Jornalista de ciência pondera, no entanto, que o maior acesso à informação científica não será suficiente para transformar a cultura científica no Brasil
Vivemos uma sobrecarga diária de informações e novidades científicas sobre a pandemia de Covid-19. Há quem considere que esse período, apesar da gravidade ou justamente por sua gravidade, traz aprendizados e percepções positivas para e sobre os profissionais da ciência e da comunicação na sociedade. Mas esse otimismo está longe de ser um consenso. Há quem pondere que os efeitos da pandemia sobre questões da ciência não são tão positivos, certos ou duradouros em uma sociedade com polarizações políticas excessivas e com resistências à ciência.
Mariluce Moura, jornalista criadora de uma das principais revistas de divulgação científica do país, a Pesquisa Fapesp — na qual atuou desde seus primórdios, em 1995, até 2014 — acredita que este período está revalorizando a comunicação, com enorme empenho de jornalistas à informação científica. “O jornalismo científico passa a ser praticado largamente, de forma a exigir que todos os profissionais adquiram intimidade com a terminologia e com o processo da pesquisa científica”, analisa a jornalista baiana, que se dedica à cobertura de ciência há mais de três décadas.
Com sua firmeza e franqueza características, Mariluce ressalta que, sem uma transformação pela base, nenhum comunicador ou veículo, por mais apurado, atraente e diverso nas formas de divulgar ciência, conseguirá, por si só, mudar a escassa cultura científica no país. “Uma confiança mais sólida e expressiva da população no conhecimento científico depende, primeiro, de uma base educacional que valorize o processo científico do conhecer”, avalia, acrescentando que será necessário uma estratégia comunicativa que mostre as conexões entre desenvolvimento social e econômico com o conhecimento científico.
Neste sentido, Mariluce tem apostado no projeto Ciência na Rua, voltado para o público jovem, e participado ativamente em webinars relacionados à Covid-19 para tratar sobre o papel da comunicação e do jornalismo, raça, inclusão social, economia, meio ambiente e outros temas.
A comunicadora e professora titular da Universidade Federal da Bahia (UFBA) também introduz o quanto, em sua perspectiva, a crise sanitária do novo coronavírus pode, ou não, renovar e valorizar socialmente as instituições científicas, bem como a prática dos divulgadores e jornalistas envolvidos.
Nesta entrevista para o Observatório da Imprensa, concedida por celular, Mariluce Moura compartilha suas percepções sobre as dificuldades e os desafios que a ciência ainda trilha para se aproximar da consciência e da vida dos brasileiros.
Apesar da educação científica ser frágil entre brasileiros, a população confia na ciência, de modo geral. Segundo a última pesquisa de Percepção Pública de Ciência e Tecnologia de 2019, 73% dos entrevistados são otimistas quanto à ciência brasileira, ao mesmo tempo em que 88% não souberam dizer onde se faz pesquisa no país. Resumindo, é como se a maioria confiasse mesmo sem compreender. Contudo, nos últimos anos, a ciência de diversos países, inclusive no Brasil, vem sofrendo uma crise de confiança em decorrência do crescimento de notícias falsas, teorias da conspiração, cortes de orçamento e ataques de políticos com crenças ou interesses contrários. Na pandemia de Covid-19 a esperança está na ciência e divulgadores científicos ganham mais visibilidade. Você acha que vai aumentar a confiança da população na ciência?
O fenômeno que você está apontando entrelaça a cultura científica com a política em termos imediatos e cotidianos do país. Essa redução da confiança da população brasileira na ciência e nas instituições científicas, principalmente desde 2018, tem alguma relação com a implantação e a expansão de um projeto ao mesmo tempo autoritário e obscurantista para conduzir o país.
Na medida em que você começa a ter na liderança do processo político nacional uma pessoa ou um grupo de pessoas que mostra um desprezo pelo conhecimento científico, que nega as evidências mais consolidadas da ciência sobre o mundo real em que estamos – um generalizado terraplanismo, como temos chamado -, isso passa a ter alguma influência sobre a população. Assim, eu diria que uma visão autoritária e obscurantista de mundo, anti-razão, anti-ciência, se espraiou neste período que você está mencionando de uma forma que não esperávamos.
