Pouco antes de completar cinco meses após a morte do primeiro brasileiro por Covid-19 ocorrida em 12 de março, o Brasil ultrapassou as 100.000 vidas ceifadas de brasileiros e mais de 3 milhões de casos confirmados de infectados entre os dias 7 e 8 de agosto. Além da participação de destaque do Governo Federal para essa tragédia humanitária que vivemos — exposta em reportagem/entrevista de Eliane Brum em 22 de julho para o El País — podemos listar a contribuição de um conjunto de fatores para nossa realidade: ausência de um plano nacional para o combate da pandemia; inexistência de uma frente de trabalho articulada entre governo federal e governos estaduais; minimização da importância do isolamento físico e priorização dos gestores públicos para o funcionamento de atividades econômicas; propaganda de remédios sem eficácia comprovada contra Covid-19 como a salvação dos brasileiros; insuficiência de testes diagnósticos para a Covid-19 disponíveis para a população, ausência de campanhas informativas/educacionais de grande circulação sobre o significado dos testes para a Covid-19; e, por fim, quase quatro meses sem Ministro da Saúde e ocupação do Ministério da Saúde por militares sem nenhuma competência na área da saúde.
Na contramão deste cenário de caos, diversos eventos/webinários passaram a ser organizados por instituições públicas de ensino e pesquisa desde o início da pandemia no Brasil, visando, através da discussão com especialistas de diferentes áreas do conhecimento relacionadas ao novo coronavírus (epidemiologistas, infectologistas, assistentes sociais, demógrafos, médicos), esclarecer e informar a sociedade sobre as formas mais adequadas disponíveis, baseadas em critérios técnico-científicos, de se restringir a disseminação da pandemia no país, bem como minimizar e mitigar os impactos da Covid-19 para a população. Estes eventos também buscaram, em última instância, contribuir para que gestores públicos realizassem o planejamento, a tomada de decisões, e a implementação de ações orientados com base em evidências.
Mas embora muitos aspectos-chave tenham sido bastante debatidos nestes quase seis meses de pandemia no Brasil, ainda há muitas questões que produzem confusão em parte da população, como o papel da utilização dos testes para Covid-19 e o significado de seus resultados, tema de um dos webinários que acompanhamos — “Testes para Covid-19: Desafios para desenvolver os Testes e a Interpretação dos Resultados” — realizado pelo Departamento de Ciências Políticas da Universidade de São Paulo, em meados abril.
O tão falado PCR, o teste molecular
O “teste molecular”, ou PCR, é o teste que permite o diagnóstico direto da infecção, ou seja, é capaz de identificar a presença do material genético (genoma) do agente que está causando a infecção. Conforme explica Carolina Lázari, médica chefe da Seção de Laboratórios de Biologia Molecular do Hospital das Clínicas da USP (HC/USP), esse teste detecta o RNA (material genético) do novo coronavírus (Sars-Cov-2), causador da Covid-19. Este é o principal teste para ser utilizado porque é altamente sensível (capaz de identificar uma quantidade muito pequena do vírus), e altamente específico — só costuma dar resultado positivo quando o vírus procurado está presente na amostra analisada, que são as secreções coletadas do trato respiratório das pessoas.
O PCR é o que melhor faz o diagnóstico da doença na primeira fase da doença, entre o final da primeira semana e o início da segunda semana da infecção, que é a fase quando a doença está ativa e pode evoluir para complicações. Essa fase é o momento que a infecção tem grande multiplicação do vírus na parte superior do trato respiratório, ou seja, há bastante vírus no nariz e na garganta dos indivíduos, tanto assintomáticos quanto sintomáticos, o que facilita a coleta de amostras. E nessa fase, devido à quantidade de vírus, aumenta a probabilidade de detecção do vírus pelo teste molecular, complementa a pesquisadora.
Como o PCR está posicionado em uma pandemia em termos de políticas públicas?
Os países que tiveram bastante sucesso no combate à pandemia, inclusive em identificar a transmissão do vírus com antecedência, fizeram o PCR em ampla escala (a testagem em massa). Para estes países, como a Coréia do Sul, o professor Alberto Duarte, Diretor da Divisão de Laboratórios do Instituto Central do HC/USP, explica que a possibilidade e a facilidade que tiveram para fazer isso, deveu-se, em parte, a tecnologia nacional que possuem, não dependendo tanto de importação. Já a realidade brasileira é bem diferente, já que temos uma enorme dependência de insumos do mercado internacional — tanto para a realização dos testes quanto para a proteção dos profissionais da saúde.
