Na quinta-feira (16/4), o Bom Dia Brasil, programa exibido pela Rede Globo de Televisão todas as manhãs de segunda a sexta-feira, veiculou uma reportagem que, poderíamos afirmar, no mínimo careceu de profissionalismo e respeito ao telespectador/cidadão. A dita matéria tratava da degradação dos viadutos da capital baiana que, para a minha surpresa como espectadora, foi concluída dando a entender que o estado de deterioração daquelas construções é conseqüência da falta de educação dos machos soteropolitanos (salvaguardadas as devidas exceções) que costumam urinar nas estruturas.
É bem verdade que um estudo de engenharia revelou que a urina humana ajuda a corroer as ferragens que sustentam os pilares das edificações, mas daí a enquadrar a reportagem atribuindo a degradação destas aos efeitos da urina há uma distância bem grande e, sobretudo, uma falta de respeito para com o espectador e/ou contribuinte que paga os impostos cujos recursos deveriam ser canalizados para, entre outras coisas, a manutenção das edificações públicas.
É verdade que, ao transitar pelos quatro cantos da cidade de Salvador, o cidadão soteropolitano, ou mesmo o turista, percebe a falta de educação de uma parcela considerável de homens que ignoram as boas maneiras e esvaziam suas bexigas em plena via pública, em geral encostados em vigas, muros e paredes, demonstrando verdadeira falta de civilidade e de respeito para com o outro. Mas é verdade também que se os representantes do poder público usassem devidamente os recursos arrecadados com os variados impostos, teriam o bom senso de colocar sanitários químicos decentes em diversos pontos da cidade – como ocorre na maioria das cidades dos países que têm administrações públicas decentes –, evitando ou mesmo mimimizando este comportamento tão abominável.
Estrangulamento tributário
A reportagem da rede Globo, em vez de centrar o seu enquadramento nos efeitos que a urina humana causa nas ferragens das estruturas daqueles viadutos deteriorados, deveria ter tratado das questões relacionadas à falta de investimento público nas áreas urbanas – tanto para a construção e/ou instalação de equipamentos, como também para a manutenção dos poucos existentes – e, logicamente, não deixar de mencionar a falta de civilidade de indivíduos desrespeitosos que usam a via pública para fazer suas necessidades fisiológicas, o que contribui para o deterioro desses equipamentos públicos. Porque os viadutos não foram deteriorados pela urina humana, mas pela falta de manutenção.
Em vez disso, a emissora preferiu desrespeitar o espectador e/ou contribuinte, dando ênfase à questão da urina, como se esta fosse a responsável pelo estado lastimável que se encontram inúmeras construções públicas na capital baiana – principalmente os viadutos –, minimizando a responsabilidade do poder público que mal gasta as verbas arrecadadas com o estrangulamento tributário a que está submetida a população de todos os estados e municípios deste país.
‘Máquinas de informação’
É interessante notar que o poder público sempre encontra substancial ajuda de determinados meios de comunicação de massa – e a Globo se configura como um dos principais colaboradores – no sentido da minimização de suas responsabilidades e a maximização da responsabilidade do cidadão quanto aos problemas sociais. Não faz muito tempo, a mesma emissora, na mesma programação, exibiu matéria dando conta de que a deficiência do aproveitamento escolar no Brasil se deve ao fato de as crianças e adolescentes que vivem em áreas de risco – favelas – faltarem muito às aulas. É verdade que este é um fator a ser considerado, mas é inadmissível que se atribua a ineficiência da educação pública à violência urbana. Em realidade, a violência urbana no Brasil é conseqüência, dentre outros fatores, da falta de eficiência do sistema educacional (se é que o país tem um). No entanto, há uma tendência de se inverter os enquadramentos no sentido de dar a entender que a responsabilidade maior não está nas mãos dos administradores públicos. Por que será que isso acontece?
De acordo com Muniz Sodré, os meios de comunicação de massa assumem uma aparência de ‘máquinas de informação’. No entanto, são de fato máquinas integradoras e simulatórias (construtora de uma realidade) exigidas pela nova ordem social.
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Doutora em História da Comunicação pela Universidad Complutense de Madrid, professora da Faculdade 2 de Julho (Salvador, BA) e da rede pública de ensino do estado da Bahia