O discurso predominante na imprensa afirma que o jornalismo e a democracia são inseparáveis, mas a realidade não é bem assim neste início da era digital. Primeiro lugar, porque este paradigma foi criado no final do século XIX quando o ambiente informativo era bem diferente do atual. Em segundo, porque a história já nos deu suficientes exemplos de que a democracia precisa do jornalismo para sobreviver, mas não há uma recíproca inversa. E em terceiro lugar, porque as tecnologias digitais tornaram o jornalismo mais essencial na produção de conhecimento do que na sustentação de um sistema político.
Ao criar uma suposta interdependência entre jornalismo e democracia, as elites políticas e empresariais dos Estados Unidos e Reino Unido, por volta de 1880, procuraram estabelecer um vínculo entre a atividade informativa e uma forma específica de governar. O objetivo seria criar um escudo moral para proteção mútua, garante o pesquisador norte-americano John Nerone, num trabalho apresentado no congresso da International Association for Media and Communication Research, em Istambul, em 2011.
O discurso adotado por liberais norte-americanos e britânicos acabou se expandindo para o resto do mundo, especialmente no século XX, após as duas guerras mundiais quando os países ocidentais procuravam exorcizar tanto a ameaça nazifascista, como a comunista. O fundamento teórico da associação entre jornalismo e democracia está no pressuposto de que a liberdade de informação é indispensável ao exercício da democracia, ou seja, para a o funcionamento de um tipo específico de regime político.
As novas tecnologias de informação e comunicação (TICs) , surgidas na metade do século XX, acabaram gerando uma série de questionamentos à relação jornalismo/democracia no meio acadêmico, tanto nas escolas de comunicação social como nas faculdades de ciências políticas. A desconstrução teórica do modelo indicou a necessidade de atualização dos vínculos entre a produção jornalística e o sistema político vigente na maioria dos países ocidentais.
Prazo de validade esgotado
Professores como Barbie Zelizer, da Universidade da Pennsylvania, nos Estados Unidos, passaram a sugerir a hipótese de que o paradigma jornalismo/democracia está com seu “prazo de validade” vencido, o que torna necessária a busca de um novo discurso sobre o papel do jornalismo na sociedade atual.
Zelizer acredita que a ideia da democracia como componente vital para o exercício do jornalismo perdeu a relevância adquirida no século passado porque houve uma incorporação dos princípios democráticos à cultura política da maior parte dos povos do planeta. Segundo a professora da Escola Annenberg de Comunicação, o jornalismo consegue sobreviver, e em alguns casos até prosperar, em países submetidos a regimes autoritários, como destacou em seu artigo On the shelf life of democracy in journalism scholarship ao analisar o surgimento de novas realidades sociais e tecnológicas para o exercício do jornalismo.
Até o início da era digital, o fluxo de notícias jornalísticas viabilizado pela imprensa era a principal fonte de informações que as pessoas dispunham para formar opiniões políticas. Mas a partir das últimas décadas do século XX , esta dependência acabou com a multiplicação de fontes de informação na internet o suprimento de notícias tornou-se tão abundante e diversificado que o jornalismo deixou de ser a condição indispensável para a sobrevivência do regime democrático.
Em compensação, a produção jornalística ganhou novas e transcendentais funções, como a da checagem da veracidade de notícias e o fornecimento de insumos informativos para a produção de inovações. O jornalismo passou a ser a grande ferramenta para acelerar, diversificar e aprofundar o fluxo de informações sobre dados, fatos e eventos indispensáveis à produção de novos conhecimentos.
A inovação é hoje o grande motor da economia digital e da melhoria das condições de vida da humanidade. Inovar significa recombinar informações para produzir algo melhor e diferente. Para que ocorra esta recombinação, que alguns chamam de remixagem numa analogia à música eletrônica, é indispensável que os insumos noticiosos sejam apresentados de forma atraente, clara, exata e pertinente, destacando a credibilidade e relevância contextual. É justamente isto que o jornalismo sempre se propôs a fazer.
Publicado originalmente no blog do autor.
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Carlos Castilho é jornalista, graduado em mídias eletrônicas, com mestrado e doutorado em Jornalismo Digital e pós-doutorado em Jornalismo Local.