É evidente que questões de saúde especialmente graves, envolvendo nomes importantes do cenário político mundial, são um prato cheio para a imprensa. E, naturalmente, para todos aqueles que desejam estar minimamente informados sobre como anda o planeta.
No caso do noticiário sobre o estado de saúde do presidente da Autoridade Palestina Iasser Arafat, há uma situação literalmente explosiva na conturbada região do Oriente Médio, em meio a mais uma violenta intinfada e as respostas das forças de defesa israelenses. Isso não é o mais relevante do que pretendo comentar aqui. As considerações são mais de ordem médico-jornalística, tentando deixar de lado os quesitos políticos implicados.
[Permito-me sugerir aos leitores que busquem nas edições dos últimos dois meses do British Medical Journal (www.bmj.com) artigos descrevendo sem prova ou citação alguma a discriminação de tratamento médico de israelenses para com árabes e do impedimento da atenção médica a palestinos vítimas do exército de Israel, suposições que na última semana foram brilhantemente desmascaradas por outro artigo, este com referências e metodologia.]
Bolhas de sabão
As confusões são muitas: durante entrevista coletiva do recém-reeleito George W. Bush, um repórter chegou mesmo a anunciar o falecimento de Arafat, o que gerou uma das inúmeras gafes do presidente americano, mas dessa vez sem ser ele o diretamente culpado.
Faltam informações sobre a doença por ora misteriosa de Arafat, provavelmente hematológica (o hospital militar francês para onde foi transferido o líder palestino é especializado nesse tipo de doenças), e o que acontecerá com o Oriente Médio e os EUA caso Arafat venha a morrer (ou já tenha isso acontecido quando da publicação desta edição do Observatório).
Por definição, a mais simples e talvez mais significativa, coma significa ausência da consciência. Todos nós temos experiências semelhantes nas variações do estado de consciência – o sono, a bebedeira, o acordar – e nenhuma delas é doença de per se. A questão básica é que, dentro do espectro doença, a consciência pode variar de um leve estupor a um coma profundo. Existem várias escalas para se chegar a esses diagnósticos, desde as complexas, como a francesa de Jouvet, até a mais utilizada, a escala de coma de Glasgow, que varia de 3 a 15 (3 é a consciência plena, não há o zero). Essas escalas são usadas nas UTIs dos hospitais.
Alguém pode estar em um estado de coma profundo, no máximo das escalas utilizadas, mas a causa ser uma superdosagem de um barbitúrico, por exemplo, ou mesmo de álcool. A situação é grave e merece cuidados médicos especiais, mas quase com toda a possibilidade essa pessoa irá se recuperar, acordar e voltar ao que era antes. No caso de uma extensa hemorragia cerebral ou um traumatismo ou de doença hepática igualmente muito avançada, por exemplo, há alta probabilidade de o paciente não acordar mais.
Conclusão: não basta saber se alguém está em coma, e em qual intensidade: é importante conhecer-se também a causa.
Desse modo, na falta de outros dados, ficar especulando apenas com o dado ‘Arafat está em coma’ não quer dizer absolutamente nada – a própria anestesia pode ser considerada como um estado de coma induzido. Assim, deve-se prestar muita atenção aos inúmeros porta-vozes palestinos reagindo furiosamente quando alguém diz o presidente da Autoridade Nacional Palestina está em coma e desmentem com todo o vigor. Na verdade, isso tem tanto valor quanto analisar a espectrocopia de massa de bolhas de sabão. Mas a palavra coma é tão forte que certamente para a maioria significa o passo imediato anterior à morte. Pode até ser, mas nem sempre é assim.
Tempo ao tempo
Outro dado referente ao lacônico e de certa forma engraçado porta-voz militar francês, que sobe num palco para dizer apenas umas quatro ou cinco palavras… Pode ser esdrúxula a situação, mas a ética médica internacional preconiza já há muito tempo algo de extrema importância: caso o paciente ou seus responsáveis legais, família ou políticos, não desejem que algo seja informado, resta aos médicos os famosos boletins que quase nada querem dizer. Isso é proteção à integridade moral do paciente. E romper o sigilo profissional pode até ser crime em muitos países.
Quando o paciente é um político importante, o mesmo valendo para um artista ou qualquer personagem do mundo VIP, as coisas podem ser ainda mais rigorosas. São muito poucos os casos em que se quer a mais ampla divulgação do estado de saúde de alguém.
No Brasil tivemos um péssimo exemplo no caso Tancredo Neves, tanto de médicos quanto jornalistas e assessores, como no espantoso caso de Mario Covas.
Resumindo: coma é apenas um estágio da consciência, podendo ser completamente reversível ou não, dependendo da causa e de inúmeros outros fatores. E mesmo que o paciente seja Arafat, e que seu eventual óbito possa significar mais instabilidade militar ao mundo, nada pode passar por cima do segredo profissional – talvez o último ato a dignificar uma pessoa, seja ela quem for.
E a imprensa? Nesse caso, está confusa como todos e não cabe a ela se fazer passar pela Securité, CIA, Mossad ou MI-6 para tentar descobrir o que está acontecendo de verdade. Deixemos o tempo nos fornecer essas informações.
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Médico, mestre em Neurologia pela Escola Paulista de Medicina/Universidade Federal de São Paulo, ex-conselheiro do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo