Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Para que serve a divulgação científica?

(Foto: Andréa Rêgo Barros/PCR)

Além de escancarar a centralidade da ciência na vida cotidiana, a pandemia do novo coronavírus tem acentuado o papel de cientistas e instituições de pesquisa que se dedicam à divulgação científica.

Mediados ou não por profissionais de comunicação, fontes acadêmicas (epidemiologistas, historiadores, estatísticos, microbiologistas e sociólogos, por exemplo) têm se mostrado capazes de adaptar a linguagem hermética de suas áreas de especialidade a ponto de torná-las acessíveis e atraentes para audiências mais amplas, leigas, inclusive. Reportagens, lives, animações digitais, entrevistas, infográficos, livros infantis, podcasts e intervenções artísticas parecem poder conviver com os congressos e artigos.

Mas embora não seja uma atividade nova, divulgar ciência para o público em geral segue sendo uma prática acadêmica ignorada, marginalizada até. Professores universitários, por exemplo, colhem pouquíssimo mérito nessas ações quando se submetem a concursos ou editais de progressão na carreira. Registrar seu valor profissional e sua relevância cultural não é somente uma necessidade, portanto, mas uma oportunidade que a vivência da Covid-19 trouxe para a comunidade de divulgadores.

Os significados social, cultural, econômico e epistêmico da divulgação científica merecem desvelo e aprofundamento, claro, mas, um passeio pelo noticiário dos últimos dois meses já poderia ter efeito pedagógico.

Ilustrada pela pandemia, eis para que serve a divulgação científica:

  • Para atender a uma demanda reprimida por informação e conhecimento científico, quando um microbiologista é capaz de bater recorde de audiência na tevê aberta [1].
  • Para complementar e incrementar o ensino formal, quando cidadãos escolarizados não dominam conceitos matemáticos necessários para compreender sua realidade [2].
  • Para fundamentar e orientar a tomada de decisão e o exercício pleno da cidadania, quando a informação se torna produto na prateleira da farmácia [3].
  • Para prestar contas à sociedade, reivindicar seu apoio e exigir investimentos, quando, mesmo sob ataque e desprestígio, as universidades públicas protagonizam o combate a pandemia [4] [5].
  • Para denunciar a escassez de investimentos em pesquisa e desenvolvimento, e a emergência de superar uma economia baseada em commodities, quando faltam insumos para a indústria e pesquisa farmacêutica, ou equipamentos para a prática médica [6] [7].
  • Para estimular e fomentar algum controle social da atividade científica, quando a produção acadêmica é açodada [8], propriedades intelectuais são questionadas [9] ou a ética médica é desafiada [10].
  • Para salientar a importância da pesquisa básica e expor a ciência como parte da cultura (onde há desigualdade e preconceito), quando as expressões “mulher negra” e “sequenciamento de genoma” causam surpresa aparecendo juntas em uma manchete de jornal [11].
  • Para valorizar e legitimar as ciências Humanas e Sociais, seus fenômenos e métodos, quando a desigualdade social põe em xeque os modelos epidemiológicos “tradicionais” [12].
  • Para reivindicar a premência da racionalidade científica, de seus protocolos e práticas, quando uma substância ineficaz segue defendida de forma reiterada, impetuosa e obscura por agentes políticos [13] [14].
  • Para referenciar socialmente a ciência e qualificar o debate público, quando repercutem vozes que minimizam, banalizam e justificam milhares de mortes [15] [16].
  • Para expor o charlatanismo e denunciar crimes, quando falsas curas são vendidas por líderes religiosos [17] [18] e maus profissionais [19].
  • Para combater o negacionismo quando formadores de opinião não tem compromisso com os fatos [20].
  • Para salvar vidas, quando quem poderia fazê-lo é ignorante e incapaz [21].

 

A pandemia da Covid-19 é uma aula sobre o potencial da divulgação científica.

Transformadora para quem produz e para quem a consome, a atividade serve para reivindicar a ciência como construção central da cultura humana e para que haja alguma possibilidade vida (e morte) autônoma e cidadã para as pessoas.

Somente uma sociedade que se dispõe a partilhar amplamente informações e conhecimentos científicos pode se vislumbrar civilizada, humanista, racional, democrática.

Não basta produzir ciência. É preciso que ela se torne um bem público.

É para isso que serve a divulgação científica.

Publicado originalmente em Medium.

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Marcelo Valério é Biólogo, Doutor em Educação para a Ciência e a Matemática, professor e pesquisador da Universidade Federal do Paraná.