Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O JN na pandemia: notáveis acertos e deficiências persistentes

(Foto: Divulgação Rede Globo)

A pandemia da Covid-19 tem demandado novos procedimentos à mídia jornalística. Da obrigatória máscara às entrevistas via computador, de um maior aprofundamento em epidemiologia e estatística à formação de um pool independente para apurar contágios e mortes, do cuidado para — na era das fake news — discernir opinião baseada em ciência de militantismo mitômano.

Se alguns desses procedimentos logo tornariam-se corriqueiros, comuns a todas as emissoras, outros, justamente os mais determinantes para a acuidade da apuração, para o equilíbrio editorial, para a difusão da informação correta — enfim, para o bom jornalismo — têm sido amplamente negligenciados. As razões para tal omissão dizem respeito, sobretudo, às relações entre empresas midiáticas, poder governamental e verbas — ou seja, estão longe, no Brasil, de constituir novidade, ainda que poucas vezes tantas emissoras tenham sacrificado seu jornalismo de forma tão explícita e despudorada como ora o fazem em relação ao governo Bolsonaro. A novidade — que agrava sobremaneira o quadro — é estarmos em meio a pior pandemia em século, um contexto em que a informação pode induzir à vida ou à morte.

Referência na pandemia

De forma um tanto surpreendente (dado o seu passado de forte comprometimento com o poder), o Jornal Nacional vem se destacando nesse contexto. Com efeito, o principal telejornal da Globo acabou por se tornar não só uma referência diária da cobertura da Covid-19, mas o programa jornalístico que melhor tem sabido equalizar cobertura baseada em fatos científicos e atenção a aspectos humanos da tragédia.

Por isso mesmo, tornou-se um dos alvos prioritários do bolsonarismo e de suas táticas de cancelamento e ataques virtuais violentos, o que, por sua vez, leva à difusão de hashtags como #Globolixo, ao linchamento virtual de William Bonner e a acusações esdrúxulas como as que associam Rede Globo ao comunismo.

Reconhecer que o principal jornal da Globo se tornou referencial para um público que se preocupa com a pandemia e quer informações confiáveis e submetidas ao crivo da ciência não significa, de modo algum, uma adesão acrítica ao jornalismo praticado pela emissora – seja no que se refere ao seu passado de apoio à ditadura e de ativo protagonismo no golpismo contra o governo eleito de Dilma Rousseff; na relação entre a momentânea e parcial correção jornalística e os interesses comerciais e políticos contrariados pelo governo Bolsonaro; ou nas vicissitudes que permanecem, como uma cobertura que varia do acriticismo à idolatria em relação à Lava-Jato, ou a manutenção do apoio ao ultraneoliberalismo socialmente insensível de Paulo Guedes.

Ciência e humanismo

Por outro lado, dados o obscurantismo anticientífico do governo Bolsonaro e suas cruéis consequências em relação aos afetados pela pandemia – estrato que não se limita ao universo dos doentes e mortos, atingindo, de uma forma ou de outra, seja na saúde, na imposição de protocolos comportamentais ou no bolso, toda a população —, é preciso reconhecer que o JN, no que tange à cobertura da pandemia, tornou-se, no decorrer desses meses atípicos, uma espécie de oásis informativo, em que o científico prevalece de forma intransigente (na melhor acepção da palavra) e, ao contrário da maioria de seus concorrentes, não há espaço para mitologias politicamente motivadas, como a negação da pandemia, a defesa da cloroquina ou imprecações xenofóbicas envolvendo a China e o vírus. Mais: em boa parte por opor-se ao anticientificismo dominante no governo e seus satélites, diversificou em relação ao que Bernardo Kucinski aponta como uma das principais práticas ideológicas do jornalismo de saúde, a tendência de se “apoiar excessivamente em fontes oficiais ou de autoridades médicas, excluindo assim outras percepções dos problemas de saúde” (Ed. UNESP, 2005, p. 41).

