O anúncio de US$ 1 bilhão em investimento em empresas jornalísticas parceiras do Google Showcase, ou Google Destaques, foi recebido com otimismo por alguns e ceticismo por outra parte da indústria e representantes do setor. Os recursos podem dar um fôlego para as organizações licenciadas, mas esse valor não corresponde nem de longe ao retorno que o jornalismo garante para a gigante do Vale do Silício. Além disso, ao determinar a inclusão das empresas participantes pela “alta qualidade jornalística”, se levanta a seguinte questão: a que tipo de qualidade jornalística a companhia estadunidense se refere? E como ficam as novas iniciativas jornalísticas e os demais veículos fora dos grandes conglomerados?
Cerca de 200 organizações, de seis países, integram a iniciativa nessa fase inicial, lançada em outubro no Brasil e Alemanha. De acordo com o CEO da companhia Sundar Pichai, o agregador de notícias reúne a curadoria de conteúdos produzidos por “redações premiadas” e o investimento pagará “aos editores para criar e selecionar conteúdo de alta qualidade para um tipo diferente de experiências de notícias online”. Segundo o comunicado para o mercado brasileiro, o aplicativo oferece ao leitor informações mais contextualizadas e recursos para aprofundar a relação com o público.
No Brasil, 20 organizações compõem a fase inicial do projeto, mas iniciativas premiadas como Agência Pública, Nexo e The Intercept Brasil não fazem parte do portfólio. Da mesma forma, na Alemanha, títulos da editora Axel Springer, a qual não concordou com os termos da parceria, e os conteúdos do Die Tageszeitung, jornal de uma cooperativa jornalística alemã criada em 1979, também não integram o aplicativo.
Portanto, os termos de licenciamento das marcas integrantes da iniciativa não são claros. Além disso, o investimento anunciado para os próximos três anos representa muito pouco do faturamento anual da empresa com o setor. Conforme projeção realizada pela News Media Alliance, a receita da gigante da tecnologia com notícias em 2018 foi de aproximadamente US$ 4,7 bilhões, considerando apenas a Pesquisa Google e o Google Notícias.
De acordo com a Federação internacional dos Jornalistas (IFJ), “a promessa está muito longe do que o Google deveria pagar à indústria de notícias global e jornalistas de todo mundo”. Junto com a Federação Europeia dos Jornalistas, ela exige “total transparência sobre o programa e os acordos firmados com as editoras de notícias”. Também ressalta que a iniciativa não exime a empresa de remunerar o conteúdo jornalístico de forma justa.
Joshua Benson, do Nieman Lab, avalia que todos os países participantes na fase inicial do projeto têm em comum “esforços antitruste ou outras tentativas de controlar seu poder de mercado”. Por isso, a Associação de Meios de Informação da Espanha (AMI, na sigla em espanhol) alerta para a desigualdade que o agregador pode representar ao beneficiar apenas algumas editoras. Além de chamar a atenção para que a medida não sirva de cortina de fumaça para enfraquecer os debates sobre remuneração das editoras de notícias e cumprimento das diretrizes de direitos autorais pelas plataformas.
Na mesma Linha, Shoshana Wodinsky lista uma série de ações que têm como pano de fundo “incentivar o consumo de notícias e ajudar os produtores”, mas que se convertem na prática em ações predatórias de exploração do valor imaterial e material da produção de notícias. Ela argumenta que o novo agregador de notícias veio para “distrair” a indústria e os reguladores da internet.
Afinal, de que qualidade está se falando?
Ao definir qualidade sem critérios específicos, a empresa de tecnologia exclui todos os demais negócios jornalísticos que não se enquadram ou aceitam as normas estabelecidas por ela. O tipo de arquitetura do aplicativo permite uma espécie de oligopólio em escala global também para o consumo de notícias, sob o domínio Google, assim como seu mecanismo de busca, gerenciamento de dados, publicidade e compartilhamentos de informações etc.
Em 2017, quando a empresa adotou medidas para aplacar as fake news, ela passou a considerar como jornalismo de qualidade as organizações de mídia tradicionais e hegemônicas, descreve Flávia Lefèvre Guimarães, do Intervozes. A advogada ressalta que, como consequência dessa definição, veículos alternativos e de esquerda viram cair o seu número de visitantes em seus sites. Para ela, as práticas adotadas pela empresa de tecnologia “atuam como controlador do fluxo de uma volumosa quantidade de informações com poder de influência nos campos políticos, culturais, dos direitos sociais e da saúde”.
Rogério Christofoletti argumenta na mesma direção ao afirmar que “nunca houve empreendimentos privados dessa natureza e alcance, e não é exagero dizer que Google e Facebook projetem sombras sobre países inteiros com sua influência e poder”. Ao questionar “quanto custará ao jornalismo aceitar o dinheiro de Google e Facebook?”, o pesquisador destaca a relevância de fontes de financiamento e apoio ao jornalismo, porém, apresenta uma série de questões que vão desde a ética e autonomia profissional até os efeitos dessa relação para a democracia.
Não se questiona aqui a relevância de ferramentas de monitoramento e controle de informações falsas, muito menos iniciativas para diversificar e apoiar o financiamento da produção jornalística. O ponto central é a que tipo de qualidade se refere os padrões adotados pelas gigantes mundiais quando impõem regras para o jornalismo, as implementam em seus algoritmos, sem deixar claro para a sociedade como o faz. Quais serão os efeitos disso para a sociedade em longo prazo?
Desde que iniciou sua campanha contra a desinformação, a companhia norte-americana confunde valores de negócio como critérios para definir qualidade jornalística — como tradição no nicho da mídia, penetração no mercado e aceitação dos termos estabelecidos. Antes disso, as métricas que garantem melhor ou pior ranqueamento nas buscas orgânicas já privilegiavam a lógica dura da meritocracia, impondo uma série de regras de estilo e conteúdo para os produtores jornalísticos interessados em terem seus conteúdos visíveis para um maior público.
Porém, quando se fala em qualidade jornalística, o que realmente diferencia um conteúdo do outro é a observação de princípios éticos e deontológicos em busca de um discurso plural e socialmente comprometido. Ao etiquetar a qualidade pelo modelo de negócio são desconsiderados fatores como diversidade de discurso, de vozes, contraditório, checagem aprofundada e detalhada, autonomia dos profissionais e empresas/iniciativas produtoras, análise honesta e transparência.
Adotar índices a partir de um modelo de negócio, sem critérios jornalísticos claros sobre o que caracteriza um conteúdo de qualidade, pode trazer consequências preocupantes. Especialmente porque países como o Brasil possuem uma concentração midiática que impõe posicionamento hegemônico sobre linhas editoriais econômicas e políticas em veículos. Agora, essa super concentração também se estabelece no aplicativo do Google Showcase, o que pode afetar conteúdo e rotinas de produção.
Além de um mercado cada vez mais competitivo e precário, os integrantes do agregador de notícias precisam se moldar a mais um tipo de norma organizacional — aquela ditada pelo modelo de negócio imposto pela gigante da tecnologia às editoras licenciadas. Não entrarei aqui em outro ponto crucial dessa questão, que são as condições de trabalho dos jornalistas, já abordado por Andressa Kikuti em texto para o objETHOS.
Se antes as rotinas profissionais e valores jornalísticos de muitas organizações já se moldavam para garantir maior tráfego, audiência e visitantes únicos, agora elas podem também ser regradas pela necessidade de se manter na parceria. Só que as normas do jogo (sobre o que é ou não qualidade jornalística) quem estabelece não são as organizações de mídia, mas a Google, companhia não acostumada em dialogar com seus parceiros e usuários na hora de mudar suas políticas de uso.
O novo agregador de notícias teria um grande potencial de oferecer aos usuários uma diversidade infindável de fontes de informações confiáveis na palma da mão, porém, os termos divulgados não parecem dar espaço para isso. É necessário democratizar o discurso da mídia, ampliar o espaço para vozes divergentes e estabelecer, de fato, protocolos de verificação da qualidade que garantam o papel democrático do jornalismo e de qualquer parceiro comercial que dele busque se beneficiar.
Publicado originalmente por objETHOS.
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Janara Nicoletti é doutora em Jornalismo e pesquisadora associada ao objETHOS.