Para pessoas sintomáticas, e essa é a principal utilização para o PCR, fazer o teste em pessoas com sintomas para podermos ter o diagnóstico rápido da infecção, já estratificar essa pessoa em termos de observação clínica — isto é, determinar se é uma pessoa que vai poder ser observada em casa, se vai precisar de internação, e no caso de precisar, classificar se será um caso de UTI. E para os casos positivos, fazer rapidamente o rastreamento e testagem das pessoas que têm ou tiveram contato com as pessoas infectadas, no menor tempo possível, para assim tentar isolar o máximo de pessoas possíveis, e evitar a continuidade de transmissão do vírus nessa cadeia, declara Carolina Lázari.
Lázari também destaca que um aspecto importante de ser ressaltado e relembrado, é que quando se fala que países como a Coréia do Sul e a Alemanha testaram muito e rápido, não foram utilizados os testes rápidos (do tipo gravidez) que estamos discutindo e usando no Brasil. Foram usados apenas os testes moleculares, na fase ativa (primeira semana) da doença, mas com uma coleta muita rápida e muito acessível. Postos de coleta foram colocados em drive-thru ou walk-thru (uma cabine de segurança para o profissional de saúde que estava fazendo essa coleta) — com fácil acesso destes postos pelas pessoas precocemente no início dos sintomas, e mesmo para pessoas com poucos sintomas. Deste modo, estes países conseguiram implementar medidas de proteção e de cuidado muito rápidas e muito consistentes para a população, o que claramente teve um impacto muito grande em conter a evolução da pandemia.
Apesar de toda importância do teste molecular como medida de proteção e cuidado das pessoas diagnosticadas com o vírus — para rastrear, testar e isolar os familiares e pessoas próximas que entraram em contato com os infectados, impedindo assim a continuidade da disseminação — de modo geral, não há indicativos de que o Brasil terá a possibilidade de utilizar o teste de PCR durante a pandemia para a adoção de políticas públicas, pelo menos não de forma abrangente.
Mas em âmbito local, e de caráter independente do poder público, algumas iniciativas e ações de enfrentamento da pandemia podem ser destacadas, como a Força Tarefa criada pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Para o estado de São Paulo, como a Força Tarefa (FT) da Unicamp está atuando contra a Covid-19, e como está articulada com a FT do estado de SP?
O virologista José Luiz Proença Módena, professor do Instituto de Biologia da Unicamp, conta que as informações sobre o número de laboratórios públicos e privados para o diagnóstico da Covid-19 no Brasil e no Estado de São Paulo podem ser acessados por meio das publicações no Diário Oficial, uma vez que todos eles precisaram ser credenciados pelos laboratórios de referência, como o Instituto Adolfo Lutz para o estado de São Paulo, ou os Institutos Evandro Chagas (IEC) ou Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) para os laboratórios nos demais estados do país. Entretanto, como explica o Módena, “a lista completa não é fácil de ser obtida e depende de uma busca nos órgãos oficiais. Até minha última pesquisa realizada no início de maio, existiam 42 laboratórios habilitados para a detecção de SARS-COV-2 no Estado de São Paulo”.
Em São Paulo, a rede de laboratórios credenciados faz parte de uma plataforma de diagnóstico coordenada pelo Instituto Butantan através do seu diretor, o pesquisador Dimas Tadeu Covas, e compreende também, dentre outras, o Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina (FM) da USP, HC da FM e Hemocentro da USP de Ribeirão Preto, Laboratório de Análises Clínicas e Patologia do Hospital das Clínicas da Unicamp, Laboratório de Diagnóstico Molecular de Alto Desempenho da Unicamp, e pelo Hemocentro de Botucatu.
Os dados de diagnóstico realizados nesses laboratórios se baseiam no teste de PCR, e são disponibilizados via sistema GAL (Gerenciador de Ambiente Laboratorial), que alimenta o Sistema de Informação de Agravos de Notificação — SINAN. Os dados no SINAN, por sua vez, são acessados e alimentados pelas secretarias de saúde e os departamentos de vigilância epidemiológicas municipais, estaduais e federais.
Em relação aos dados oficiais divulgados sobre a pandemia no país, o professor Módena afirma que até onde saiba, os dados oficiais são apenas baseados em testes moleculares de detecção de genoma viral, o PCR, e não em testes imunocromatográficos (imunológicos), que inclui os testes do tipo gravidez.
Como tem sido a atuação da FT da Unicamp em relação aos testes-diagnóstico, formação de equipes técnicas qualificadas para as análises, e para qual perfil/público da sociedade provém as amostras analisadas?
