Silvia Higuera é uma jornalista colombiana cujo principal tópico de interesse é a cobertura de questões latino-americanas e de direitos humanos, com especial atenção à liberdade de expressão. Atualmente, ela escreve para o Knight Center for Journalism da Universidade do Texas, em Austin. Na Colômbia, ela estudou Comunicação Social e Jornalismo na Universidad Pontificia Bolivariana em Bucaramanga e, em 2015, concluiu seu Mestrado em Jornalismo na Universidade do Texas.
Silvia colaborou com a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Em seu país, trabalhou como repórter em jornais e revistas, onde escreveu sobre questões locais, econômicas e públicas. A seguir, uma entrevista com ela sobre democracia e jornalismo na Colômbia.
Enio Moraes Júnior – Liberdade de expressão e liberdade de imprensa são temas importantes em sua carreira. Você acha que nos últimos 20 ou 30 anos o jornalismo em plataformas online criou mais possibilidades para a liberdade de imprensa, especialmente na América Latina?
Silvia Higuera – De forma geral, tanto a internet como as plataformas online criaram mais possibilidades para a liberdade de expressão. Como dizem alguns especialistas, a internet criou o que eles chamam de “democratização da informação”. O direito à liberdade de expressão não é apenas o direito de se expressar, é também o direito de receber qualquer tipo de informação. E a internet tornou essas coisas possíveis para a grande maioria das pessoas. Em teoria, todos podem expressar suas opiniões e acessar as opiniões de quase qualquer pessoa no mundo todo. Se compararmos isso com as décadas anteriores, apenas algumas pessoas privilegiadas poderiam fazer isso, sendo donos de jornais ou empresas. Claro, esta situação não tem sido útil apenas para os cidadãos em geral, mas também para os jornalistas em particular. Hoje em dia, alguém pode criar um novo meio de comunicação com apenas uma conexão com a internet. O caso não é diferente na América Latina. Nos últimos 10 anos, houve um boom de veículos de mídia digital nativa, que se tornaram referências de jornalismo de qualidade e inovador para a região. El Faro, de El Salvador, que é o mais antigo desta geração por ter sido o primeiro da América Latina (criado em 1998), tem sido reconhecido por seu excelente jornalismo tanto por seu público como por meio de premiações internacionais. Tenho certeza de que, se verificarmos, a maioria dos prêmios mais recentes, como o Prêmio Fundação Gabo, foi para veículos de mídia digital. Isso diz muito. Se não fosse pela internet, esses jornalistas não poderiam ter seus próprios veículos de comunicação. Entretanto, a internet criou muitos desafios e problemas que jornalistas, cidadãos e autoridades devem enfrentar.
Vou falar sobre dois, mas provavelmente há mais. O primeiro é a distância entre quem tem acesso à internet e quem não tem. Esse é um problema particularmente sério na América Latina. Pelo menos na Colômbia, existem grandes áreas sem acesso à internet. O Covid-19 deixou essa situação clara. Por exemplo, alguns alunos em idade escolar não conseguiram continuar suas aulas devido à pandemia e à falta de acesso à rede. Não é possível falar em democratização da informação se temos tantas pessoas sem esse serviço público. A segunda questão, e isso é algo que afeta o mundo inteiro, é que a internet também facilitou a disseminação de mais desinformação e mais rapidamente. Não é segredo como essas estratégias afetaram diferentes eleições – como o Brexit, por exemplo, para mencionar o caso mais conhecido. E, novamente: não é possível falar em garantia do direito à liberdade de expressão se as informações que as pessoas estão obtendo podem ser manipuladas com tanta facilidade, especialmente se esse tipo de informação pode afetar as ações das pessoas. Portanto, se você pode manipular as pessoas para que votem em algo específico, não podemos falar de uma democracia forte. Alguns dias atrás, ouvi a jornalista Maria Ressa, das Filipinas, falar sobre isso. Ela disse que se as pessoas não sabem a diferença entre o que é fato e o que é mentira, tem-se um problema para qualquer democracia.
EMJ – Uma entrevista recente, feita por você, tem como manchete: “Jornalistas não podem perder de vista as pessoas pelas quais têm responsabilidade”. Foi uma conversa com Jineth Bedoya, vencedora do Prêmio Mundial da Liberdade de Imprensa UNESCO / Guillermo Cano 2020. Esta frase diz algo sobre sua conexão com cidadãos colombianos?
SH – Eu avalio que “não perdendo o contato com as pessoas pelas quais temos responsabilidade”, podemos manter a credibilidade e fazer nosso trabalho em meio a esse mundo polarizado. Neste momento, existem sentimentos de desconfiança em relação à mídia em muitos lugares do mundo. Em parte, isso é incentivado por líderes autoritários, mas também porque os jornalistas não fizeram um bom trabalho em manter essa confiança. Se os jornalistas continuarem fazendo seu trabalho — continuarem a trabalhar para as pessoas e a relatar os fatos da melhor maneira possível — eventualmente o público perceberá o que estão fazendo e compreenderá o papel dos jornalistas. Recentemente, ouvi um jornalista da Nicarágua, Carlos Fernando Chamorro, dizer que durante muito tempo as pessoas em seu país tiveram uma espécie de ódio dos jornalistas. O presidente da Nicarágua os chama constantemente de “inimigos do povo” e alguns membros da população estavam convencidos disso. Mas agora, disse ele, em um momento em que o governo tem seu pior índice de aprovação, quando as pessoas estão percebendo as violações que os jornalistas denunciaram por tantos anos, os cidadãos se voltam para os jornalistas em busca de ajuda, até mesmo compartilhando informações com os profissionais da imprensa. Essas informações supostamente mostram violações de direitos humanos, casos de corrupção etc. Portanto, como ele disse, se você continuar fazendo um bom trabalho como jornalista, eventualmente o público perceberá isso.
EMJ – No seu país, você estudou jornalismo e escreveu para jornais e revistas. Como você avalia o papel da imprensa colombiana na construção de uma nação democrática?
SH – O jornalismo colombiano tem desempenhado um papel importante na manutenção da democracia, principalmente ao exigir responsabilidade do governo e de outros agentes públicos. Desde a criação da primeira unidade de investigação (no jornal El Tiempo), os jornalistas denunciaram esquemas de corrupção e outros tipos de irregularidades em todos os aspectos que você pode imaginar: sistema de saúde, sistema educacional, judiciário etc. Os casos mais importantes de corrupção foram trazidos à luz por jornalistas e, em alguns casos, as autoridades puderam tomar medidas com essas informações. Mas seu impacto vai além da corrupção. Os jornalistas colombianos desempenharam papel relevante ao contar as histórias de nosso conflito armado. Houve problemas, mas eles mantiveram o conflito sob os olhos do público. Recentemente, tive a oportunidade de conversar com membros de um projeto que cobre o conflito armado há seis anos. Suas investigações fazem parte das informações coletadas tanto pela Comissão da Verdade como pela Jurisdição Especial de Paz, entidades criadas a partir do Acordo de Paz entre o governo e os guerrilheiros das Farc. Eu avalio que esse caso mostra a importância do jornalismo para a Colômbia. Entretanto, especialmente durante os anos mais violentos, os jornalistas pagam um preço alto por seu trabalho: foram perseguidos, ameaçados, atacados e, até alguns anos atrás, a Colômbia estava no topo do ranking de violência e assassinato de jornalistas.
EMJ – Qual é o papel do jornalismo local na Colômbia? Como ele funciona na consolidação da identidade do país?
