No Brasil, pesquisas mostram que WhatsApp e Facebook são as principais redes propagadoras de informações falsas
O surgimento do novo coronavírus (Sars-CoV-2) impactou o mundo de forma rápida e contundente. Espalhando-se pelo planeta a uma velocidade incrível, a Covid-19 forçou mudanças de comportamento de indivíduos em todo o mundo, de hábitos de higiene pessoal ao distanciamento social, alterando rotinas de trabalho e gerando incertezas na população mundial quanto à configuração do futuro.
Informações relativas à doença, como protocolos de saúde, necessitam ser transmitidas de forma adequada para as diferentes populações do mundo. No entanto, junto com uma pandemia, surge também uma multiplicação de informações, verdadeiras e falsas, que interferem nesse trabalho de comunicação realizado não só por órgãos oficiais, como governos e organismos nacionais e internacionais de saúde, mas também por mídias jornalísticas e influenciadores digitais.
“Não estamos apenas lutando contra uma epidemia; estamos lutando contra uma infodemia”, disse o Diretor-Geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, na Conferência de Segurança de Munique em 15 de fevereiro de 2020. Para a OMS e a Organização Pan-americana da Saúde (OPAS), infodemia é um excesso de informações, algumas precisas e outras não, que torna difícil encontrar fontes idôneas e orientações confiáveis quando se precisa.
Ela se refere a um grande aumento no volume de informações associadas a um assunto específico, que podem se multiplicar exponencialmente em pouco tempo devido a um evento específico, como a pandemia atual. Nessa situação, surgem rumores e desinformação, além da manipulação de informações com intenção duvidosa.
O fenômeno da infodemia, entretanto, não é novo. Segundo Sylvie Briand, criadora da estratégia da OMS para combater a infodemia, foi possível atestar a ocorrência deste acontecimento em outras épocas, como a Idade Média. Para Briand, “todo surto será acompanhado por uma espécie de tsunami de informações (…). A diferença agora é que, com as mídias sociais, esse fenômeno é amplificado, vai mais rápido e mais longe, como os vírus que viajam com as pessoas e vão mais rápido e mais longe. Portanto, é um novo desafio, e o desafio é o [tempo] porque você precisa ser mais rápido se quiser preencher o vácuo… O que está em jogo durante um surto é garantir que as pessoas farão a coisa certa para controlar a doença ou para mitigar o seu impacto”.
A infodemia acelera e perpetua a desinformação. O maior acesso a celulares conectados à internet, além das redes sociais, resultou em uma geração exponencial de informações e em um aumento dos meios possíveis de obtê-las, criando uma “epidemia de informações”. Sendo assim, a desinformação se expande no mesmo ritmo em que a produção de conteúdo e as vias de distribuição se multiplicam.
Em relatório produzido para a Unesco, as pesquisadoras Kalina Bontcheva e Julie Posetti defendem que a desinformação originada pela infodemia ameaça não apenas indivíduos, mas sociedades inteiras. Ela leva cidadãos a se colocarem em risco por ignorarem recomendações científicas; amplia a desconfiança nos governos e formuladores de políticas públicas; e desvia os esforços jornalísticos para a refutação reativa de falsidades quando eles deveriam priorizar o relato proativo de novas informações, resultando, portanto, em um estado de desconfiança permanente.
Tipos e causas da desinformação
Por considerarem que a desinformação relativa ao Covid-19 é mais tóxica e mortal do que a desinformação sobre outros temas, Bontcheva e Posetti cunharam o termo “desinfodemia”. Para as autoras, a desinfodemia introduz falsidades na consciência das pessoas focando nas crenças ao invés da razão e em sentimentos ao invés de deduções. Ela se baseia nos preconceitos, na polarização política e em políticas identitárias, bem como na credulidade, no cinismo e na busca dos indivíduos pela criação de sentido diante das mudanças e de uma situação de grande complexidade.
Segundo as pesquisadoras, as motivações para a criação de desinformação são diversas: ganhar dinheiro; marcar vantagem política; minar a confiança; deslocar culpa; polarizar pessoas e dificultar respostas à pandemia. Algumas razões podem ainda ser atribuídas à ignorância, aos egos individuais ou à uma intenção de ser útil divulgando informações equivocadas.
Quatro formatos dominantes em relação à desinformação sobre a pandemia, que incluem textos, imagens, vídeos e áudios, foram mapeados nesse estudo realizado para a Unesco, além de nove temas principais. Os principais tipos de formato da desinfodemia são:
- Construções narrativas emocionais e memes: afirmações falsas e narrativas textuais que frequentemente misturam linguagem emocional forte, mentiras e/ou informações incompletas e opiniões pessoais, juntamente com elementos de verdade.