Em paralelo, não tenho segurança se o fato de repousar na ciência todas as esperanças de algo surgir para minorar a doença e a morte produzidas pela pandemia, seja tratamento ou vacina, vai ampliar a confiança da população brasileira na ciência e nas instituições científicas. Partimos de uma base de cultura científica escassa no país, então, mesmo com toda a divulgação e circulação de informações ligadas ao léxico da ciência neste período, é difícil fazer previsões do que acontecerá de forma mais sustentável nos próximos anos.
Penso que uma confiança mais sólida e expressiva da população no conhecimento científico depende, primeiro, de uma base educacional que valorize o processo científico do conhecer. Além dessa base educacional, ela depende de estratégias de comunicação que apresentem, revelem, de fato, as ligações entre desenvolvimento econômico, desenvolvimento social, e tantas outras características de uma sociedade democrática e avançada, política, cultural e tecnicamente, com o conhecimento científico. Essa confiança pode ser inclusive impulsionada nas pessoas levando-as a perceber, a descobrir, pelas boas experiências educacionais e comunicacionais, o prazer que existe em ampliar as fronteiras do seu próprio conhecimento. Digamos que também esse desvelamento move a cultura científica de uma sociedade.
Devemos esperar um certo tempo para avaliar em que medida essa íntima convivência durante meses, com termos e informações da ciência, pode ter ampliado a confiança de vastas camadas da população brasileira na ciência e nas instituições científicas. Precisamos ver com levantamentos, pesquisas, etc, se mais pessoas passaram a saber que grande parte das pesquisas que tentam compreender uma doença grave e uma pandemia vem dos laboratórios de pesquisa das universidades brasileiras. Essas universidades em parte estão concentradas no Estado de São Paulo, mas de outra parte estão espalhadas pelo território brasileiro inteiro. Creio que a percepção da população quanto à ligação entre a existência de boas universidades e os avanços no conhecimento científico ainda é muito frágil.
Há quem considere que a pandemia está impondo uma nova prática jornalística, os profissionais da imprensa estão em ritmo sem precedentes, e ainda com risco de serem contaminados ou agredidos, como aponta reportagem recente no Observatório da Imprensa. Ao mesmo tempo, segundo o Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo (Projor), estamos vivenciando uma crise do jornalismo causada por tendências problemáticas como desintermediação da notícia e viés da confirmação. Para você, a pandemia tem potencial para mudar a prática e a valorização do jornalismo, sobretudo de ciência?
O que percebo é que nesta pandemia houve uma revalorização importante do jornalismo. Entre os efeitos dessa transformação produzida por uma hecatombe que se abateu sobre sociedade humana, eu destaco aqui no país a revalorização do jornalismo feito pelos meios tradicionais e espraiado também pelas redes sociais. Só que, ao mesmo tempo, está havendo um crescimento exponencial das fake news e precisamos de mais esforço e tecnologia para combatê-las.
Talvez uma possibilidade proposta pela pandemia seja a revalorização do trabalho jornalístico de apuração e de edição em novas mídias e nos veículos tradicionais, mesmo quando isso se mostra mais via plataformas eletrônicas (afinal, a leitura em papel continua a cair vertiginosamente). Agora, tenho dificuldade em entender essas transformações como permanentes, o universo da informação e da comunicação vive mudanças muito rápidas. O que eu destacaria nesse processo da valorização do jornalismo é que, de repente, todos os jornalistas estão atuando, seja nas mídias tradicionais, seja nas mídias digitais, ou mais recentemente, nas mídias sociais, diretamente com a informação científica. Então, o jornalismo científico passa a ser praticado largamente, de forma a exigir que todos os profissionais adquiram intimidade com a terminologia e com o processo da pesquisa científica. Por outro lado, continuamos com a expectativa mítica de que uma resposta da ciência venha rápido – dificilmente virá. Todos os veículos sérios, infelizmente, têm que dizer que, não, uma vacina não virá tão rapidamente. Os tempos da ciência são bem diferentes dos tempos da nossa ansiedade pessoal e coletiva. De qualquer forma, acho positivo que os profissionais de comunicação em geral, estejam precisando se defrontar com o conhecimento científico como algo que constitui o cotidiano e entretece nossa sociedade.
