1. Dentro da máquina do ódio
Uma expectativa comum e antiga acerca das mudanças progressivas nas sociedades envolve o papel da informação e do conhecimento. De maneira geral, essa expectativa aponta para o seguinte: quanto mais informação e conhecimento estiverem disponíveis nas sociedades, mais avanços sociais serão possíveis. Essa expectativa envolve a esperança de que, quanto mais informadas sobre a realidade e conhecedoras das circunstâncias à sua volta, as pessoas poderão fazer melhores escolhas, ampliar suas possibilidades emancipatórias e melhorar suas condições de existência. Com o grande desenvolvimento das tecnologias da informação e da comunicação nas últimas décadas, houve também uma expansão dessa expectativa otimista: com mais acesso à informação e ao conhecimento, esperava-se uma consequente melhoria em diversos aspectos da vida em sociedade, como educação, saúde, cidadania, política, lazer, entre outros. No entanto, vivenciamos hoje um cenário de tendências extremistas e obscurantistas que contariam essa expectativa.
O que de fato observamos são sociedades cada vez mais polarizadas e pautadas por emoções disruptivas, que se isolam em redes de proximidade de ideias e concepções de mundo, muitas vezes imunes a qualquer forma de questionamento e pensamento crítico. Esse traço alimenta a dificuldade de manutenção de diálogo e de reflexão conjunta, características das instituições envolvidas com a ampliação do conhecimento. Também se observam negacionismos de dados científicos (“a Terra é plana”, “vacinas causam autismo”), históricos (“o nazismo é de esquerda”, “não houve ditadura no Brasil”) e sociais (“racismo é mimimi”, “machismo não existe”), situações inimagináveis há bem pouco tempo. Também são apresentadas narrativas violentas e agressivas, colocadas em contraposição ao “politicamente correto” (seja lá o que isso for), contra o “globalismo” e o “vitimismo” e sem nenhuma preocupação com fundamentos e bases sólidas. São ataques sistemáticos a conquistas civilizatórias dadas como inquestionáveis, que apontam para retrocessos que nos assustam quando pensamos nas nossas esperanças iniciais.
Dessa forma, ao contrário do esperado, a tecnologia contribuiu também para a ampliação dos processos de desinformação e manipulação, juntamente com possibilidades de perseguição e violência por parte de quem detém o poder. Nesse contexto, ataques violentos contra pessoas ou instituições também são comuns, realizados através de linguagem inapropriada e muitas vezes desferidos por figuras públicas que visam atacar a credibilidade dos especialistas e estudiosos. Um relato experiencial e reflexivo acerca desse estado de coisas nos é oferecido pela jornalista Patrícia Campos Mello em A máquina do ódio: Notas de uma repórter sobre fake news e violência digital. Trata-se de um retrato dos meios e modos pelos quais a desinformação foi utilizada como ferramenta em momentos recentes, juntamente com ataques e perseguições das quais foi vítima durante o exercício da sua profissão.
Um ponto inicial sobre A máquina do ódio é que a vítima dos ataques não é somente a profissional, mas também o trabalho de levantamento de informações que sustenta o jornalismo como um todo. E, consequentemente, a democracia, que depende em algum grau dessa investigação e distribuição de informações de qualidade. A autora descreve logo na introdução como viu a sua vida mudar radicalmente em outubro de 2018, depois de publicar matérias sobre o disparo em massa de mensagens através de WhatsApp durante as eleições. Ataques cada vez mais violentos, ameaças virtuais e reais, passaram a fazer parte de seu cotidiano e de sua família. Ironicamente, a mesma ferramenta que havia sido denunciada passou a ser utilizada por seus detratores para atacar a jornalista e o veículo em que atuava. As informações falsas disseminadas contra ela passaram a se materializar em agressões e ofensas cada vez mais comuns, numa tentativa de minar sua credibilidade. Trata-se de um a prática cada vez mais comum, realizada com o objetivo de limitar o trabalho da imprensa.
No primeiro capítulo, a autora trata do impacto do WhatsApp nas eleições de 2018 no Brasil, partindo das apurações e levantamentos realizados no período. Apresenta os meios pelos quais as campanhas políticas fizeram o uso dessa ferramenta fora dos limites da lei e os consideráveis impactos dessa prática num país onde 60% da população faz uso do aplicativo. Trata-se de uma ferramenta “assustadoramente eficiente para disseminar propaganda política – ou desinformação” em suas palavras. Aborda também os motivos pelos quais a mídia tradicional perdeu espaço para a comunicação através das redes sociais e aplicativos de mensagens, juntamente com riscos envolvidos nisso. Em meio à tais descrições, Campos Mello vai apresentando a sua investigação e trabalho jornalístico sobre o tema, que resultou nos ataques abordados no livro.
