A cidade, sua textura cultural, a densidade e a narratividade de suas articulações é um dos temas de ponta para quem quer discutir a cultura desse momento enigmático que vivemos. Foi esse o tema que Christina Musse escolheu para seu estudo. Não contente, elegeu ainda uma cidade – Juiz de Fora – cujas peculiaridades são fascinantes e zona de risco para o pesquisador. Uma cidade cujos sentidos de fronteira, de periferia, de margem, de cruzamento, são potencializados de forma única. Uma cidade que, segundo a própria autora, ‘parece sempre fugir de qualquer definição, e seu próprio nome [Juiz de Fora] nos prega a peça desse jogo sutil entre o que está fora e o que está dentro, entre o que escapa e o que pertence’.
Diante desse elenco de questões provocativas, Christina tomou o rumo certo. Em primeiro lugar, procurou historicizar e contextualizar com precisão as narrativas que constroem as complexas representações identitárias de Juiz de Fora.
Essa história é contada aqui, com destreza e cuidado. Ficamos sabendo o surgimento dessa cidade-cruzamento, no século 18, como uma via de passagem, um local de descanso e encontro de tropeiros, o que por si só já traz marcas definitivas da experiência identitária da cidade. Agrega-se a isso um investimento no que se poderia chamar de o sonho do Novo Mundo. Ou seja, a transformação da vila num pólo industrial que efetivamente se desenvolveu de tal forma a ponto de ser reconhecida, Brasil afora, como a ‘Manchester brasileira’.
Eficácia significativa
Christina Musse, atenta, através de um texto bem escrito e sedutor, acompanha passo a passo a trajetória histórico-econômica deste espaço geopolítico que potencializou, num longo processo de construção discursiva, as principais questões da cidade pós-moderna. A cidade enquanto cultura, enquanto lugar de encontro, troca, trânsito.
Outro ponto de análise importante desse estudo é a desconstrução da idéia de mineiridade, um dos grandes mitos regionais brasileiros, que, no caso de Juiz de Fora, sublinha seu aspecto outsider, enquanto vila, cidade, metrópole. Juiz de Fora, ao contrário do sentido de unidade do ethos mineiro, mostra-se como o território de expressão da dialética dentro/fora, do não-pertencimento. Portanto, não compartilha, por sua própria articulação de exterioridade, da identidade de raiz barroca e do movimento republicano de construção simbólica de Minas Gerais. Mais uma vez, Juiz de Fora não se deixa apreender. Escapa.
Além do interesse histórico dessas formações narrativas, a opção por uma metodologia que privilegia a historicização cumpre aqui um papel modelar. Esta é precisamente a base conceitual e teórica dos Estudos Culturais – campo do conhecimento em que a autora se move: perceber que a construção de metáforas e formações discursivas não são pura criação espontânea. Ao contrário, são demandas concretas de períodos históricos específicos. Esta estratégia, num momento de parcos recursos e modelos teóricos que dêem conta da quebra radical de paradigmas e das questões transdisciplinares que se colocam com velocidade surpreendente, vem mostrando uma eficácia analítica significativa.
A ‘cartografia afetiva’
A mídia escolhida pela autora para tecer sua reconstrução dessa história não é certamente inocente. Esta mídia é a imprensa, uma mídia complexa, também de alta voltagem simbólica e que, a seu modo, reflete demandas e desejos bastante profundos da esfera pública, constituindo-se mesmo como um expressivo mediador cultural e adquirindo valor emblemático em determinados períodos históricos. Portanto, além de outras fontes consultadas, depoimentos gravados, material artístico e literário consultado, a imprensa ganha um espaço significativo nesse estudo.
Assim como a reconstrução da trajetória histórica de Juiz de Fora, a reconstrução da história da imprensa local em momentos-chaves da cidade evidencia o papel do discurso da imprensa na consolidação da idéia da cidade como pólo de atração e, aos poucos, sua transformação em ‘cidade diaspórica, de expulsão’.
Atenção especial (traindo um certo sotaque apaixonado) foi dada ao período de transformação contracultural dos anos 68/78, momento bastante produtivo e de virada no panorama cultural da cidade, mas ainda praticamente não estudado.
Penso que, a esta altura, o leitor já percebeu o apreço e a admiração que tenho por este trabalho seminal de Christina Musse. Coloco minha aposta alta no fato de que esse vai se tornar referência obrigatória não apenas para estudo de Juiz de Fora, mas, sobretudo, para a pesquisa sobre o tema mais geral da cidade e, conseqüentemente, para o melhor entendimento da produção cultural e política contemporâneas.
Um livro que veio para ficar e cujo processo de criação tive o prazer e o privilégio de acompanhar.
PS: não mencionei que este trabalho nos traz alguns brindes inestimáveis: um delicioso mapa que reproduz a ‘cartografia afetiva de Juiz de Fora’, além de fotos e textos adicionais sobre as músicas e as imagens que inspiraram e alimentaram esse trabalho.
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Coordenadora do PACC.FCC.UFRJ, diretora do Instituto e da Editora Aeroplano