Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A crônica da violência anunciada

Cronologia dos fatos:

** Aos 47 minutos do segundo tempo do clássico Corinthians e São Paulo disputado no dia 12 de abril de 2009 no estádio do Pacaembu, o jogador Cristian, do Corinthians, acertou um belo chute de fora da área e deu a vitória da partida ao seu time. No momento da comemoração, Cristian cruzou os braços em alusão a um símbolo de uma das torcidas organizadas do clube adversário e, de maneira irônica e deturpadora do signo original, mostrou os dedos do meio de suas mãos, um gesto obsceno conhecido internacionalmente.

** 18 horas e 9 minutos do mesmo dia: alguns instantes após o término da partida, o site esportivo ‘Gazetaesportiva.net’ noticia, em primeira mão, que ‘Cristian vive dia de herói e ofende são-paulinos na comemoração’.

** 19 horas e 18 minutos: o mesmo site estampa em sua primeira página uma foto de Cristian realizando o referido gesto. Mais uma reportagem, agora trazendo a inserção de uma pequena entrevista realizada com um procurador do Tribunal de Justiça Desportiva, é posta no ar. O clamor pela punição ao jogador inicia-se nesse instante, corroborado pela possibilidade concreta anunciada pelo tal procurador. Os repórteres foram rápidos no gatilho.

Novidades requentadas e opiniões monótonas

A partir daí o que se viu foi uma bola de neve que se alastrou por toda a imprensa esportiva. Uns sites foram mais discretos, chegando mesmo a borrar as imagens dos ímpios dedos de Cristian. Já outros, mais ousados, mostrando as ‘obscenas’ falanges do jogador; todos, no entanto, viram-se na obrigação de colocar em suas pautas, com mais ou menos atraso, a dita provocação. O infeliz gesto com duração de pouco mais de um segundo feito por Cristian ganharia o mundo.

Análises de supostos especialistas nos programas futebolísticos de fim de noite de domingo surgiam aos borbotões. Hermeneutas auto-eleitos dos símbolos sociais e das torcidas, todos eram unânimes. A pena para o jogador deveria existir, não importasse qual fosse. Cristian, naquele instante, já estava condenado. Mesmo que o árbitro da partida nada tivesse relatado na súmula, procedimento de praxe para a instauração de um inquérito no âmbito esportivo, o jogador teria que sofrer uma punição na opinião dos próceres da justiça. Afinal, mais do que a ofensa à torcida adversária, o gesto de Cristian, segundo os arautos da paz, incitava à violência.

Não tardou muito para que promotores públicos, figuras cada vez mais constantes sob os holofotes do mundo do futebol, viessem acalmar a todos com a abertura de mais possibilidades de punição. Como se não bastasse, um delegado de polícia, no afã de juntar-se ao coro dos descontentes, ameaçou abrir um inquérito policial penal visando a meter Cristian atrás das grades! E a cada dia que passa mais novidades requentadas e opiniões monótonas sobre o caso vêm se amontoando por sites, jornais e programas de rádio e televisivos.

Já vimos esse filme

Exageros à parte, pouco me importa a discussão sobre o valor do ato de Cristian. Se mal-educado ou impensado, extravagante ou extravasante, deixo aos especialistas de plantão o julgamento final. Interessa-me aqui, isto sim, ressaltar o modo pelo qual a imprensa é capaz de tornar algo ou uma situação qualquer, e que deveria ser considerado desprezível ou insignificante, em um objeto obrigatoriamente prenhe de importância e de significância.

A lógica da concorrência jornalística instaurou um problema que praticamente havia passado em branco nas transmissões televisivas e que poderia muito bem receber um tratamento totalmente secundário. Se desprezível, para que tamanha atenção e holofotes? Mas não, o infeliz gesto passaria a ser repetido à exaustão. A discussão sobre suas supostas decorrências, reais intenções, significados, utilizações pretéritas etc., não mais deixaria a cena, acirrando cada vez mais os ânimos para o jogo do próximo domingo.

Na ilusão da neutralidade e da mera ‘prestação de serviços e de informações’, a lente de aumento excessiva utilizada pela imprensa nestes casos torna-se de uma irresponsabilidade alarmante. Sabendo-se das disposições de violência existente entre as torcidas adversárias e das rivalidades crescentes em torno desse jogo, o mais prudente seria não jogar mais gasolina no fogareiro. O que vai acontecer depois desse carnaval armado pela imprensa, não ouso profetizar. Espero que nada. Só há uma certeza, a de que se desastres entre torcidas vierem a ocorrer no Morumbi na partida da volta, a conta não recairá sobre os meios de comunicação. E, obviamente, dirão que o único culpado de qualquer problema futuro será o malfadado gesto de Cristian, o novo ‘Anti-Cristo’ do futebol. A roda da fortuna, por sua vez, continuará o seu giro célere atrás de novos ‘furos’. Já vimos esse filme antes.

******

Sociólogo e doutorando do Departamento de Sociologia da FFLCH – USP