Já no segundo capítulo, a autora apresenta a tentativa de “assassinato de reputação” promovida pelo presidente eleito e seus seguidores contra ela, ampliados a cada matéria publicada. O ápice desses ataques aconteceu durante uma sessão da Comissão Parlamentar de Inquérito, quando uma das fontes fez a acusação de que a jornalista ofereceu “sexo em troca de informações”. A autora desmente a acusação apresentando provas da apuração e oferece exemplos de outras jornalistas mulheres que também foram perseguidas e ofendidas em diversas circunstâncias. A jornalista também recebeu apoio de muitas instituições, figuras públicas (inclusive de políticos que já a haviam atacado) e anônimas durante a situação. Partindo dessa situação, Campos Mello aborda o complexo aparelho estruturado no Brasil para promover campanhas de desinformação e ataques diversionistas, que buscam turvar o debate sobre questões políticas e governamentais. Essa “máquina de ódio” violenta e desumanizadora, é uma tendência mundial perigosa para o futuro do jornalismo e da democracia.
A autora discute o papel da desinformação na ascensão de políticos com tendências populistas no terceiro capítulo. Trata das estratégias utilizadas pelos “tecnopopulistas”, ao utilizarem as ferramentas digitais para estruturar seus projetos de poder a partir da mobilização intensa de apoiadores. Um dos especialistas ouvidos pela autora aponta que: “Se há uma verdade fundamental a respeito do impacto das mídias sociais na democracia é que elas exacerbam as intenções das pessoas – as boas e as más”. Um fator decisivo é que os tecnopopulistas encontram parcelas consideráveis da população ressentidas e excluídas devido às diversas crises do mundo globalizado, o que aumenta ainda mais o alcance de discursos antissistema e manipuladores. A desinformação ocupa um papel central nessa estratégia, identificando inimigos e moldando as conversas e narrativas diárias. Campos Mello identifica dois erros da imprensa nos últimos anos que podem ter contribuído para a ascensão desses líderes: (i) a “falsa equivalência”, que coloca no mesmo nível declarações de especialistas e estudiosos e declarações estapafúrdias de políticos que aderem a “fatos alternativos” e (ii) o espaço atribuído para a discussão sobre falas agressivas e violentas dos tecnopopulistas.
O quarto capítulo trata dos crescentes e constantes “ataques à mídia crítica” por parte de diversos governantes, com destaque para o caso brasileiro. Esses ataques se materializam tanto verbalmente, com ações agressivas e mobilizações de apoiadores contra jornais, revistas e redes de televisão, quanto financeiramente, com tentativas de estrangulamento de receitas e perseguições burocráticas. O objetivo de fundo dessa perseguição é a tentativa de desacreditar e inviabilizar investigações, críticas e questionamentos das ações governamentais, abrindo o caminho para a consolidação de projetos de poder pouco preocupados com o processo democrático e a transparência. Para isso, a ação e o apoio de veículos pró-governo, como blogs e páginas nas redes sociais, é fundamental, utilizados principalmente para a difusão da desinformação e ataques. Campos Mello faz algumas observações em relação à necessidade de um cuidado maior da prática jornalística, principalmente em relação à clareza e à distinção entre opinião e notícias, para limitar o alcance da perseguição. No entanto, sem esquecer da tarefa fundamental do jornalismo, que “não é apoiar ou se opor a governos”, mas investigar e apresentar dados e fatos.
Por fim, na Conclusão, Patrícia Campos Mello apresenta algumas expectativas e contextualizações sobre o futuro do jornalismo, questionando se a “pandemia pode salvar o jornalismo”. Essa possibilidade se deve ao fato de que o combate aos efeitos do novo coronavírus demanda informações científicas bem apuradas. Nesse contexto, a desinformação promove, além de tudo, riscos para a saúde pública. Dessa forma, a epidemia “evidenciou a importância de jornalistas profissionais que produzem notícias fundamentadas”, num momento em que “informações podem salvar vidas”. Nesse cenário, o reconhecimento do valor do jornalismo tradicional é fundamental. No entanto, esse contexto também apresenta três desafios: (i) o impacto da crise econômica da pandemia para o jornalismo, (ii) o fato de que notícias falsas e desinformação circulam mais rápido e de forma mais eficiente em ambientes virtuais do que informações apuradas e qualificadas e (iii) a implementação de medidas autoritárias e pouco transparentes por parte de governantes sob a desculpa da urgência pandêmica. São circunstâncias nas quais defender e apoiar o jornalismo é cada vez mais necessário.
2. Estimulando emoções e reações
Depois de acompanharmos as situações descritas por Campos Mello, algumas questões são inevitáveis: Como tudo isso é possível? Como as possibilidades oferecidas pelas tecnologias da informação propiciaram também desinformação, manipulações políticas e sociais, agressões e perseguições violentas? Como as pessoas podem pautar suas ações por conjuntos de informações questionáveis e absurdas? Temos aqui um conjunto de questões mais gerais, que envolvem temas amplos como as relações entre sociedade, informação e política. Para ajudar a compreender essas e outras questões de nossas atuais circunstâncias, algumas análises do filósofo Jon Elster (1940) podem ser úteis. Este teórico norueguês aborda diversas áreas, como sociologia, política, economia, psicologia e história, além da filosofia e esse produtivo trânsito multidisciplinar é relevante para compreendermos os desafios de um tempo complexo e paradoxal como o nosso.
