Além de escancarar a centralidade da ciência na vida cotidiana, a pandemia do novo coronavírus tem acentuado o papel de cientistas e instituições de pesquisa que se dedicam à divulgação científica.
Mediados ou não por profissionais de comunicação, fontes acadêmicas (epidemiologistas, historiadores, estatísticos, microbiologistas e sociólogos, por exemplo) têm se mostrado capazes de adaptar a linguagem hermética de suas áreas de especialidade a ponto de torná-las acessíveis e atraentes para audiências mais amplas, leigas, inclusive. Reportagens, lives, animações digitais, entrevistas, infográficos, livros infantis, podcasts e intervenções artísticas parecem poder conviver com os congressos e artigos.
Mas embora não seja uma atividade nova, divulgar ciência para o público em geral segue sendo uma prática acadêmica ignorada, marginalizada até. Professores universitários, por exemplo, colhem pouquíssimo mérito nessas ações quando se submetem a concursos ou editais de progressão na carreira. Registrar seu valor profissional e sua relevância cultural não é somente uma necessidade, portanto, mas uma oportunidade que a vivência da Covid-19 trouxe para a comunidade de divulgadores.
Os significados social, cultural, econômico e epistêmico da divulgação científica merecem desvelo e aprofundamento, claro, mas, um passeio pelo noticiário dos últimos dois meses já poderia ter efeito pedagógico.
Ilustrada pela pandemia, eis para que serve a divulgação científica:
- Para atender a uma demanda reprimida por informação e conhecimento científico, quando um microbiologista é capaz de bater recorde de audiência na tevê aberta [1].
- Para complementar e incrementar o ensino formal, quando cidadãos escolarizados não dominam conceitos matemáticos necessários para compreender sua realidade [2].
- Para fundamentar e orientar a tomada de decisão e o exercício pleno da cidadania, quando a informação se torna produto na prateleira da farmácia [3].
- Para prestar contas à sociedade, reivindicar seu apoio e exigir investimentos, quando, mesmo sob ataque e desprestígio, as universidades públicas protagonizam o combate a pandemia [4] [5].
- Para denunciar a escassez de investimentos em pesquisa e desenvolvimento, e a emergência de superar uma economia baseada em commodities, quando faltam insumos para a indústria e pesquisa farmacêutica, ou equipamentos para a prática médica [6] [7].
- Para estimular e fomentar algum controle social da atividade científica, quando a produção acadêmica é açodada [8], propriedades intelectuais são questionadas [9] ou a ética médica é desafiada [10].
- Para salientar a importância da pesquisa básica e expor a ciência como parte da cultura (onde há desigualdade e preconceito), quando as expressões “mulher negra” e “sequenciamento de genoma” causam surpresa aparecendo juntas em uma manchete de jornal [11].
- Para valorizar e legitimar as ciências Humanas e Sociais, seus fenômenos e métodos, quando a desigualdade social põe em xeque os modelos epidemiológicos “tradicionais” [12].
- Para reivindicar a premência da racionalidade científica, de seus protocolos e práticas, quando uma substância ineficaz segue defendida de forma reiterada, impetuosa e obscura por agentes políticos [13] [14].
- Para referenciar socialmente a ciência e qualificar o debate público, quando repercutem vozes que minimizam, banalizam e justificam milhares de mortes [15] [16].
- Para expor o charlatanismo e denunciar crimes, quando falsas curas são vendidas por líderes religiosos [17] [18] e maus profissionais [19].
- Para combater o negacionismo quando formadores de opinião não tem compromisso com os fatos [20].
- Para salvar vidas, quando quem poderia fazê-lo é ignorante e incapaz [21].
A pandemia da Covid-19 é uma aula sobre o potencial da divulgação científica.
Transformadora para quem produz e para quem a consome, a atividade serve para reivindicar a ciência como construção central da cultura humana e para que haja alguma possibilidade vida (e morte) autônoma e cidadã para as pessoas.
Somente uma sociedade que se dispõe a partilhar amplamente informações e conhecimentos científicos pode se vislumbrar civilizada, humanista, racional, democrática.
Não basta produzir ciência. É preciso que ela se torne um bem público.
É para isso que serve a divulgação científica.
Publicado originalmente em Medium.
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Marcelo Valério é Biólogo, Doutor em Educação para a Ciência e a Matemática, professor e pesquisador da Universidade Federal do Paraná.