificuldades.
Ingenuidade ou fala de diferenciação?
A notícia da criação da coluna Periscope de J.P. Cuenca no portal da DW Brasil, me surpreendeu. Confesso. O aparato rígido, cheio de regulamentos, não combinava com o J.P. que eu conheço. Não somos amigos, mas dividimos duas paralelidades: O amor por Berlim e o acaso de dividirmos a sensação de dor, consternação e impotência naquele dia de setembro de 2016, quando Dilma Rousseff foi afastada do governo, no restaurante tailandês Pagode, no bairro de Kreuzberg em Berlim. Na época, João fazia parte do grupo de jornalistas visitando Berlim, a convite da agência principal de turismo e prestes a sair da Folha e integrar a equipe do The Intercept.
Em junho de 2019, J. P. chegava a Berlim para ficar, integrando a triste safra de intelectuais que tiveram de deixar o Brasil.
Uma breve lida dos editores da Deutsche Welle nos artigos escritos para o The Intercept, poderia ter evitado uma situação que se mostra indigna, exemplar com o J.P. Cuenca, mas que atinge toda uma classe de jornalistas lutando com a visível ascensão do fascismo que, naturalmente, é acompanhado do estrangulamento de todas as pilastras da democracia e do Estado de Direito no Brasil e com reverberações até na Alemanha.
A atitude da emissora alemã ainda tem algo ainda mais grave. Ela abre uma precedência.
Uma análise mais profunda sobre o trabalho do J.P. Cuenca e menos vista grossa teria deixado claro o portfólio de que ele é muito mais do que um jornalista e um escritor que tem dois livros traduzidos na Alemanha pelo brilhante e premiadíssimo Michael Kegler. “Mastroiani. Ein Tag” e “Das einzig glückliche Ende einer Liebesgeschichte ist ein Unfall”.
Os textos de J.P. Cuenca, até quando ele relata sobre uma exposição com obras de Caravaggio visitadas num museu Barbieri na cidade de Postdam (vizinha de Berlim), não são desvencilhados de um cunho político. JP é um acirrado crítico do Zeitgeist e o Brasil inteiro sabe disso.
Por ironia, o texto veiculado em 29.09.2016, seu primeiro para o The Intercept delineava, de forma meticulosa, o cenário que nos acomete hoje: a censura dos que pensam.
“Nos raros períodos aparentemente estáveis da nossa jovem e frágil democracia, a censura ganha contornos menos oficialescos — ainda que bastante eficientes. Essa censura dissimulada, que atravessa toda nossa história recente, dá sinais de recrudescimento nos últimos tempos.
Ainda – ainda – é mais corporativa que estatal. O sujeito ideologicamente dissonante perde espaço e oportunidades em qualquer empresa. Nos conglomerados de mídia brasileiros, que costumam usar colunistas como pedra de toque de uma falsa isenção editorial, discordar da chefia sem estar defendido num espaço de cota é abreviar o caminho para a rua no próximo passaralho. Empregos, contratos, freelas, espaço ou cobertura na imprensa: tudo está em jogo.”
Ninguém sabia que J.P. é um ativista e uma das vozes de crítica mais expressivas do país? Ele filma suas andanças em passeatas contra os fascistas pelas ruas de Frankfurt ou, recentemente, contra o governo Bolsonaro na Av. Paulista pautado até mesmo no último texto publicado na Periscope. Ninguém da redação teve a visão para “além da borda do prato” (como ensina um ditado alemão) para reconhecer que J.P. pratica, em diferentes nuances, uma oposição extraparlamentar como tantos outros intelectuais, de fato, o fazem e o fizeram quando sob governos antidemocratas e/ou fascistas?
Paralelos
Na Alemanha, na metade dos anos 60, o movimento APO (Außerparlamentarische Opposition) tinha como seus principais objetivos, direitos básicos de liberdade de opinião, liberdade de imprensa e liberdade para se reunir em protestos. Esse movimento se faz necessário quando a política estabelecida ou brilha pela letargia como a Alemanha até meados dos anos 80 ou no momento convulsivo que vive o Brasil, de vertiginosa ascensão do fascismo e estrangulamento de todos as ferramentas de Estado de Direito. O diretor, ativista e autor, Christoph Schlingensief (1960-2010) foi o agitador necessário para a Alemanha dos tempos de Helmut Kohl, o “Chanceler Eterno” (1982-1998). Em meados dos anos 90 Schlingensief em suas performances recheadas de inconformismo, gritava “Matem Helmut Kohl!“. Mesmo que tenha sofrido consequências jurídicas, os alemães entenderam a metáfora como parte da liberdade artística. O diretor ativista berrou o sentimento dos alemães. A Era Helmut Kohl e tudo o que ele simbolizava, precisava morrer.
O âncora de programas satíricos, Jan Böhmermann fez um poema, digo, uma paródia zoando com o ditador turco, Erdogan, o que gerou um terremoto midiático no país com o desdobramento de processo aberto pela Promotoria. A sua emissora, a rede aberta ZDF, o deixou sozinho levando muita surra, principalmente nas redes sociais, até veículos da imprensa respeitada do país fizeram severas críticas ao canal por deixar Böhmermann “sozinho como se não tivesse contrato com a emissora”. A sátira causou perrengue diplomático entre a Turquia e Alemanha. Depois das críticas, a rede ZDF publicou nota, se redimindo: “Estaremos com ele (Böhmermann) até o final de todas as instâncias jurídicas. Seria bom se a DW trilhasse o mesmo caminho em direção ao que se chama Schadensbegrenzung, em língua brasileira, minimizar o prejuízo, que já é imenso!
Sobre reis, evangélicos e pentecostais
A citação de Cuenca é uma adaptação da original feita em 1761 por Jean Meslier, padre católico francês, mas em sua essência, ateu. Cuenca a adaptou para a contemporaneidade simbolizado entre bolsonaristas a aliança, naturalmente diabólica, com a Igreja Universal. Juridicamente isso pode, claro, gerar problemas, mas é simplesmente inadmissível e traição sem tamanho, a DW, em nota brevíssima, deixar o autor e escritor se espatifar no chão e ainda ser pisado pelos bolsonaristas de plantão que mal se contém em regozijo sempre “armados” das únicas migalhas que os restaram: ódio e patriotismo.
Uma entrevista com João Paulo Cuenca sobre o episódio.
Em resposta à perguntas enviadas via Whatsapp, J.P. Cuenca conversou com o OI:
OI: Anteriormente à publicação da nota oficial da DW, houve alguma conversa esclarecedora ou você foi pego de surpresa?
J.P.: “Eu fiquei sabendo por email na quinta-feira (18). Nele continha uma carta pedindo “Providências” sobre “um suposto discurso de ódio” da minha parte. Eu expliquei, pacientemente e cuidadosamente, que aquilo era uma sátira, de uma frase do Jean Meslier, uma frase (…) que é uma metáfora e que (…) trata de valores republicanos. Ela fala sobre a igreja não interferir na República, famílias nobres não interferirem no Estado. (…) Eu expliquei isso. Expliquei também que estava sofrendo ameaças há dois dias e mostrei minha decepção por ser perseguido até na Alemanha com os meus empregadores. Depois de enviar essa mensagem, eu ofereci fazer um texto esclarecendo essa história, explicando o que é uma metáfora, o que é o Iluminismo francês, o contexto histórico dessa frase, explicando o que é o tiranicídio ao longo da história e o que essa frase representaria nesse contexto atual, não podendo ser interpretada como chamado à ação, o que ela, evidentemente, não é e, no caso, eu fiz uma sátira de uma metáfora.