- Sites fabricados e falsas identidades oficiais: essa categoria inclui fontes falsas, bancos de dados poluídos e sites falsos de governos ou empresas, além de sites que publicam informações aparentemente plausíveis como notícias jornalísticas.
- Imagens e vídeos alterados, fabricados ou descontextualizados fraudulentamente: esses recursos são usados para criar confusão e desconfiança generalizada e/ou evocar emoções fortes por meio de memes virais ou histórias falsas.
- Infiltradores de desinformação e campanhas orquestradas: o objetivo nesta categoria é semear a discórdia nas comunidades online; avançar com agendas nacionalistas e geopolíticas; coletar de forma ilícita dados pessoais de saúde e informações como nomes de usuário, senhas e detalhes de cartão de crédito; ou ganho monetário com spam e anúncios de curas falsas. Esses formatos também podem incluir antagonismo artificiais e amplificação de alcance gerados por “bots” (robôs) e “trolls” como parte de campanhas de desinformação organizadas.
Em relação aos temas, as pesquisadoras concluíram que os nove assuntos principais da desinfodemia são:
- Origens e propagação do coronavírus: enquanto os cientistas identificavam pela primeira vez casos do novo coronavírus relacionados a um mercado de animais na cidade chinesa de Wuhan, existiam muitas teorias da conspiração que culpavam outros atores e causas. Isso ia desde culpar a rede 5G até os fabricantes de armas químicas.
- Estatísticas falsas e enganosas: esse tema frequentemente está relacionado à incidência da doença e às taxas de mortalidade.
- Impactos econômicos: esse assunto inclui a divulgação de informações falsas sobre os impactos econômicos e de saúde da pandemia, sugestões de que o isolamento social não é economicamente justificado e até mesmo reivindicações de que a Covid-19 está criando empregos em geral.
- Desacreditar jornalistas e meios de comunicação confiáveis: esse é um tema frequentemente associado à desinformação política, com acusações infundadas de que certos veículos de notícias estão eles mesmos vendendo desinformação. Esse comportamento inclui abusos públicos contra jornalistas, mas também é usado por campanhas de desinformação menos visíveis para minar a confiança em notícias verificadas produzidas segundo o interesse público.
- Ciências médicas (sintomas, diagnóstico e tratamento da doença): esse tópico trata de desinformação perigosa sobre imunidade, prevenção, tratamentos e curas.
Impactos na sociedade e no meio ambiente: esse tema da desinfodemia vai desde o incentivo a compras pelo pânico gerado pela pandemia, informações falsas sobre “lockdowns” até questões ambientais, como o suposto ressurgimento de golfinhos nos canais venezianos. - Politização: informações unilaterais e enquadradas positivamente são apresentadas em um esforço para negar a importância dos fatos que são inconvenientes para certos atores políticos. Outras desinformações feitas para enganar e obter vantagens políticas inclui: equiparar a Covid-19 com gripe; fazer afirmações infundadas sobre a provável duração da pandemia; e afirmações sobre a disponibilidade ou não de exames e equipamentos médicos.
- Conteúdo feito para ganho financeiro fraudulento: esse tópico consiste em golpes criados para roubar dados privados de pessoas.
- Desinformação focada em celebridades: esse tema inclui histórias falsas sobre atores sendo diagnosticados com coronavírus.
Outra pesquisa realizada pelo Reuters Institute for the Study of Journalism e a Universidade de Oxford revelou que, em termos de formatos, a maioria da desinformação (59%) analisada envolveu várias formas de reconfiguração de informações existentes, normalmente verdadeiras, onde elas foram deturpadas, descontextualizadas ou retrabalhadas. Apenas uma menor parte (38%) era completamente inventada. Em relação às redes sociais, a desinformação reconfigurada foi responsável por 87% das interações, enquanto as informações totalmente fabricadas responderam por 12% do conteúdo.
Sobre os tópicos abordados, as afirmações enganosas ou falsas sobre ações ou políticas de autoridades públicas, incluindo governos e organismos internacionais (OMS, ONU) foram a maior categoria de alegações identificadas, aparecendo em 39% da amostra. O segundo tema mais comum disse respeito à disseminação do vírus pelas comunidades (24%). Esse conteúdo variava desde alegações de que certas áreas geográficas estavam presenciando suas primeiras infecções até atribuir culpa a certos grupos étnicos pela disseminação do vírus.