Elster analisa três instâncias que considera como fontes primordiais da ação humana: (i) a racionalidade e seus limites, (ii) as normas sociais e seus condicionamentos e (iii) as emoções e sua influência na ação social. A partir das relações entre essas três instâncias, Elster produziu uma série e análises, que levantam questionamentos sobre os quadros tradicionais da humanidade, principalmente em relação ao alcance da racionalidade dos agentes. Um exemplo de como essas três fontes interagem é o que Elster identifica como “força civilizadora da hipocrisia”, uma dinâmica na qual argumentos são utilizados de maneira estratégica, com o objetivo de influenciar emoções e atitudes ou simplesmente mudar posicionamentos sem que necessariamente exista sinceridade por parte daquele que argumenta. Num exemplo mais concreto, um político pode criticar práticas racistas ou misóginas, com o objetivo de promover sua imagem e estimular novas concepções sem necessariamente se posicionar efetivamente a favor dessas causas. No entanto, mesmo sem nenhuma preocupação com a verdade e mediante o constrangimento da exposição pública, promove uma mensagem civilizatória ao mesmo tempo em que atende seus interesses.
No caso das reações violentas e extremas promovidas pela desinformação, uma hipótese baseada nas concepções de Elster é que emoções negativas são constantemente estimuladas através dos usos da comunicação virtual, envolvendo as pessoas em círculos informativos pelos tecnopopulistas. No entanto, sem conhecer as fontes das informações, sem tempo nem preparação para avaliar criticamente os conteúdos que recebem, as pessoas acabam dando crédito e reagindo aos conteúdos com os quais interagem. Tais reações são pautadas nos limites da racionalidade dos agentes, imersos em circunstâncias de incerteza e sem possibilidades de análise mais aprofundadas. Partindo disso, constroem suas certezas e ações pautadas em conteúdos questionáveis e agressivos, contribuindo cada vez mais para a ampliação do alcance da desinformação. Surge assim o que podemos identificar como uma “força brutalizadora da desinformação”, onde ataques, violências e exposições tornam-se norma, muitas vezes estimulados também por lideranças políticas e sociais. No caso de Patrícia Campos Mello, observa-se que esse processo foi crescendo conforme as matérias eram publicadas e as reações eram cada vez mais agressivas por parte dos denunciados e dos seus seguidores.
O que pode ser feito nesses novos cenários? Como limitar o alcance da “força brutalizadora da desinformação” conforme nomeamos aqui? A expectativa de Campos Mello envolve a valorização do trabalho dos meios de comunicação e dos jornalistas, partindo principalmente da emergência sanitária, da crise econômica e da tensão política que vivenciamos, onde a informação é decisiva. No entanto, também é relevante que se promovam processos formativos que estimulem a crítica e a capacidade avaliativa e analítica por parte dos leitores e expectadores. As ferramentas de desinformação se valem de estímulos e das dificuldades de compreensão dos agentes, principalmente em relação à temas complexos e que exigem análises mais detidas e informadas. As diversas iniciativas de veículos e instituições para o combate da desinformação apontam para esse caminho, estimulando um cuidado maior com as informações e a promoção de meios e atividades que inundem as redes com informações apuradas e de qualidade. Não é um trabalho fácil, mas será cada vez mais necessário, principalmente em contextos nos quais a desinformação é apoiada por governos e instituições.
A máquina do ódio: Notas de uma repórter sobre fake news e violência digital é uma leitura fundamental para nossos tempos. Trata das diversas crises que vivenciamos na atualidade – política, social, econômica, informacional, numa espiral que parece não ter fim – com informações apuradas e organizadas, sem deixar de ser um relato de uma experiência extrema e violenta dentro do jornalismo profissional. Como um livro escrito “à quente”, por quem esteve dentro da nebulosa de ódio utilizada atualmente para conquistar e manter o poder, é uma leitura informativa e estimulante. Mostra que nossas emoções e ações podem ser mobilizadas e manipuladas, a partir de estratégias políticas de engajamento intenso, das quais temos pouca ou nenhuma consciência. Ressalta também a importância que o jornalismo sério e profissional tem para a vida democrática, mesmo em cenários que sempre remetem para o seu fim. O livro de Patrícia Campos Mello nos insere na “máquina do ódio” através de um texto bem documentado e informativo, uma contribuição urgente e relevante para compreendermos como a desinformação e sua consequente brutalidade são riscos para os quais nenhum de nós está imune.
___
Referências
ELSTER, Jon. “Deliberation and constitution making”. In: ELSTER, Jon. Deliberative democracy. Cambridge, Cambridge University Press, 1998.
MELLO, Patrícia Campos. A máquina do ódio: Notas de uma repórter sobre fake news e violência digital. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
SÁNCHEZ, Jordi Tena; FERRER, José Antonio Noguera. Jon Elster. Un teórico social analítico. Barcelona: Editorial UOC, 2014.
***
José Costa Júnior é professor de Filosofia e Ciências Sociais – IFMG Campus Ponte Nova.