Depois eu ainda me ofereci para escrever uma nota, a ser divulgada nas redes sociais (se eles estivessem sofrendo muita pressão), mas não tive nenhuma possibilidade de diálogo. Poucas horas depois, ela me enviou um email me desligando e dizendo que iria publicar uma nota sobre a minha demissão. O problema principal está nessa nota. Já seria grave ser demitido por pressão do neofascismo brasileiro.(…)Eles cometeram um crime, eles me difamaram e eu pretendo ir atrás dos meus direitos. Não vou aceitar isso calado. Vou pedir retratação e indenização. (…) Eles resolveram se aliar ao pior da política brasileira, ao pior do fascismo brasileiro e ganham a simpatia da família Bolsonaro e dos piores nomes da política brasileira.(…) A postura da Deutsche Welle em me demitir desta forma desonesta e criminosa, amplificou as ameaças que eu vinha sofrendo e as agressões por email e por Inbox, sensivelmente. A coisa quadruplicou porque figuras como Eduardo Bolsonaro e uma tal deputada federal Bia Kicis aproveitaram essa plataforma que a DW ofereceu para eles. (…) Acho que o mais grave, nem é a difamação pessoal (ainda que eu vá à justiça contra isso). O mais grave é o precedente de que esses grupos de pressão fascistas podem pedir cabeças de escritores e de intelectuais, em grupos de mídia inclusive fora do Brasil. É um precedente trágico e é uma atitude uma atitude muito covarde e criminosa. Eu sou vítima de um crime.”
Quem não se comunica…
A política de comunicação da DW já se mostrou, por vezes, desastrosa. Por que não houve a chance de contornar o problema ou, pelo menos, terminar a parceria de forma digna?
J.P. Cuenca se diz “difamado” e tem razão. Fica um gosto de arrogância de salto alto e possivelmente até um tempero colonialista, quando a editoria acha alguém “fora demais da linha” e decide neutralizá-lo de imediato ou renegá-lo ao ostracismo. Se não foi isso, foi pior. A emissora, temendo um problema diplomático com o Brasil, falhou em sua pilastra-mór e naquilo que forma a sua essência: Garantir plataformas para vozes oprimidas e vozes corajosas, como a de J.P. Cuenca, uma voz imprescindível em tempos em que extremistas de direita, no mais alto radicalismo, incendeiam um país. O blogueiro e ideólogo de direita, Rodrigo Constantino, não escondeu seu contentamento.
Não é preciso gostar nem dos poemas, nem dos filmes nem diários e crônicas de J.P. Cuenca para ter consciência da gravidade desse caso. Não simplesmente no contexto do encerramento da coluna, mas os desdobramentos que essa medida causa para uma classe inteira que luta diariamente com a ignorância e o horizonte estreito de chefes de redação e política corporativa de empresas que exercem seu ofício com freio de mão puxado. Uma luz em momento de dinâmica convulsiva, foi relevante em números e forma o apoio que JP recebeu em suas redes sociais das mais diferentes pessoas, inclusive com grande importância cultural e visibilidade. Mesmo assim: a emissora Deutsche Welle deixou muita terra queimada para trás. Logo no momento em que ONG jornalistas sem fronteiras publica uma nota, em 12/06, afirmando que a liberdade de imprensa no Brasil nunca esteve tão ameaçada desde a Ditadura Militar, a emissora Deutsche Welle cede a pressão de quem pede, claramente, as cabeças na bandeja de cineastas, cronistas, deputados, escritores e jornalistas. Nesse Zeitgeist sombrio, a emissora alemã perdeu a chance de fazer a diferença e ficar ao lado certo da história.
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Fátima Lacerda é carioca, radicada em Berlim desde 1988 e testemunha ocular da queda do Muro de Berlim. Formada em Letras (RJ), tem curso básico de Ciências Políticas pela Universidade Livre de Berlim e diploma de Gestora Cultural e de Mídia da Universidade Hanns Eisler, Berlim. Atua como jornalista freelancer para a imprensa brasileira e como curadora de filmes.