Com efeito, o que se tem visto desde a segunda metade de março é uma cobertura alinhada às determinações da OMS, desprovida de negacionismo, voltada à difusão de métodos de prevenção, que dá voz não só a médicos e enfermeiros, como a demais profissionais (técnicos, fisioterapeutas, psicólogos, pessoal de apoio, faxineiras), tanto para recomendações sanitárias quanto para humanizar aqueles que atuam na “linha de frente” contra o vírus — mas que também dá inédito destaque a brasileiros comuns, a “pessoas do povo”. Estes têm sido, talvez pela primeira vez, os principais destaques do programa, correndo o risco de contágio em filas ou penando para conseguir sacar os R$ 600 em aplicativos que nunca funcionam; vivendo um dilema entre o necessário isolamento e o risco de passar fome; sofrendo para internar um parente ou ante a morte deste; comemorando a recuperação de um internado.

Passados três meses e meio desse formato de cobertura — correndo, portanto, tanto o risco de esgotamento quanto de ser acusado de negativismo (como de fato o foi) —, o telejornal, concomitante à difusão promissora de vacinas em prazos cada vez mais curtos, acertou ao dobrar a aposta na cobertura da pandemia, colocando o tarimbado jornalista Márcio Gomes para apresentar, diariamente, com farto uso de infográficos, a evolução da pandemia, dividida em diversas categorias e com atenção às médias diárias de contágio e mortes. É o jornalismo cumprindo sua obrigação de apurar e informar a evolução de um gravíssimo problema sanitário, tratado com desdém e sarcasmo pela principal autoridade do país.

Deficiências persistentes

Apesar de tais méritos, a cobertura da pandemia oferecida pelo JN não se mostra desprovida de problemas. Para começar, há uma indistinção entre os âmbitos públicos e privados em relação aos serviços de saúde — ou seja, entre o SUS e a rede particular —, amalgamados sob o rótulo de “medicina brasileira”. Isso dificulta tanto um diagnóstico do desempenho de um e de outro âmbito quanto uma cobrança balizada do que precisa ser melhorado na saúde pública e do que precisa ser reformado nas regras referentes à medicina privada.

Outro problema diz respeito ao embaralhamento, na cobertura que o JN faz da pandemia, entre o que é de responsabilidade dos estados e municípios e o que é obrigação do governo federal: usualmente, limita-se a mostrar as carências, em cada estado (macas, remédios, ventiladores ou pessoal) e o jogo de batata quente entre autoridades estaduais e federais. Agravam os efeitos dessa omissão jornalística a incapacidade do JN de esclarecer de forma cabal que a decisão do STF em relação à pandemia — volta e meia invocada por autoridades federais — foi que estados e municípios têm autonomia para administrar as medidas relativas à pandemia, mas que isso não desobriga o governo de cumprir as determinações constitucionais relativas à Saúde. Registre-se que a manutenção desse embate entre versões, ligada a uma visão tão deturpada quanto enraizada no jornalismo brasileiro de conceitos como “ouvir o outro lado” e “isenção”, beneficia de forma flagrante o governo cujos militantes acusam a Globo de antibolsonarismo.

Por fim, como não poderia deixar de ser em se tratando de Rede Globo, não se faz correlação de nenhuma espécie entre a estrutura de saúde que a pandemia encontrou, a distribuição de renda do país, as políticas econômicas atuais e recentes e as ideologias que as orientam. Mais do que um efeito do que o pesquisador mexicano Lorenzo Gomis qualifica como o “eterno presente” característico do telejornalismo, evidencia-se uma “eterna descontextualização” em que as responsabilidades pelos problemas do setor de Saúde viram uma questão moralista, pessoal, atribuídas a maus profissionais, péssimos gestores e, sobretudo, a administradores e políticos corruptos.

Contra o obscurantismo

É forçoso assinalar que o destaque positivo do Jornal Nacional em relação ao resto da mídia talvez seja do tipo “em terra de cego quem tem um olho é rei”, ou seja, que praticar, em relação à pandemia, um jornalismo honesto, baseado em ciência e com viés humanitário deveria ser o padrão em um país democrático com um jornalismo profissional.

Tal constatação, porém, não anula o fato de que, quando a história vier a fazer a crônica desses meses de peste, com milhões de infectados e quase 100 mil mortos, o telejornal da Globo, indo na contramão do governo de turno e da zeitgeist obscurantista ora vigente, ofereceu uma cobertura que, observadas as ressalvas acima, deu a real dimensão da tragédia, orientou formas de se precaver e foi solidária à dor e à tristeza decorrentes.

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Maurício Caleiro é jornalista e doutor em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF).