“Jamais me recusei a ver quem quer que seja, por que não Nicolás Maduro?”. Donald Trump, surpreendentemente, ao anunciar essa possibilidade, no dia 21 de junho de 2020, desestabilizou a bússola do Partido Republicano, assim como a dos cubano-americanos anticastristas, a dos círculos oposicionistas venezuelanos próximos do autoproclamado presidente Juan Guaidó – que, aliás, levou até uma arranhada nessa mesma entrevista. Trump também colocou em uma agonizante incerteza giroscópica os setores anti-imperialistas de todos os tipos, e que já estavam convencidos de uma iminente invasão militar norte-americana no território boliviano.
Não era ele, desde sua eleição, um feroz defensor das “liberdades” desprezadas pela presença de Nicolás Maduro, e de seus amigos “socialistas”, na presidência da Venezuela? Sua declaração teria saído de improviso, no susto? Donald Trump seria um ‘sem fé nem lei’ imprevisível? Seria ele simplesmente um presidente desastrado que comete gafes por desconhecer as questões de que fala?
Alguma reprovação, na sequência deste episódio, pode ter lhe feito repensar o que disse. No comunicado de imprensa do dia seguinte, ele esclarece: “Obviamente, meu encontro com Nicolás Maduro seria para falar apenas de sua saída pacífica do poder”. O lançamento do livro de seu antigo conselheiro da área de Segurança Nacional, John Bolton, no dia 23 de junho, apresentando o presidente como um usurpador do cargo que ocupa, em função de seu déficit intelectual, parece confirmar essa primeira impressão¹.
No entanto, essa impressão seria válida? É preciso lembrar de que não há nada de surpreendente na gestão do caso ‘Venezuela’ por Donald Trump se compararmos o modo como ele trata todas as questões internacionais. Donald Trump, muitos parecem esquecer, havia anunciado ‘em cores e letras maiúsculas’, durante sua campanha eleitoral, seu “America first”. Nunca teve nada a ver com a defesa dos valores democráticos, a sua rejeição ao socialismo. Isso nada mais é do que um ‘biombo’ ideológico, sempre defendido pelos nostálgicos da Guerra Fria, e que atua antes como um “tapa-sexo” de puro intervencionismo em busca de justificativas morais. Portanto, não devemos dar um tratamento especial a esses novos-cruzados em sua luta em prol das liberdades, mobilizados contra a suposta ameaça ideológica e de segurança que a Venezuela representaria para os demais países das Américas.
Donald Trump usa às vezes do vocabulário desses novos-cruzados, com vistas a lhes delegar certas iniciativas que corresponderiam aos interesses dos Estados Unidos. Convidados de Donald Trump, na noite de 19 de setembro de 2017, em Nova Iorque, os presidentes do Brasil, da Colômbia, do Panamá e a vice-presidente da Argentina saíram de lá com um cardápio de como agir bem definido e que atendia estritamente aos interesses da Casa Branca. Os dirigentes das novas-direitas latino-americanas fizeram direitinho o dever de casa da noite. Eles desmantelaram as instituições defensoras da autonomia coletiva da América Latina ou da América do Sul.
A UNASUL (União das Nações Sul Americanas) foi finalizada em poucos meses. A CELAC (Comunidade dos Estados da América Latina e do Caribe) está adormecida depois da saída do Brasil. O MERCOSUL (Mercado Comum do Sul) está paralisado. Depois de ter expulsado a Venezuela, seus três membros liberais (Brasil, Paraguai, Uruguai) querem forçar a mesma decisão por parte da Argentina para fazer da instituição um espaço aberto aos ventos do mundo econômico e comercial dominante.
Esses chefes de Estado, nos passos de Washington, se distanciaram do sistema da ONU (Organizações das Nações Unidas). O Brasil retirou seu apoio aos acordos de Marraquexe acerca das migrações, distanciou-se da OMS e cancelou a realização da COP21² em seu território. Argentina, Brasil, Chile, Paraguai, Panamá, Peru abandonaram a Conferência do Desarmamento, logo depois dos Estados Unidos. Sobreviveram apenas, a esse massacre internacional, as organizações controladas por Washington. A OEA (Organização dos Estados Americanos), por exemplo, elegeu em 20 de março de 2020 um secretário geral, o uruguaio Luis Almagro, com o apoio e os encorajamentos da Casa Branca. E em breve poderá ser a vez do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) que, cobiçado por Donald Trump, e a despeito do estatuto da instituição que reserva a função de Diretor Geral a um latino-americano, pode vir a ser presidido por um candidato dos Estados Unidos.
