O assassinato, na Holanda, do cineasta Theo Van Gogh seria apenas mais uma notícia policial, não fosse o motivo: o seu filme Submissão, que retrata a situação das mulheres muçulmanas.
Segundo a notícia da Associated Press – que não mereceu uma linha sequer na imprensa brasileira –, o parente distante de Vincent Van Gogh (tataraneto de Theo, irmão do pintor) tinha recebido várias ameaças de radicais muçulmanos, que prometem matar também o autor do roteiro, um muçulmano radicado na Holanda.
Do cineasta, tudo o que se consegue na internet é a notícia do assassinato. Do filme, nada. Se o filme é forte o suficiente para levar extremistas a cometer um assassinato, por que não mereceu a divulgação internacional a que teria direito? Certamente porque a opressão das mulheres muçulmanas não deve ser um assunto de sucesso. De vez em quando a gente vê um documentário sobre o tema ou lê uma notícia sobre um livro ou reportagem que retrata o assunto. E fica por aí.
Mas como reclamar do fato de se dar pouca – ou nenhuma – importância para a situação de uma imensa parcela da população que ainda é considerada inferior se a imprensa do mundo não discute em profundidade nem a situação das mulheres do Ocidente?
Como protestar se os programas de grande audiência na TV e as revistas femininas parecem ter mais sucesso quanto mais reforçam os estereótipos? Dois exemplos claros são o programa Troca de esposas, do canal People & Arts, e a edição de novembro da revista Claudia.
Pauta esquecida
No programa Troca de esposas, as mulheres deixam sua família e vão para outra casa. Sua função: varrer, lavar, cozinhar, passar roupa, cuidar das crianças e, se for o caso, limpar a sujeira dos cachorros. E, se trabalham fora, fazem tudo isso sem deixar de dar o expediente externo. Em alguns casos, os maridos – que não trabalham – fazem o trabalho doméstico e elas levam broncas e broncas por serem preguiçosas.
Os programas, invariavelmente, terminam com a mesma lição de moral: valorize seu marido e tudo aquilo que você conquistou: uma família para cuidar. Em resumo, mulher, mesmo que tenha uma carreira fora de casa, foi feita para cuidar da casa. E tem que fazer isso de bom-humor, bem vestida e bonita, agradecendo aos céus o privilégio de ter marido e filhos.
Nada diferente da mensagem transmitida nas coloridas páginas das revistas femininas. Na edição de novembro de Claudia, por exemplo, a mensagem subliminar está lá: 37 páginas dedicadas à moda, beleza e dieta. Some-se a isso os anúncios (sobre os mesmos assuntos) e a sensação é de que a revista é de moda e beleza. E que os editores estavam sem nenhuma inspiração para tratar de outros temas. Só isso explica a presença de matérias como ‘Tarô para iniciantes’ ou ‘Mais tempo só para você’.
Depois de mostrar a rotina de mulheres brasileiras que se encaixam direitinho no programa Troca de esposa, vêm os conselhos para aproveitar o tempo que sobra. Preciosidades do tipo monte um álbum de fotos, perca a cabeça, brinque de massinha, liberte seus pés… E por aí vai.
De diferente, só a matéria ‘A produção independente em debate’, sob o chapéu ‘Claudia polêmica’, que discute a situação das mães solteiras por opção. Matéria, aliás, muito curiosa. O crescente número jovens adolescentes de classe pobre, mães solteiras por falta de opção, não chega a ser mencionado.
Mulheres negras
Nesse mundo ideal das revistas femininas, discute-se tudo, menos a situação da maioria das mulheres brasileiras – as excluídas da escola, do trabalho e da cidadania. Nada diferente da imprensa mundial, que desconhece a opressão das mulheres muçulmanas.
Se nas sociedades islâmicas elas são oficialmente consideradas seres humanos de segunda classe, aqui – a acreditar nas publicações dirigidas ao público feminino – as mulheres estão totalmente liberadas, desde que comprem belas roupas, saibam escolher o corte de cabelo e o xampu e estejam sintonizadas com o mundo moderno, aprendendo a reger seu destino pelas cartas.
Para não dizer que a mulher do povo não existe nessa linda revista, um anunciante de sabão em pó salva a pátria, no anúncio em que mostra mulheres negras premiadas pela revista por seu trabalho contra o racismo, os abusos trabalhistas e o trabalho infantil.
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Jornalista