Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

TV Cultura, passado e futuro

A TV Cultura faz 40 anos. Eu estava no quarto ano do primário quando começaram as transmissões. Certo que eu era bastante CDF naquele tempo, mas adorava tudo o que via. O curso de madureza, por exemplo. As aulas de português tinham a ilustrá-las uma novela baseada no romance O Feijão e o Sonho, de Orígenes Lessa. Não perdia um capítulo.


Havia também um programa de cultura geral, em que pessoas mandavam cartas com perguntas sobre qualquer assunto: qual a origem da gravata? Quem foi Béla Bartók?
Alguns anos mais tarde, liguei a Cultura e topei com o close de um senhor bastante calvo, olhos doces e voz enfática. O homem discorria, numa pronúncia carregada, a respeito da obra de ‘Gágal’ e de ‘Dásh-tay-évshky’. Tratava-se do professor Boris Schnaiderman, explicando a teoria do dialogismo de Bakhtin em Gógol e Dostoiévski.


Outro programa que eu não perdia, naqueles desertos de audiência, era uma mesa-redonda com historiadores da USP. Semanalmente, os mesmos professores se entredevoravam a propósito dos mais variados temas: a pirataria no Caribe no século 18, as guerras púnicas, a queda de Constantinopla.


Um deles, certa vez, exaltou-se a respeito de uma passagem de Políbio. Seu adversário deu um risinho. ‘Ora… A partir da mesma passagem de Políbio posso dar uma interpretação diametralmente oposta à sua.’ E lá foi ele.


Muitas respostas


Eu assistia a tudo siderado. Era a minha maconha. Já existiam, ao que me lembro, mesas-redondas de futebol na TV Cultura. Essas continuam até hoje, sem que eu saiba por quê. Mas eu sabia, desde aquela época, que uma televisão feita para o meu gosto não haveria de prosperar. Naquele longínquo ano de 1969, fiquei de qualquer modo feliz ao ver, num muro da escola, uma mensagem escrita a giz: ‘Eu amo a TV Cultura!’.


Havia florzinhas desenhadas em volta do recado. Fora escrito por uma menina, com certeza. Senti um misto de gratidão e de vergonha ao ler a delicada pichação.


Não sou nostálgico. A TV Cultura passou péssimos bocados quando seu noticiário se dedicava a divulgar os feitos de Paulo Maluf, quando foi governador do Estado. A TV Cultura esteve, por outro lado, mais próxima do que nunca do seu objetivo quando apresentou programas infantis como Castelo Rá-Tim-Bum e seriados como Confissões de Adolescente.


Programas desse tipo custam caro. O problema de investir na Cultura é, sem dúvida, o caráter inquantificável de seu retorno, seja em votos, seja em audiência. O debate que sempre volta quando se fala em ‘televisão pública’ (meio pretensioso o termo, acho), é sempre o do Ibope. Como falar que algo seja do interesse público quando o público simplesmente não assiste ao que deveria interessá-lo? Há muitas respostas a essa questão.


Criar audiência


Penso, por exemplo, no Ensaio, de Fernando Faro. Talvez a audiência, no dia em que Orlando Silva ou Isaurinha Garcia gravaram suas conversas, tenha sido baixa. Mas, ao longo do tempo, a audiência só faz crescer, dado o valor histórico de que aquilo se reveste.


Atualmente, o professor Pasquale Cipro Neto dá curtos esclarecimentos na TV Cultura a respeito da reforma ortográfica. É claro que não se trata de um programa que junte multidões para assisti-lo. Mas é um serviço público.


Considero, por outro lado, que não existe nada inscrito de nascença, no DNA de um programa, que o faça ‘público’ ou ‘comercial’. Vinhetas sobre a reforma ortográfica ou documentários sobre a Bolívia podem perfeitamente ser aproveitados em canais a cabo, como a Globonews, por exemplo.


Há incontáveis maneiras de não ser comercial. Pode-se fugir da estupidez da TV aberta com programas de boa qualidade para adolescentes, com debates sobre Derrida ou com apresentações dos alunos de violino do Conservatório Professor Pintassilgo.


O debate, a rigor, não deve se circunscrever a ‘ter audiência’ ou ‘não ter audiência’. Se uma TV se propõe a ser educativa, sua função deve ser, antes de tudo, a de ‘criar audiência’. Ou seja, criar uma audiência que cresça, aos poucos, na medida em que oferece programas de mais nível do que os oferecidos pela televisão comercial.


E se a TV comercial, ao longo do tempo, comprar ou reproduzir algumas ideias da TV pública, esta terá cumprido seu objetivo – e terá de inventar outras ideias no futuro.

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Colunista da Folha de S.Paulo