Encontro em Cartagena das Índias. No dia 12 de setembro de 2020, nessa cidade portuária colonial no norte da Colômbia, as coisas deverão se definir. Os quarenta e oito governadores representantes dos vinte e seis países americanos associados e vinte e dois dos demais continentes, devem eleger o sucessor do colombiano Luis Alberto Moreno.
Uma reunião fora do comum, por várias razões. Por um acordo tácito, desde 1959, data de fundação dessa instituição, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), ligada à Organização dos Estados Americanos (OEA), sua presidência vinha sendo atribuída, a um de seus membros sul-americanos, tendo em vista que a instituição equivalente intercontinental, o Banco Mundial, é conduzido por um encarregado de origem norte-americana e o FMI, por um europeu. Este acordo não escrito havia sido respeitado à risca até o dia desta eleição de 12 de setembro.
“Havia”, porque esse modus vivendi passaria, então, a ser uma coisa do passado. O Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de acordo com sua concepção nacional de multilateralismo, lançou no final de junho uma espécie OPA – Organização Pan-Americana, com vistas a uma intervenção diplomática junto a este órgão intergovernamental, ao indicar para o cargo o nome de seu assessor latino-americano, o hispano-cubano, Mauricio Claver-Carone.
É certo que Mauricio Claver-Carone é perfeitamente bilíngue. Entre um pai espanhol e uma mãe cubana da Flórida, ele passou a infância e a adolescência entre Madri e Miami. Ele tem um know-how financeiro indiscutível. O fato é que ele é um cidadão dos Estados Unidos. Um cidadão muito comprometido, aliás… Que, diga-se de passagem, como membro do gabinete de Donald Trump, foi o articulador do relançamento do embargo a Cuba e da ofensiva econômica e bancária contra a Venezuela. Esse personagem tem um perfil de missus dominicus, um enviado especial do presidente, mais do que o de um especialista com capacidade de arbitrar contradições nacionais de qualquer natureza que, necessariamente, se cruzam em uma instituição internacional.
A América Latina das alternâncias liberais e conservadoras se deu conta, abruptamente, desse seu beco sem saída. Como assim “Um gringo para a presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)?¹”, destacava o título de uma publicação chilena sobre economia². A escolha pelo amigo norte-americano que, em ostensivas campanhas eleitorais se apresentou contra o “populismo bolivariano, comunista, esquerdista, socialista”, em Assunção, Bogotá, Brasília, Lima, Montevidéu, Quito, Santiago, sem dúvida lhe facilitou o apoio midiático internacional, assim como foram decisivos os ‘votos de boa sorte’ de Washington e, por vezes, também de Bruxelas.
Em 26 de agosto, seis ex-presidentes liberais ou social-liberais, espanhóis e latino-americanos, apelaram à resistência³. Eles foram ouvidos por alguns governos que não têm nada de revolucionários, Chile e Costa Rica. Ao mesmo tempo, a Argentina e o México, reformistas e de orientação nacional, assumiram a mesma posição. A União Europeia, associado externo, deu sua contribuição a esse clamor multilateralista. Todos eles, no entanto, estão no centro de uma armadilha que eles mesmos construíram para si.
A amizade daquele que gritou em alto e bom som “América primeiro!”, Donald Trump, tem como condição e limite o interesse dos EUA, conforme o entendimento do anfitrião da Casa Branca. As reprimendas e as ameaças de sanções comerciais vindas do ‘amigo’ caíram sobre todos, Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, México, bem como Cuba, Venezuela e… União Europeia. Não é um ideólogo apaixonado pelo catecismo republicano que está à frente dos Estados Unidos, mas sim o gerente de uma grande agência imobiliária, forte em sua “marcha de conquista do Ocidente”, ansioso por aumentar sua parcela de terra, tanto nas Américas (hemisfério ocidental, na terminologia geopolítica dos Estados Unidos), como em outras partes do mundo.