A pandemia no Brasil representa um risco iminente de fome para pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza e que dependem da renda de trabalho diário para sobreviver, ou cujo o auxílio emergencial de R$600 não esteja sendo suficiente. Em um webinar recentemente organizado pelo Ciência na Rua que tratou sobre impactos sociais da pandemia, foi mencionado que as comunidades pobres, especialmente o bairro favelizado de Paraisópolis na capital paulista, estão com presidentes de ruas, distribuição de cestas, escala de quem fica em casa e quem pode trabalhar na linha de frente em saúde, etc. O quão importante é para os comunicadores em geral olharem para esses exemplos de autogestão e de solidariedade em tempos de Covid-19?
Eu diria que a construção de redes de solidariedade densas e fortes nas periferias das grandes cidades estão ensinando alguma coisa importante para a sociedade em geral. Parece-me que essas redes de solidariedade podem inspirar programas políticos de partidos mais comprometidos com a social democracia ou mais comprometidos com a sociedade mais ampla. Penso que devemos nos debruçar para entender esse fenômeno do fortalecimento das redes de solidariedade e, assim, podermos trabalhar afinados com essa proposta e com seu significado.
Mesmo a reconstrução dos projetos e dos discursos de esquerda e de centro-esquerda precisa observar o que se passa no âmbito real das populações pobres das periferias das cidades, nas populações do campo, nos grupos mais marginais da sociedade. Toda essa mobilização que está ocorrendo, se receber a devida atenção e divulgação, pode dizer algo para a diversidade da sociedade brasileira como um todo.
Natalia Pasternack, bióloga, pesquisadora colaboradora do Instituto de Ciências Biomédicas da USP e presidente do Instituto Questão de Ciência, afirmou em reportagem recente para a revista ComCiência que o maior problema com a comunicação de ciência, hoje, não é o acesso à informação, mas sim a compreensão da informação. Muitos brasileiros interpretam precariamente ou espalham precipitadamente as notícias ou conclusões de estudos científicos. Quais características você destacaria para um veículo de divulgação ou jornalismo de ciência ser interessante e elucidativo para o público amplo?
Precisamos entender, primeiro, que nenhum veículo de comunicação ou de jornalismo científico, seja materializado nas produções editoriais ou existente via mídias sociais, por si só, vencerá esse gap (lacuna) da cultura científica em nossa sociedade. Precisamos entender que há um processo articulado entre a educação no sentido formal, da escola, e a educação não formal, ou seja a possibilidade de frequentar espaços culturais diversos – a população deve ter, desde muito cedo na infância, a possibilidade de frequentar bibliotecas, teatros, museus, cinemas, etc – que dá base à cultura, incluindo a científica. E sobre esse substrato é que os meios de comunicação e os meios de divulgação científica podem trabalhar, fertilizando e ampliando tudo isso.
Sem uma transformação pela base, nenhum veículo, por melhor que faça e que experimente formas de divulgar ciência de maneira mais simples e atrativa, conseguirá mudar essa realidade de uma escassa cultura científica. Temos pela frente um vasto problema, um imenso desafio da educação e da inclusão social em nosso país. Temos uma profunda disfunção na estrutura da sociedade, que também tem relação com essa falta de cultura científica.
Isso não significa que devemos parar e esperar que mudem as condições da educação e só então começarmos a experimentar e refinar formas de comunicação. Não, são processos que caminham juntos, mas não adianta atribuirmos só às competências comunicativas a possibilidade de vencer esse abismo na compreensão em nosso país do que é ciência para a sociedade contemporânea.
Lab-19, projeto de divulgação científica de um grupo de alunos do curso de especialização em jornalismo científico do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Universidade Estadual de Campinas (Labjor-Unicamp), engajados, como tantos, em contribuir para a disseminação de informações corretas e confiáveis sobre a epidemia de covid-19 para públicos diversos.
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Vinícius Nunes Alves é licenciado e bacharel em Ciências Biológicas pelo IBB/UNESP, mestre em Ecologia e Conservação de Recursos Naturais pela UFU. Atualmente é estudante de especialização em Jornalismo Científico pelo Labjor/UNICAMP, colunista do jornal Notícias Botucatu e colaborador do projeto Lab-19.