“Porque era uma questão de ou/ou”, resumiu Beverly Smith, integrante do Combahee River, grupo de mulheres negras, lésbicas e feministas estadunidenses, no final da década de 1970. Nessa entrevista, Bárbara fala sobre as precariedades a que as mulheres negras são submetidas. Muitas de nós, mulheres negras, nascemos e vivemos nessa política do “ou/ou”: ou trabalha ou morre de fome. Ou economiza no lanche ou economiza na passagem de ônibus. Ou vai a pé ou paga o livro. Ou deixa os filhos com a vizinha ou não tem o dinheiro no final do mês.
A estreia do documentário “Sementes: mulheres pretas no poder”, nesta segunda-feira (7/9) no YouTube, não apenas afirmou muitas de nossas trajetórias em comum, como também formulou um apontamento, um encantamento para o futuro. Como diz a deputada estadual, Mônica Francisco: “ou farão conosco ou não farão”. Dirigido pelas cineastas Éthel Oliveira e Júlia Mariano, o filme acompanha o percurso de seis mulheres negras no processo eleitoral que sucedeu a brutal execução da vereadora Marielle Franco, no dia 14 de março de 2018. São elas: Jaqueline de Jesus, Mônica Francisco, Renata Souza, Rose Cipriano, Tainá de Paula e Talíria Petrone, mulheres atravessadas pela convivência e construção política com Marielle.
Durante a campanha eleitoral, muitas pessoas afirmaram em tom de indignação e descrença diante de tantas candidaturas negras (e nem eram tantas em relação ao número de candidaturas brancas): “ou uma ou outra. Impossível todas serem eleitas”. Este tipo de pensamento expressa o racismo presente não apenas na sociedade, como nas estruturas partidárias e nas instâncias do Legislativo, do Judiciário e do Executivo. Nem todas foram eleitas, mas elegemos com votação expressiva mulheres negras na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro e em outros parlamentos Brasil afora.
Como nossos passos vêm de longe, revisitemos a história de Lélia Gonzalez que foi uma das primeiras, entre os membros da Comissão Executiva Nacional do Movimento Negro Unificado, a candidatar-se a um cargo eletivo, concorrendo à deputada federal pelo Partido dos Trabalhadores (PT) no Rio de Janeiro, em 1982, de acordo com artigo de Luiza Bairros. Lélia, autora dos conceitos pretuguês e Améfrica Ladina, inscreveu outras estéticas, outras linguagens e outras éticas em seu modo de fazer política. Em suas caminhadas no processo eleitoral, ela distribuía flores amarelas em homenagem a Oxum. Em vez de falar, Lélia cantava.
Assim como nossas parlamentares mulheres negras eleitas também constroem outros modos de fazer política, seja com Mônica Francisco, deputada em Touro, evocando ancestralidade nas receitas de suas comidas diretamente de sua cozinha; ou mesmo Renata Souza, que assim como havia feito Marielle, elegeu o funk como jingle e ritmo para comandar sua campanha. As roupas coloridas usadas pela deputada federal Talíria Petrone no dia da posse questionavam o figurino sóbrio de homens e mulheres brancos daquela instituição que, juntamente com o racismo evidente, a fizeram ser barrada e questionada inúmeras vezes naqueles corredores. Ou mesmo Dani Monteiro, nossa jovem parlamentar que também provoca fendas nas estéticas e traz vestimentas, cabelos coloridos e outras gramáticas. Também vemos no documentário Rose Cipriano fazendo rodas de conversa em uma garagem de casa, Jaqueline Gomes de Jesus enrolada na bandeira trans rumo à Parada LGBTI de Niterói e Tainá de Paula, com coragem, vestindo uma blusa vermelha e afirmando: “nós, comunistas com nossos adesivos e símbolos”.
Como mulheres negras, sabemos o que é lidar com a expulsão dos espaços. Expulsão dos partidos, expulsão da cidade, expulsão do campo, expulsão da educação, expulsão do mercado de trabalho e expulsão da política. Em sua carta de desligamento do Partido dos Trabalhadores (PT), Lélia afirma: “pelo fato de discordar das práticas desenvolvidas pelo PT-RJ (…), sobretudo no que diz respeito ao estreitamento de espaços para uma política voltada para as chamadas minorias, peço meu desligamento do PT”. Mais tarde, candidatou-se pelo PDT, cuja capa do panfleto estampava: “A mulher na Assembleia”, em que seguia defendendo “reforma agrária e urbana, livre organização das classes trabalhadoras, direitos do povo negro, das mulheres e homossexuais”.
Novamente, nos encontramos em ano eleitoral no Brasil e as questões apresentadas por Lélia continuam atuais. Não podemos ter medo de questionar a tal democracia que muitos grupos políticos e lideranças defendem. Afinal, que democracia é essa que não chega nas favelas, nas periferias, nos quilombos, no sertão e nas aldeias? Mais do que isso, não podemos cair na armadilha de uma “nova” política. Não existe nova nem velha política. O que existe é a política e o enfrentamento ao discurso de negação da política.
O que os poderosos e mais ricos desejam é o nosso distanciamento da política. Eles nos querem longe e nós, povo preto, somos a classe trabalhadora, somos as mais exploradas e explorados por esse sistema capitalista. Somos milhares que ainda vivem na política da sobrevivência do “ou/ou”, aprofundada com a Covid-19. Ou você lava a mão ou guarda a água para a janta. Ou você faz isolamento ou morre de fome. É preciso dizer que não vamos desistir da política, da política que fazemos na cozinha, no parlamento, com nossas vizinhas, nossos alimentos de agricultura familiar, nossas religiosidades, nossas sexualidades, nossas vozes, nossas poesias, com nossa solidariedade, com nossas gritas e nossas cantorias. A nossa urgência é pela vida.
Com o avanço do conservadorismo, do ódio às mulheres, à população negra, quilombola, ribeirinha, indígena e LGBTI, o filme “Sementes: mulheres pretas no poder” aponta uma resposta para o futuro e, como diz a cineasta Éthel: “Sementes é um ebó coletivo contra o maior carrego colonial do Brasil, que é o racismo”.
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Camila Marins é jornalista, feminista negra lésbica e uma das editoras da Revista Brejeiras.