Ao retrocederem ao já experimentado ‘face a face’ desigual nas negociações com Washington, esses chefes de Estado latino-americanos se comportam como o México hoje, submetido às regras humilhantes de um tratado de livre comércio adaptado aos interesses do mais forte, acordo chamado no país asteca de T-MEC (Tratado México, Estados Unidos e Canadá). Em relação à Venezuela, graças ao office-boy canadense, os latino-americanos formaram uma coalização de amigos hostis a seu vizinho sul-americano. O Grupo de Lima³, constituído em 8 de agosto de 2017, de fato, tem como único objetivo forçar a mudança de regime de governo em Caracas. Os membros do grupo adotaram uma série de medidas coercitivas impostas por Donald Trump: (1) suspensão do reconhecimento de Nicolás Maduro, (2) estabelecimento de relações oficiais com o principal oponente de Maduro, aquele que, nas ruas, se autoproclamou ‘presidente’ da Venezuela, (3) a não-contestação das sanções econômicas e financeiras de Washington ao país sul-americano.
A derrocada da economia venezuelana, que já se encontrava bastante frágil, foi então aprofundada. De modo não negligenciável, isso repercutiu na economia dos parceiros tradicionais de Caracas. Este foi o caso, em particular, da Colômbia, que era o principal exportador de produtos agrícolas para a Venezuela. Para forçar a saída de Nicolás Maduro, a opção militar parece nunca ter sido a preferida por Donald Trump. Ao se distanciar, em 11 de setembro de 2019, de John Bolton, seu assessor na pasta de Segurança Nacional dos Estados Unidos, justificou ter sido em função de suas propostas em relação a como proceder para livrar o país de Maduro. Para Trump, “ele [John Bolton] tinha ido longe demais em relação à Venezuela”. Apesar disso, Trump tentou demonstrar sua inclinação à questão. Esse ‘sacrifício suplementar’, de natureza facilmente degenerável para uma aventura incontrolável, foi, no entanto, recusado pelos vizinhos, Brasil e Colômbia. Seus governantes lançaram, todavia, apelos à insubordinação às forças armadas da Venezuela, para que agissem.
Simultaneamente, Donald Trump definiu outras ordens, sem nenhuma reserva, a seus parceiros da coalização anti-Caracas: uma ordem antidrogas, sinalizada ao presidente colombiano; uma ordem comercial dirigida tanto à Argentina, ao Brasil, quanto ao México, isso antes da eleição de Andrés Manuel López Obrador; uma ordem antimigratória, aos países da América Central e ao México; uma ordem tecnológica, ao Chile, à Colômbia, ao México, suspeitos de relações indevidas com os chineses Huawei. “America First”, é claro! Quanto à defesa compartilhada dos valores liberais e democráticos, os afagos e elogios calorosos e repetidos de Donald Trump a Kim Jong-un, ditador da Coréia do Norte, expressos em 12 de junho de 2018, em 28 de fevereiro e em 30 de junho de 2019, vieram substituir o argumento ético usado na oposição a Nicolás Maduro. Tudo em nome do “America First”.
Evidentemente, não se pode excluir, senão por razões de calendário eleitoral, o encontro entrevisto pela cúpula entre Donald Trump e Nicolás Maduro, embora tenha sido diabolizado pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos que, em 28 de março de 2020, se referiu a Maduro como traficante de drogas. Não bastasse, essa estigmatização veio acompanhada de um prêmio de quinze milhões de dólares para todos aqueles que facilitassem sua captura. A única incerteza, acerca desse eventual encontro, não é nem moral, nem econômica, nem diplomática. A palavra de ordem “America First”, se converteu em “Donald Trump First”. As prévias eleitorais que o obrigam.
O que lhe beneficiaria, em termos eleitorais, esse encontro sem dúvida espetacular, extraordinário e midiático com Nicolás Maduro, a não ser a desmobilização de seus partidários republicanos e dos cubano-americanos da Flórida que, é bom lembrar, é um dos Estados que decide a vitória?
Texto publicado originalmente em francês, em 30 de junho de 2020, na seção ‘Atuctualité’ do Site Nouveaux Espaces Latinos: Sociétés et Cultures de l’Amérique Latine & des Caraïbes, Lyon/França, com o título original “Trump et le Venezuela: Un lieu commun de la politique étrangère à la sauce Trump”. Disponível em: http://www.espaces-latinos.org/archives/92340. Tradução e revisão de Joseane Bittencourt, Luzmara Curcino e Pedro Varoni.
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NOTAS
¹ “The room where it happened: a White House memoir” (‘O quarto onde isso se passou: Um livro de memórias da Casa Branca’, em tradução livre).
² NT.: 21ª Conferência das Partes, realizada pela ONU em Paris, com a presença de representantes de diversos países, com o objetivo de ratificar e de estabelecer acordos globais sobre o clima.
³ NT.: O grupo é composto por Argentina, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Guatemala, Honduras, México, Panamá, Paraguai, Peru, Guiana e Santa Lúcia, sob a indisfarçável batuta norte-americana.
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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É Formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros livros, de “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014).