Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O exercício da mídia construtiva no espaço escolar

(Foto: Jefferson Peixoto/Secom/Fotos Públicas)

No primeiro semestre do ano passado – 2019, desafiei um grupo de alunos da EJA – Educação de Jovens e Adultos do Centro Municipal dos Trabalhadores – CMET Paulo Freire de Porto Alegre, a descartar a leitura superficial dos jornais, revistas, panfletos e passarem a ouvir de maneira crítica os noticiários do rádio e da televisão e duvidassem das informações publicadas e compartilhadas nas plataformas digitais.

Durante os meses de prática e do estágio docente do curso de Pedagogia da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, construímos e formulamos questionários, de forma conjunta, de maneira a aguçar a curiosidade para que ela transpusesse a informação, para que fosse além da notícia. Isso para que não fossemos pegos de surpresa com a publicação de notícias não verdadeiras e nos tornássemos multiplicadores da mentira. O trabalho foi orientado pelas professoras doutoras Aline Cunha Della Libera e Marília Forgearini Nunes. As regras do como, quem, quando, onde e o porquê, amplamente usadas por jornalistas viraram tema em sala de aula para a turma de estudantes com idades entre 18 e 80 anos.

O envolvimento dos alunos evoluiu rapidamente e não durou muito para nos depararmos, dentro da sala de aula, construindo o cotidiano e as histórias de vida de cada um relacionadas à informação. Como resultado as discussões coletivas e de construção de ideias sobre a importância de cada um na sociedade foi envolvendo a sala de aula. O ambiente escolar passou a gerar uma nova forma de conhecimento, o de dentro pra fora e não apenas o de fora pra dentro. Eles passaram a se descobrir como instrumentos de multiplicação daquilo que tinham lido, ouvido e discutido. Sentiam-se incluídos numa sociedade que até então achavam que não faziam parte. As aulas ampliaram os questionamentos sobre a informação que nos cerca revelando a presença de uma “educação conscientizadora e libertadora” como defendia Paulo Freire ao falar da visão de mundo e, diante do momento em que as notícias surgem de todos os lados sem que haja critério de seleção, é necessário alertar e, mais do que isso, buscar mecanismos de defesa contra a informação mentirosa. No livro Mídia, educação e cidadania para uma leitura crítica da mídia, os autores Pedrinho Guareschi e Osvaldo Biz, lembram que “uma avalanche de imagens fugazes e repetitivas dilui a realidade, ao mesmo tempo em que a torna avassaladora. O desconcerto do nosso ‘sentido de realidade’ reflete o redimensionamento das noções de espaço e tempo”, e é neste sentido que propomos um desafio no ambiente escolar, ensinando mecanismos de combate aos que manipulam a informação.

Nasceu aí a necessidade da leitura crítica da mídia no cotidiano, pois foram notando que os valores da vida não estão no capital e sim na riqueza das pessoas que eles valorizam, na família, nas redes de amigos. Foram vendo que o trabalho não é tudo na vida, mas que a convivência dá, além de segurança, os instrumentos necessários para a convivência social onde todos podem desfrutar das conquistas e se ajudar nos momentos de dificuldade. Descobriram que poderiam não solucionar os problemas, mas corrigir costumes e conceitos.

O papel do professor, questionar, aguçar a curiosidade do aluno fazendo pensar seja em alternativas e em situações que ele possa superar seus próprios conflitos construindo desta maneira uma imagem justa do mundo onde vive. É o despertar para a sua auto afirmação, um empoderamento distante destas pessoas que passam a vida servindo sem se servir.

No final do estágio os alunos já estavam comparando informações, pesquisando nas redes sociais e discutindo, por exemplo, se o Grêmio tem mundial. As notícias da política foram as mais mentirosas nos trabalhos apresentados e que a vila só aparece na mídia quando o assunto é violência.

O grupo detectou, e isso foi tema de debates, que “o nosso jornalismo só se lembra das comunidades em momentos de crise de conflitos ou desastres”, lembrando que só são procurados quando a presença popular é necessária para, inclusive, ajudar nos interesses da mídia contra o governo ou contra ideologias. Este distanciamento da chamada grande mídia das comunidades é recorrente nas conversas. A mídia não sabe ouvir a periferia e a periferia tem muito pra dizer e para ajudar só que não tem oportunidade.

A leitura crítica, no entanto, ajuda a desmistificar os padrões da imprensa comercial, que leva à periferia a publicidade como forma de conquistar o público e vender os bens de consumo, oferecendo em troca informações sem ou quase nenhum critério construtivo. Tipo: o que falam hoje esquecem amanhã porque não se dá continuidade nos assuntos de interesse social e coletivo. “Eles ficam repetindo sempre que tem corrupção, que tem desvio de dinheiro (lavagem no caso), que tem um bando de sem vergonhas se apoderando das riquezas do Brasil e escravizando os pobres, mas não apresentam soluções, falam, falam e a corrupção continua, e a roubalheira não para”, é uma das críticas dos alunos para denunciar que a discussão não é ampliada, resume-se apenas na informação sem nenhuma análise de resultados. Pedrinho Guareschi lembra em outro livro — Psicologia social crítica — que “as notícias são a parte mais importante para a formação da opinião pública como na formação ideológica das pessoas. Elas vão direto a mente das pessoas e vão construindo a verdade, os fatos, os acontecimentos. Sem exagero, as notícias constroem a história e o mundo para nós”. Isso comprova que, mais do que nunca, as notícias devem ser verdadeiras.

Houve momentos em que a turma perdeu o interesse pelas notícias, elas não cativavam, pelo simples fato de não interagir com o público. Foi preciso dar uma guinada no planejamento e alternar filmes como Tempos Modernos do Charles Chaplin, documentários como a vida de Carolina Maria de Jesus onde eles se sentissem incluídos e pudessem fazer a relação com suas histórias de vida. A educação e a mídia precisam ser reinventadas e andar lado a lado. Precisam sair de trás dos muros da escola e falar a linguagem dos excluídos. As comunidades precisam ter seus próprios meios e criar seus próprios meios de se comunicar, o professor e a Escola podem contribuir para a abertura deste caminho.

Em recente entrevista ao jornal Zero Hora o jornalista dinamarquês Ulrik Haagerup, fundador do Constructive Institute, afirmou que “o jornalismo independente é importante demais para ser entregue aos políticos e às grandes empresas” e conclui lembrando que “a democracia precisa do jornalismo construtivo”.

A periferia, e estes alunos da EJA, representam a essência das comunidades e cobram a qualificação das informações. O aluno tem capacidade de sobra de descobrir, quando provocado em sala de aula, que se a notícia se resume no fato em si, e não explora as causas nem as consequências. Este foi o resultado nos três meses de provocações e discussões com alunos de uma turma intermediária de EJA. O espaço escolar é uma seara rica para a produção de conhecimentos, onde as mídias podem ser monitoradas. No fundo, o que importa é tornar melhor a vida das pessoas a partir do conhecimento.

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Flávio Antonio Damiani é Jornalista e Pedagogo, mora em Porto Alegre.