SH – O jornalismo local teve um papel importante principalmente durante os anos mais violentos na Colômbia. Algumas vezes, o jornalismo era a única maneira de as pessoas saberem o que estava acontecendo. Mas, ao mesmo tempo, o jornalismo local foi o mais afetado pelo conflito armado, pela violência e até pela corrupção. Neste último caso, por exemplo, a mídia depende da publicidade do governo e isso afeta a maneira como eles podem realizar seu trabalho. Não estou dizendo que esses meios de comunicação sejam corruptos, mas às vezes os jornalistas sentem que não têm opções além da autocensura. A Fundação para a Liberdade de Imprensa da Colômbia (FLIP) produziu uma reportagem sobre jornalismo local e constatou que mais de 600 municípios não têm nenhum tipo de informação local – eles podem ter estações de rádio ou televisão, mas oferecem informações nacionais, em vez de locais, e entretenimento, como música. Esse é definitivamente um problema na Colômbia e requer mais atenção da grande mídia, mas também das autoridades. Isso poderia ser consertado, por exemplo, com uma presença mais robusta do Estado nessas regiões (para evitar a violência ou a corrupção) e conexões de internet que permitissem a criação de outros meios de comunicação.
EMJ – Considerando o seu olhar sobre o jornalismo nos Estados Unidos e na Colômbia, como você avalia a formação de jornalistas na defesa dos direitos humanos?
SH – Não tenho certeza se jornalistas devem ser treinados em defesa dos direitos humanos. Acho que devemos aprender sobre os direitos humanos em geral e, em particular, sobre o direito à liberdade de expressão. Isso significa que os jornalistas devem aprender sobre o quadro jurídico internacional para a liberdade de expressão, como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos; e no caso da América Latina, eles deveriam aprender sobre o Sistema Interamericano de Direitos Humanos. As escolas deveriam ensinar, por exemplo, o que a Convenção Americana estabelece sobre o assunto e quais foram os casos mais importantes decididos pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em matéria de liberdade de expressão. Eles também devem ensinar a lei nacional sobre o acesso à informação pública. Eu acho que esse conhecimento poderia ajudar os jornalistas a realizar seu trabalho. Isso não significa que os jornalistas não terão obstáculos, mas pelo menos eles poderiam ter uma base jurídica mais sólida para defender seus direitos. No mundo dos direitos humanos, os especialistas costumam dizer que o direito à liberdade de expressão é o direito que garante outros direitos humanos. Nesse sentido, se os jornalistas pudessem ajudar a assegurar essa liberdade, outros direitos humanos seriam protegidos.
EMJ – A formação de jornalistas também é importante para a liberdade de imprensa e de expressão? O que você poderia dizer sobre a sua experiência na Universidad Pontificia Bolivariana de Bucaramanga?
SH – Essa é uma pergunta interessante. Nunca pensei nisso dessa forma. Eu acho quando os jornalistas são bem treinados para fazer jornalismo de qualidade, voltado para as pessoas – como disse Jineth Bedoya na entrevista – a liberdade de imprensa pode se fortalecer. Em particular, se houver um jornalismo de qualidade que sirva ao interesse público, o público poderá perceber sua importância para a democracia e em sua vida diária. Eu diria que essa é, se não a única, uma das maneiras de recuperar a confiança do público. Se a mídia contar com um apoio sólido de seu público, há mais chances de uma liberdade de imprensa mais robusta. No entanto, não creio que a garantia desse direito dependa de quão bem os jornalistas desempenhem seus papéis. Trata-se de um direito humano e precisa ser garantido de qualquer maneira.
Esta entrevista faz parte de uma série sobre jornalismo no mundo, uma iniciativa do pesquisador e jornalista Enio Moraes Júnior, juntamente com o Alterjor — Grupo de Estudos de Jornalismo Popular e Alternativo da Universidade de São Paulo. As entrevistas são originalmente publicadas em inglês no Medium. Leia aqui.
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Enio Moraes Júnior é jornalista e professor brasileiro. Doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (Brasil), vive em Berlim desde 2017. Acesse o portfólio do autor: EnioOnLine.