A infodemia e a desinformação no Brasil e na América Latina
Na América Latina, a comunicação teve uma influência significativa na decisão das pessoas de como se portar diante da pandemia do novo coronavírus, segundo levantamento realizado pela Sherlock Communications.
O estudo investigou como as pessoas de seis países (Brasil, México, Argentina, Peru, Chile e Colômbia) estão se informando, sendo influenciadas e tomando decisões em relação à pandemia. De acordo com entrevistados, os três principais fatores que os convenceram a praticar o distanciamento social foram conselhos dos profissionais de saúde; comunicações governamentais e notícias publicadas pela imprensa.
Multas e leis das autoridades e influenciadores digitais foram, nessa ordem, as outras duas categorias que mais induziram os indivíduos a permanecerem isolados. Por fim, aqueles que afirmaram não praticar o distanciamento social representaram o menor grupo.
Entre os participantes, Brasil e Colômbia foram as nações que mais sofreram influências das mídias (online, impressa, rádio e TV) com 65% e 60%, respectivamente. Os avisos dos governos foram mais determinantes para Peru (77%) e Argentina (69%).
O México mostrou ser o país mais suscetível à persuasão feita por influenciadores digitais (14%), enquanto a Colômbia teve a maior porcentagem de pessoas que disseram ter ficado em casa por medo de serem multadas (35%). O Brasil teve a maior porcentagem de cidadãos que disseram não praticar o isolamento social (5%).
Quando a pergunta feita foi “em que mídia você mais confia ao obter conselhos sobre a pandemia atual”, as respostas dos diferentes países revelaram semelhanças. Em primeiro lugar, apareceu a internet (notícias online e sites oficiais), seguida pela televisão. O podcast foi o meio com a menor quantidade de respostas, ficando atrás de jornais e revistas impressas (3ª posição), programas de rádio (4ª posição) e redes sociais (5ª posição).
Os profissionais médicos foram o grupo que recebeu maior índice de confiança das diferentes populações quando questionadas “em quem você mais confia ao obter conselhos sobre a pandemia atual?”. Em seguida vieram cientistas e universidades (nacionais e internacionais); autoridades globais de saúde (OMS, instituições de pesquisa e hospitais); ministérios da saúde; famílias; presidentes e, por fim, políticos.
A organização internacional Avaaz também realizou uma pesquisa conduzida no Brasil, na Itália e nos Estados Unidos, três países amplamente afetados pelo novo coronavírus. O objetivo era entender o grau de crença na desinformação sobre o vírus.
Nesse estudo, realizado virtualmente com pessoas dos três países entre os dias nove e quinze de abril de 2020, a Avaaz selecionou nove afirmações sobre o coronavírus e as apresentou aos entrevistados apenas em formato de texto: duas eram afirmações baseadas em informações corretas e sete eram conteúdos falsos desmentidos por verificadores de fatos independentes. As principais conclusões foram:
- Há uma verdadeira infodemia sobre o coronavírus no Brasil. 94% dos brasileiros entrevistados viu, pelo menos, uma das notícias falsas sobre o Covid-19 mostradas na pesquisa. Cerca de 80% viu duas ou mais das notícias falsas apresentadas e quase 60% viu ao menos três, com 6% dos brasileiros tendo visto todas as sete notícias falsas apresentadas no estudo.
- Os internautas brasileiros acreditam mais nas informações falsas sobre o coronavírus do que os italianos ou os estadunidenses. 73% dos brasileiros entrevistados acredita que pelo menos um dos conteúdos com desinformação é verdadeiro ou provavelmente verdadeiro, seguido por 65% dos estadunidenses e 59% dos italianos.
Outro dado mostra que 46% dos brasileiros entrevistados acredita que amigos e familiares foram vítimas de notícias falsas, seguido por 41% dos italianos e 26% dos estadunidenses.
- O WhatsApp e o Facebook estão entre as três fontes mais citadas pelos brasileiros para todas as declarações falsas mostradas na investigação. 59% viu ao menos um dos conteúdos desinformativos sobre o coronavírus no WhatsApp.
O WhatsApp também foi a fonte mais citada para quatro das sete notícias falsas apresentadas aos entrevistados. 55% viu ao menos um dos conteúdos falsos no Facebook.
- Por outro lado, os brasileiros querem muito ter acesso às informações verdadeiras. 80% diz que gostaria de receber correções de verificadores de fatos quando forem expostos a notícias falsas.