Como se constatou, nos últimos anos, por várias razões que não dariam para ser discutidas aqui, os Estados Unidos foram dominados por problemas internos e externos. A China ocupou o vazio deixado ao sul do Rio Grande. Tornou-se a primeira ou segunda parceira comercial da região. Atualmente é a maior doadora para o BID e para o Banco Mundial. Agora também está oferecendo com algum sucesso sua tecnologia, de Buenos Aires à Cidade do México.
A moral da história, tal como estabelecida pelo inquilino da Casa Branca, é muito simples: encurrala-se os principais parceiros da China – Venezuela, Cuba –, ameaça-se todos aqueles que estariam tentados a confiar sua telefonia 5G à Huawei (Chile, México) e corta-se a rota do Iene, tomando o BID.
Os jogos, na noite de 11 de setembro, vésperas da eleição, ainda não estavam claros. Dezessete países americanos votaram em 18 de agosto pela manutenção da data de 12 de setembro para eleger o próximo presidente do BID. Os opositores, com 22,2% dos votos, estavam muito perto de conseguir uma minoria de bloqueio. O sistema de votação é complexo. Combina uma preferência regional pensada a partir da capital de cada um dos estados. A votação nem pode ocorrer se 25% ou mais dos membros estiverem ausentes.
Donald Trump pode “contar” com a maioria dos pequenos países da América Central e do Caribe, cuja soberania é limitada. Brasil, Colômbia, Equador, Paraguai, Uruguai, com os olhos no espelho retrovisor da Guerra Fria, decidiriam como fosse preciso, mesmo jogando contra sua equipe. O Peru manteve um silêncio cauteloso até o último momento. Cuba não é membro. A Venezuela teve sua representação anulada quando a mesma foi concedida a um oponente do governo, autoproclamado presidente nas ruas, apoiado pelos Estados Unidos, e por governantes liberais e conservadores da América Latina e… Pelos principais países da União Europeia.
A questão, como podemos ver, vai além da estrutura geralmente silenciosa de instituições internacionais especializadas. Ela interpela os latino-americanos, encostados na parede por Donald Trump. Ela é mais uma das cenas do confronto entre Washington e Pequim. E isso sem dúvida obriga a União Europeia a reavaliar sua ausência diplomática ao sul dos Estados Unidos⁴.
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Notas
¹ Felipe Herrera (Chile) 1960-1970; Antonio Ortiz Mena (México) 1970-1988); Enrique Iglesias (Uruguai) 1988-2005; Luis Alberto Moreno (Colômbia) 2005-2020.
² “¿Un gringo a la presidencia del BID?”, matéria publicada em 24 de Julho de 2020, na seção “Editorial” do site “América e Economía”, disponível em: https://www.americaeconomia.com/analisis-opinion/editoriales/un-gringo-la-presidencia-del-bid
³ Felipe Gonzalez (Espanha); Fernando Henrique Cardoso (Brasil); Ricardo Lagos (Chile); Julio Sanguinetti (Uruguai); Juan Manuel Santos (Colômbia); Ernesto Zedillo (México).
⁴ Nota dos tradutores: Tal como previsto no texto, escrito no dia 10 de setembro, antes da eleição da direção do BID, o indicado ao cargo por Trump, Mauricio Claver-Carone, foi eleito e assumirá o cargo a partir de 1° de outubro, para um mandato de cinco anos no comando do BID.
Texto publicado originalmente em francês, em 10 de Setembro de 2020, na seção ‘Analyses’ do site IRIS-France Institut de Relations Internationales et Stratégiques, com o título original “Banque interaméricaine de développement ou Banque des États-Unis pour l’hémisphère occidental?”. Disponível em:
https://www.iris-france.org/149416-banque-interamericaine-de-developpement-ou-banque-des-etats-unis-pour-lhemisphere-occidental/.
Tradução de Thiago Augusto Carlos Pereira e Débora Garcia, revisão e editoração de Luzmara Curcino e Pedro Varoni.
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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É Formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros livros, de “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014).