Segundo Módena, a força tarefa (FT) da Unicamp foi essencial para a criação e manutenção do LDMAD (Laboratório de Diagnóstico Molecular de Alto Desempenho), que hoje é responsável por parte do diagnóstico de aproximadamente 50 cidades do estado de São Paulo. O corpo de voluntários foi recrutado pela força tarefa, e os recursos para a montagem do laboratório foram obtidos por meio da mobilização da FT da Unicamp e todos os docentes que coordenam o espaço são membros da FT. Na Unicamp, Módena participou da montagem e treinamento de pessoal dos dois laboratórios que realizam testes de diagnóstico para Covid-19, o LDMAD e o LPC (Laboratório de Patologia Clínica do Hospital das Clínicas). Nesses locais, todos os envolvidos cursaram ou estão matriculados em programas de pós-graduação nas áreas de Saúde ou Biologia. O LPC foi o primeiro laboratório credenciado para diagnóstico da Covid-19 no interior de São Paulo, em parte porque o laboratório que chefio, o LEVE (Laboratório de Estudos de Vírus Emergentes), foi capaz de replicar e produzir o controle positivo do SARS-COV-2 em colaboração e parceria com o Instituto de Ciências Biológicas da USP São Paulo, em trabalho inicialmente coordenado pelo Prof. Dr. Edison Durigon.
Chefiado pelo Prof. Dr. Magnun Nunes do Santos, o LPC possui capacidade de realizar 500 testes de diagnóstico por dia contra Covid-19 e atende os pacientes internados nos hospitais da Unicamp e os funcionários e estudantes dessa instituição. Em contrapartida, o LDMAD possui capacidade de testagem para 2.000 amostras por dia. Nele são realizados testes de diagnósticos para amostras encaminhadas pelo IAL (Instituto Adolpho Lutz) de Campinas, e de outras regiões como Araçatuba e Presidente Prudente; e também amostras de convênios com algumas prefeituras da região de Campinas, como Paulínia, Sumaré, Valinhos, Campinas, … O LDMAD também participa de estudos de vigilância epidemiológica fazendo o diagnóstico de pessoas assintomáticas de populações vulneráveis, como comunidades carentes da região de Campinas.
Os testes rápidos liberados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), aplicados hoje em dia até em farmácias, são confiáveis?
Embora muitas pessoas e Prefeituras estejam usando testes imunológicos rápidos como diagnóstico, assegurar que indivíduos foram infectados ou não, apenas usando esses testes de mercado, é bem questionável. Segundo Módena, a grande maioria dos testes de diagnóstico baseados na detecção sorológica (ou imunológica) de SARS-COV-2 não são totalmente confiáveis e possuem, geralmente, valores de sensibilidade e especificidade abaixo do esperado.
Mesmo considerando os testes rápidos que são licenciados e atualizados pela Anvisa a cada semana, a própria forma como suas informações são disponibilizadas no site da Agência é inconsistente e deixa dúvidas. Segundo Carolina Lázari, “quando você tem acesso à bula do teste, você percebe que alguns são os mesmos testes só que estão licenciados com nomes diferentes. E também temos dificuldade de testar o desempenho em nosso laboratório só com o que está descrito na bula. Por exemplo, não informa a quanto tempo o paciente foi infectado”.
Para Natália Pasternack, microbiologista da USP e divulgadora científica do Instituto Questão de Ciência, a efetividade de usar testes sorológicos rápidos vendidos em farmácias é bastante duvidosa, pois além de serem pouco sensíveis e com alta probabilidade de resultados falso-negativos, o que eles indicam é apenas se a pessoa teve contato com o vírus no passado e, então, desenvolveu anticorpos, mas não se a pessoa está com o vírus no momento atual. Outra interpretação grave, mas também possível exposta por Pasternack no programa Roda Viva da TV Cultura, é que a pessoa pode não ter desenvolvido anticorpos simplesmente porque o sistema imunológico não respondeu, mas isso não quer dizer que a pessoa não teve contato com alguma carga viral.
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Leandro Magrini é biólogo (USP), mestre em Ecologia e Conservação de Recursos Naturais (UFU), e doutor em Biologia Comparada (USP).
Luciana Rathsam é bióloga (Unicamp).
Vinícius Nunes Alves é licenciado e bacharel em Ciências Biológicas pelo IBB/UNESP, mestre em Ecologia e Conservação de Recursos Naturais pela UFU. Atualmente é estudante colunista do jornal Notícias Botucatu.
Todos os autores cursam Especialização em Jornalismo Científico pelo Labjor/UNICAMP.