Os resultados da pesquisa revelaram ainda que as afirmações falsas nas quais os usuários de internet brasileiros mais acreditaram foram: “o novo coronavírus foi criado em um laboratório secreto na China”; “tomar grandes doses de vitamina C pode retardar ou até impedir a infecção do novo coronavírus”; “especialistas em saúde recomendam beber água regularmente pois isso levará o novo coronavírus para o seu estômago, onde a acidez irá matá-lo”.
Outro estudo conduzido pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP) e a Fundação Oswaldo Cruz, (Fiocruz) também mostrou que o WhatsApp e o Facebook foram as redes sociais nas quais ocorreu a maior propagação de notícias falsas sobre o coronavírus no país. A pesquisa, que analisou denúncias e notícias falsas recebidas pelo aplicativo Eu Fiscalizo entre 17 de março e 10 de abril, revelou que 10,5% das notícias falsas foram publicadas no Instagram; 15,8% no Facebook e 73,7% circularam pelo WhatsApp.
Afinal, o que podemos fazer diante da infodemia?
Os grupos envolvidos no trabalho de esclarecimento da sociedade (governos, mídias, plataformas de tecnologia e pesquisadores), embora possuam uma finalidade em comum, assumem papéis diversos no combate à desinformação. Como resultado de suas pesquisas, Bontcheva e Posetti elencaram uma série de recomendações a serem seguidas por esses diferentes setores nesse período de infodemia. Abaixo encontra-se uma lista reduzida delas.
Governos
- Os governos precisam aumentar a transparência e a divulgação de informações e dados oficiais, especialmente em questões relacionadas à Covid-19, e reconhecer os jornalistas como trabalhadores-chave, oferecendo assistência e proteção de acordo com as condições nacionais de emergência.
- Os governos devem planejar o financiamento e apoio à “alfabetização midiática” (media literacy), especialmente por meio de intervenções educacionais, além de estimular o investimento no jornalismo independente, já que os impactos econômicos da crise gerada pela pandemia ameaçam a sustentabilidade jornalística em todo o mundo.
Mídias
- Aumentar o investimento em checagens de fatos e em inovações (produzir informações em formatos mais acessíveis e atraentes, como infográficos, podcasts e fóruns online moderados com especialistas; utilizar conteúdo produzido pela audiência, desde que devidamente checado).
- Estabelecer parcerias em investigações relacionadas à desinformação com outras organizações de notícias nacionais e internacionais.
Plataformas de tecnologia (Google e redes sociais)
- Intensificar a transparência sobre suas respostas à desinfodemia, como as remoções de conteúdos, e fornecer mais apoio financeiro às redes de checagem de fatos e ao jornalismo independente.
- Evitar a dependência excessiva da automação, expandindo o processo de revisão humana principalmente na moderação de conteúdo.
- Concentrar-se na curadoria para garantir que os usuários possam acessar facilmente informações jornalísticas verificadas, trabalhando para aumentar a visibilidade dos conteúdos noticiosos confiáveis, e compensar financeiramente os produtores de notícias cujos conteúdos beneficiam os negócios dessas plataformas, já que muitas organizações de notícias removeram o acesso pago aos seus conteúdos durante a pandemia.
Pesquisadores
- Os pesquisadores devem colaborar com jornalistas, organizações de notícias e grupos da sociedade civil em projetos que ajudam a revelar e combater a desinformação, trabalhando também para desenvolver novas ferramentas que auxiliem na análise eficiente da desinformação, bem como na elaboração e promoção eficaz de desmentidos e informações fundamentadas.
Porém, além das categorias destacadas, cada cidadão também pode colaborar adotando ações no seu cotidiano. Com essa finalidade, a OMS e a OPAS elaboraram algumas sugestões de práticas a serem feitas por qualquer indivíduo:
- Confie na OMS;
- Apoie a ciência aberta (open science) — modelo de prática científica que prega uma pesquisa mais colaborativa, transparente e eficiente, com disponibilização de dados e pesquisas nas redes;
- Identifique as evidências;
- Confirme a fonte, sobretudo em conversas no WhatsApp;
- Se você não tem como confirmar a fonte da informação, sua utilidade, ou se já foi compartilhada antes, é melhor não compartilhar;
- Denuncie os rumores prejudiciais;
- Continue aprendendo.
Publicado originalmente no Medium.
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Raul Galhardi é jornalista e mestre em Produção Jornalística e Mercado pela ESPM-SP.