Quando recebi em minha casa o número de janeiro da Investigative Ophthalmology and Visual Science (IOVS), que é o periódico científico oficial da Association for Research in Vision and Ophthalmology (ARVO), uma associação que congrega todas as áreas que de alguma forma se ocupam com a pesquisa em Ciências da Visão, pensei comigo: ‘Ai, ai, prato cheio pra interpretações apressadas. Daqui a pouco, algum jornalista terá a brilhante idéia de publicar isso.’
Não deu outra. Na Folha de S.Paulo de 24 de abril, no caderno ‘Saúde’, lá estava, assinada por Juliana Calderari. Com as palavrinhas mágicas de praxe, aquelas que protegem contra processos e eventuais críticas, ‘pode’ e ‘sugere’, Calderari relata os dois trabalhos de Paul T. Williams publicados na IOVS (Prospective epidemiological cohort study of reduced risk for incident with vigorous physical activity and cardiorespiratory fitness during a 7-year follow-up e Prospective study of incident Age-related macular degeneration in relation to vigorous physical activity during a 7-year follow-up), sem especificar a fonte (diz apenas o local onde foram conduzidos, a Universidade de Berkeley, como se a chancela de uma universidade de peso bastasse para abençoar a matéria).
Sentadinho, assistindo TV
As fraquezas do estudo são várias e a principal delas o próprio autor reconhece: o diagnóstico das doenças era auto-relatado. Ou seja, perguntava-se aos sujeitos da pesquisa se nos últimos anos eles tinham ido a um oftalmologista e se este lhes tinha dito que estavam com catarata ou degeneração macular. Ora, os estágios iniciais de ambas são assintomáticos ou sub-sintomáticos. E, portanto, nem sempre relatados. Além disso, para fazer seu diagnóstico preciso só dilatando as pupilas (particularmente no caso da degeneração macular), o que nem sempre é feito em pacientes com mais de 40 anos de idade (justamente a população-alvo da pesquisa). Tanto aqui no Brasil quanto nos EUA, o próprio paciente acha ruim que se lhe dilate as pupilas, pois sabe que depois dos 40 não é necessário para sua refração (exame de grau de óculos).
É verdade que Calderari teve o cuidado de entrevistar dois nomes de grande reconhecimento no meio oftalmológico (Marinho Scarpi e Rubens Belfort Jr., ambos da Escola Paulista de Medicina – Unifesp), mas lhes deu espaço mínimo (ou a Folha é que deu o espaço pequeno, isso não tenho como saber) para tentar explicar outras fraquezas, como, por exemplo, os fatores de confusão com o objeto principal do estudo. Por exemplo, quem pratica muito exercício costuma ter uma dieta saudável, menos hipertensão e menos diabetes, fuma e bebe menos. Em outras palavras: será que eu não posso ficar sentadinho em minha cadeira e apenas não fumar, beber pouco e comer mais peixe, verduras e frutas? E, caso nem assim meu colesterol e pressão arterial baixem, eu tome anti-hipertensivos e uma estatina qualquer, sempre sentadinho em minha cadeira só assistindo TV? Provavelmente, sim. Ou, quem sabe, não. Quem sabe? Certamente, o estudo não, pois não teve força para isso.
Se inferno houver, é para onde irão
Estou bancando o chato? Que mal há em aconselhar o óbvio? Que mal pode haver em se aconselhar a fazer exercícios? Neste caso há, sim. Pois a conclusão do estudo vale para exercícios vigorosos (correr 10 km/dia não é pouca porcaria, não). Vai a turma de sedentários que leu a matéria se meter a fazer isso para ver a quantidade de internações em pronto-socorros cardiológicos pouco tempo depois…
Agora, para não dizer que estou pegando no pé da Folha, aqui vai uma do Estadão. No dia 5 de abril, assinada por Herton Escobar, saiu publicada a matéria ‘Terapias com células-tronco geram dilemas entre pacientes e cientistas’, com o subtítulo ‘Cada vez mais, pessoas buscam tratamentos experimentais no exterior, mesmo sem comprovação científica’. Esse subtítulo me fez lembrar imediatamente da propaganda enganosa-criminosa do tratamento milagroso para retinose pigmentar de Cuba. De fato, as coincidências são muitas. Vejamos.
Trata-se de países com regimes fechados, totalitários e, portanto, com acesso difícil e até desprezo pela informação. Embora, justiça seja feita, pelo menos no caso da China, há muitos pesquisadores que não têm medo de seguir as regras da pesquisa científica e se submeter ao crivo dos pares para corroborar (ou não) seus eventuais progressos. Nos dois casos, a desfaçatez dos médicos envolvidos beira o absurdo. Não. Ultrapassa o absurdo. Não. Deixa eu colocar nos justos termos: se inferno houver, é para onde eles irão. Círculo nono.
Menos pressa e mais reflexão
Tanto os milagreiros cubanos quanto os chineses se valem do mesmo argumento vago, que a maioria de seus pacientes melhora. Melhora como? Quanto? Registrado por quem? Por eles mesmos? Será que já ouviram falar em efeito placebo e em viés de observador? O efeito placebo é tão impressionante que pode ser até mesmo ‘pré-placebo’. Em estudos de tratamentos para degeneração macular, por exemplo, os pacientes podem melhorar uma linha de visão (que não é pouco!) só de saber que participarão. Veja bem: antes de usar qualquer coisa, até placebo.
No caso do viés de observador, uma verdade grosseiramente óbvia é que quem faz o tratamento não pode ser quem mede seu resultado, pois quem faz torce pela melhora. Isso é tão básico, tão pré-histórico, tão primário, que me surpreende que qualquer pessoa, mesmo sem formação científica, perca seu tempo dando espaço e voz a lunáticos (na melhor das hipóteses) ou desonestos (na pior), que usam esse espaço da pior maneira possível: como propaganda para seu ‘negócio’. É verdade que no caso da matéria de Escobar, muito mais espaço foi dado a médicos-pesquisadores sérios do que na de Calderari, o que ajudou a dar um tom neutro. O problema é que o tom não era pra ser neutro, mas, sim, tendencioso mesmo. Tendencioso para o lado sério. Tinha de ter sido uma reportagem-denúncia, com o título: ‘Médico chinês propõe tratamento milagroso sem nenhuma comprovação científica com células-tronco e cobra os tubos por isso’.
Outra coincidência entre Cuba e China: os ‘tratamentos’ são para doenças incuráveis e/ou progressivas. Esse é o detalhe sórdido que, aliado ao alto custo do ‘tratamento’ (como é que se define estelionato mesmo?), dá posição garantida no inferno a seus realizadores (círculo nono). Trata-se de uma descarada exploração do desespero. É um negócio maravilhoso, melhor do que tráfico de drogas: vende-se esperança a desesperançados.
Infelizmente, a pesquisa científica, embora caminhe bem mais rápido agora do que há 50 anos, ainda é muito lenta para o paciente que sofre na pele problemas mais graves. Duas linhas de pesquisa promissoras, como a terapia genética e as células-tronco, ainda precisam galgar muitos degraus para se tornarem viáveis. O papel do jornalista nessa história deve ser de menos pressa e mais reflexão. Senão, de inocente útil, vira cúmplice de crimes.
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Médico, doutor (UFMG) e postdoc fellow (Harvard) em Oftalmologia, mestre (UFG) e doutorando (UFSCar) em Filosofia. Professor da graduação em Medicina e pós-graduação em Ciências Ambientais e da Saúde da Universidade Católica de Goiás