Definir hoje quem é jornalista não é uma tarefa fácil. É que a maioria dos procedimentos, regras e valores que serviam de base para o exercício da atividade estão mudando com uma velocidade que desafia nossa capacidade de construir, também rapidamente, uma nova identidade da profissão.
Tudo o que entendemos por jornalismo surgiu a partir das redações de jornais, mas hoje a produção de notícias também é feita, e cada vez mais, fora de empresas de comunicação. Além disso, a produção de notícias, reportagens e entrevistas é realizada agora por equipes mistas formadas por profissionais com diferentes habilidades e competências. O que os une é o objetivo comum de produzir algo inovador, relevante, pertinente, exato e confiável, elementos que até agora eram vistos como exclusivos dos jornalistas, tanto os com curso superior como os formados na prática.
Quando a materialização de uma notícia acontecia apenas no papel e nas ondas eletromagnéticas da rádio e televisão, era fácil identificar a função de um jornalista. Mas a ampliação das comunicações para a esfera digital incorporou ao trabalho jornalístico profissionais como, por exemplo, designers gráficos, de som e de imagens, programadores, especialistas em interatividade, em processamento de dados, redes sociais e em realidade social.
Cada uma destas funções trouxe para o universo jornalístico uma contribuição específica. Já não é mais suficiente para um repórter ou editor definir qual será o lead (abertura) do projeto, porque isto vai depender do designer de imagem ou som. O desenvolvimento da história não ficará mais na dependência exclusiva do redator porque o programador e o encarregado de redes sociais serão decisivos na determinação de outros elementos que compõem uma estrutura não linear na narrativa.
Para complicar ainda mais o quadro, surgiram os robôs jornalísticos programados para selecionar, agrupar e distribuir notícias de forma automática. Os robôs começam a “conversar” entre si criando um ambiente informativo que já não depende mais diretamente de um humano, mas condiciona a forma como repórteres e editores desenvolvem seu trabalho. É o caso dos disparos automáticos em massa de mensagens via redes sociais que acabam influindo na agenda da imprensa, obrigando os jornalistas a lidarem com os efeitos da tecnologia na formação de percepções públicas.
Hoje, um repórter não consegue mais apurar sozinho um tema sem contar com a ajuda de especialistas em buscas na internet ou de checadores de informações. São duas funções que se sofisticaram de tal forma que há necessidade de um conhecimento específico, que obviamente passa a condicionar o conjunto do trabalho. Se um mesmo jornalista for desempenhar todas as funções exigidas para a realização de uma reportagem online, hoje em dia, ele dificilmente conseguirá aprontá-la dentro dos prazos normalmente estabelecidos pela dinâmica do noticiário.
O curioso Jornalismo X
É quase impossível um mesmo profissional estar permanentemente atualizado sobre vários softwares ao mesmo tempo, porque a concorrência entre os fabricantes faz com que eles melhorem constantemente seu produto. Assim, os produtores de programas jornalísticos multimídia são forçados a incluir vários profissionais diferentes em suas respectivas equipes para que o resultado seja o mais atualizado possível e atenda às exigências de patrocinadores.
A complexidade do universo jornalístico aumentou ainda mais nos últimos 30 anos com o surgimento de dezenas de diferentes categorias profissionais segmentadas segundo critérios geográficos, tecnológicos, políticos, sociais e até morais. Uma pesquisa do Leibniz Institute for Media Research, do instituto alemão Hans-Bredow (HBI) propôs a marca Journalism X (Jornalismo X) para definir genericamente as mais de 150 modalidades de jornalismo identificadas desde 1856. Uma síntese da pesquisa pode ser lida no documento Exploring journalism’s diverse meanings through the names we give it.
A enorme diversificação na produção de notícias online é um processo sobre o qual ainda possuímos muito pouca experiência, mas já temos suficientes indícios para apostar que ele é o futuro do jornalismo na internet. Como é um processo em desenvolvimento e como não temos outra referência senão o método do erro e do acerto no desenvolvimento de projetos online, a nova identidade jornalística será construída de baixo para cima, ao contrário do que ocorreu na imprensa analógica, dos últimos dois séculos.
Os valores ainda vigentes no jornalismo tradicional foram introduzidos verticalmente de cima para baixo pelas elites empresariais que apostaram, no século XIX, na produção de notícias como um suporte do sistema democrático. A instabilidade política no pós guerra criou condições para que a inserção política da imprensa fosse moldada conforme a realidade da época. Mas hoje, o problema principal passou a ser a produção de conhecimento para enfrentar os desafios e incertezas da era digital, bem como os desajustes socioeconômicos que a democracia não conseguiu superar.
Trata-se de uma área nova da atividade jornalística em que os pesquisadores europeus, norte-americanos e australianos estão descrevendo o que os praticantes do jornalismo digital fazem e como eles descrevem o que fazem. Esta preocupação em partir de baixo para cima usa a observação da prática diária dos profissionais junto com a análise do discurso usado pelos jornalistas para justificar as suas ações. A exploração desta nova área teórica do jornalismo se inspira nos trabalhos do sociólogo e filósofo francês Bruno Latour, autor da teoria Ator/Rede.
O jornalismo é uma peça essencial neste processo de aceleração e diversificação do fluxo de notícias para que as pessoas consigam recombinar informações para produzir conhecimentos capazes de identificar soluções inovadoras. Isso vai exigir o desenvolvimento de novas ferramentas, regras e definições num processo onde a nova identidade do jornalismo é o resultado final e não um ponto de partida.
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Carlos Castilho é jornalista, graduado em mídias eletrônicas, com mestrado e doutorado em Jornalismo Digital e pós-doutorado em Jornalismo Local.