Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A ilusão de ser informado

Publicidade, assinatura, venda direta aos consumidores. É este o tripé que faz aumentar (ou diminuir) a receita financeira dos jornais impressos. Mas a publicidade é de longe seu maior sustentáculo. A constatação mais corrente dá conta de que, afligidos pela crise, os maiores conglomerados econômico-financeiros fecharam as torneiras de seus departamentos de publicidade. Quase ao mesmo tempo, estamos às voltas com um crédito semi-paralisado – o que antes jorrava, passou ao ritmo de conta-gotas. Setores automotivo, hoteleiro, financeiro (bancos), imobiliário e tecnologia, aliados ainda às tradicionais lojas de departamentos, viram-se forçados a reduzir fortemente suas dotações para publicidade em veículos da mídia impressa. Não temos ainda os números, mas tudo indica que vem se registrando acentuada queda na venda de jornais e revistas, o que, aliás, segue tendência descendente há mais de uma década.


Tomemos, a título de ilustração, uma edição da revista Veja (nº 2108, de 15/4/2009), editada pela Abril. De suas 114 páginas, 34 expõem publicidade de página inteira, 4 com publicidade ocupando metade de suas páginas e 11 páginas têm 1/3 coberto por propaganda ao estilo linguicinhas em suas laterais. Além disso, foram encartados dois ‘informes publicitários’, que somam 17 páginas, e a própria Abril entra com outras 3 páginas inteiras para divulgar seus produtos.


No cômputo geral, excetuando-se os cadernos dos tais informes publicitários, das 114 páginas desta edição, 42 são vitrines para produtos diversos: de propaganda governamental a automóveis, programação televisiva a cura para impotência sexual, e de computadores a empresas de telefonia celular.


‘Parabéns’, ‘excelente’, ‘fascinante’


Analisando esses números, concluímos que a edição 2.108 de Veja teve apenas 72 páginas dedicadas ao jornalismo (não entremos, por favor, no mérito) e mais de 36% da edição foi ocupada por publicidade. É muito? É pouco? Depende de quem olha. Se for o leitor, temos publicidade em demasia, uma overdose. Se o leitor (é o que se espera) compra uma revista em busca de notícias e de informações, termina obrigado a levar consigo 36,8% de propaganda e seus derivativos. Se for o da empresa que publica a revista, é bem provável que o espaço publicitário tenha ainda boa margem de crescimento.


Se o olho for dos donos de agências de publicidade, neste caso específico representando os segmentos produtivos (indústria, comércio, serviços etc.), já terão uma leitura desconfortável: faltaram propagandas de páginas inteiras dos fabricantes de automóveis e de empreendimentos imobiliários vistosos. Encontramos algum espaço para Fiat, Hyundai e Kia, e nada para ex-pesos pesados como Ford, GM ou Volks.


Ainda a propósito do carro-chefe da Editora Abril. Cada vez mais a revista se destaca pelo exercício do jornalismo opinativo: são duas páginas da ‘Carta ao Leitor’, três amarelas para o historiador preferido da revista (Francis Fukuyama), quatro páginas para seus colunistas tradicionais (Cláudio Moura Castro, J.R. Guzzo, Mainardi, Millôr), duas para entrevistas (Jaime Lerner, Sérgio Cabral), quatro para colunas com picadinho opinativo (‘Radar’, ‘Holofote’, ‘Panorama’).


Chama a atenção a opinião de 17 leitores espraiadas em três páginas. Muito bem. Doze dessas cartas são para louvar a revista, sua missão jornalística, seu faro editorial, a excelência dos colunistas, e então as expressões recorrentes usadas pelos leitores selecionados são ‘parabéns, parabenizo’, ‘reportagem de valor’, ‘foi um grande presente a reportagem’, ‘o papel de Veja foi cumprido com excelência’, ‘fascinante relato publicado pela revista’.


Gratuitos crescem


A ideologia de Veja marca presença logo nas páginas amarelas, quando o título diz tudo: ‘O liberalismo é o caminho’ – e depois ‘a pregação de Gustavo Franco do liberalismo para jovens em Porto Alegre’. De certa forma, a elevada presença de elogios nas selecionadas funciona como publicidade institucional da própria revista, somando-se assim às três outras páginas que a Abril dedica a título de publicidade institucional.


Ícones da imprensa escrita mundial registram abalos constantes, como é o caso de El País e Le Monde. O financista dublê de banqueiro Edouard de Rothschild comprou o jornal que emergiu do festejado movimento dos jovens de 1968, o Libération. Deixando as rotativas ao largo, vimos o tradicional jornal The Christian Science Monitor dar as caras apenas em sua versão digital. Chicago Tribune e Los Angeles Times sentiram na carne o tsunami global quando seu proprietário decretou estar falido. Já o legendário The New York Times, o mais mais dos jornais modernos, teve que ser socorrido às pressas pelo mexicano Carlos Slim (dono, dentre outras pérolas, da coroa midiática da Televisa): ele comprou boa parte das ações do jornal norte-americano e lhe emprestou 250 milhões de dólares.


Verifica-se também um grande aumento nos meios noticiosos de natureza gratuita, mesmo que na maioria dos casos tais publicações mascarem como informações o que não passa publicidade disfarçada. E alimentam a ilusão de seus leitores de que estão sendo informados sobre o que se passa no mundo sem ter que desembolsar um centavo por tal serviço.


Prejuízo de US$ 6,4 bi


Há poucas semanas, o grupo Hearst Corporation divulgou demissões de pessoal do jornal San Francisco Chronicle. Como não poderia deixar de ser, tais cortes teriam como objetivo maior evitar o fechamento do principal jornal dessa importante cidade da Califórnia. O San Francisco Chronicle não é o único jornal impresso que encontra em apuros, já que a crise nascida nos Estados Unidos e mundializada em instantes tem produzido sucessivos golpes de marreta, daquele tipo arrasa-quarteirão, nos setores produtivos, geralmente os mais bem organizados da economia global. Em conseqüência desses golpes, temos acompanhado a quebradeira atingindo principalmente o mercado financeiro (bancos à frente), o setor imobiliário, automotivo e assim por diante.


Idéias engenhosas até vêm sendo tentadas para fugir da solução final que se busca evitar – no caso, a falência de corporações e demissões em massa de seus principais ativos, os funcionários. Dentre as ‘engenhosidades’ encontramos a antecipação do gozo de férias (sem remuneração, diga-se), a diminuição da jornada de trabalho, a supressão de vantagens trabalhistas e, no caso dos impressos, a diminuição da tiragem, o uso mais intensivo dos meios eletrônicos (jornais ampliam presença na internet) e em determinadas situações a manutenção de jornais apenas em meios virtuais.


Se existe algo que chega de forma praticamente igual para todos são os efeitos imediatos da atual crise econômica. Não esqueçamos que o conglomerado do magnata Rupert Murdoch, dono do vistoso grupo News Corp, que detém as chancelas editoriais do porte do Wall Street Journal e do não menos vistoso The Sun, ainda digere o prejuízo verificado nos meses finais de 2008, algo como 6,4 bilhões de dólares. E como tudo é relativo (relativo até demais), essa cifra soaria tímida se retratasse prejuízo de empresa produtora/exploradora de petróleo ou mesmo de fabricante de automóveis. Mas estamos falando apenas de um campo midiático, o dos jornais impressos.


Imparcialidade, isenção e objetividade


Por algum mecanismo que foge ao alcance de nossa compreensão, esta crise, sempre comparada àquela de 1929, vem exigir dos que realizam o fazer jornalístico um maior comprometimento com sua missão maior: a informação deve sempre ser vista como um bem público e mesmo que tenha se transformado em mercadoria, ainda assim, tem que fazer o caminho de volta, aquele que o reputa como bem público.


Para vencer tão formidável desafio há que se praticar, com redobrado empenho, um jornalismo de qualidade, que não ceda às tentações do jornalismo fácil – aquele meramente opinativo, por exemplo; há que deixar de ser massa de manobra dos detentores do poder de plantão, seja este político ou econômico.


Sobreviverão, estou confiante, os que melhor consigam conjugar atributos como imparcialidade e isenção, reflexividade e objetividade, cidadania e serviço à sociedade. Não teremos uma mídia à altura dos tempos em que vivemos se nossos profissionais ainda pensam com instrumentos muito em voga no século 19 e na primeira metade do século 20.

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Mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo