Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Procure nas cuecas

(Foto:Jefferson Rudy/Agência Brasil)

Parece paródia das queimadas amazônicas mas o cenário é a Índia. E o relato, a angústia de um fotojornalista para localizar a aldeia que explodiu durante um terremoto. A área era do interesse de um poderoso empreendedor que construía prédios no local e não queria seus negócios afundando pela bisbilhotice do jornalista. O resultado são 71 minutos de personagens negando a tragédia e reprimindo quem se atrevia a apontá-la. Tremor, de Balaji Vembu Chelli, integra os 200 filmes da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, virtual, entre os dias 22 de outubro e 4 de novembro.

É triste descobrir no cardápio da Mostra que cada vez nos identificando mais com ficções ou documentários da face escura do planeta, menos com a Escandinávia. É o caso de 17 Quadras, do americano Davy Rothbart, que poderia retratar uma favela carioca. De Bem Vindo a Chechenia, que documenta a brutal campanha governamental contra a comunidade LGBT+. E de Tremor, onde o Brasil se reconhece na negação ao trabalho da imprensa e à verdade dos fatos. Ou não ouvimos do presidente que nossa mata está intacta?

Na última campanha presidencial pela rede ABC, Joe Biden citou a Amazônia como “o maior sequestrador de carbono do mundo”. A União Europeia não quer acordo com o Mercosul depois do desastre ambiental. O ex-chanceler Celso Lafer afirmou domingo no Estadão que “o desabrido negacionismo” da era Bolsonaro “corrói a credibilidade do Brasil… E nos isola do mundo”.

Mas o governo só se preocupa em espionar a Cúpula do Clima da ONU, em Madri. Ali, quatro agentes secretos monitoravam ONGs e representantes da comitiva brasileira e das delegações estrangeiras para captar críticas às políticas ambientais. Arapongas a serviço da Abin já se ocuparam de dossiês para intimidar antifascistas e poderiam se poupar do vexame de sair pelo mundo fichando “maus brasileiros”, e negando a devastação ao chamar o boi de bombeiro das queimadas. A expansão pecuária não reduz incêndios. Onde há mais bois, mais focos de fogo.

No Brasil a verdade está tão encoberta que só aparece nas entranhas, nas cuecas.

Só a imprensa pôde alardear quando o ministro Ricardo Salles disse ser responsável pela fiscalização de apenas 6% do Pantanal, uma região que queimou 30% de sua área. O Pantanal equivale a um Portugal, uma Bélgica e uma Suíça juntos e ainda sobra.

Só a imprensa para descobrir que mês passado o Exército brasileiro gastou quase R$ 9 milhões em combustível, horas de vôo e munições para simular na Amazônia uma guerra entre dois países, o azul contra o invasor vermelho. O campo de guerra contou com 3.600 militares num raio de 100 a 300 quilômetros de Manaus. Justo quando o secretário de Estado americano Mike Pompeo, ex-CIA, esteve em Roraima para defenestrar a vizinha Venezuela, de Nicolás Maduro, e colher votos latinos para Trump. O conflito foi fictício, mas mereceu disparo de fuzis. Como a guerra contra “comunistas” deve parecer iminente, a proposta de orçamento para mísseis em 2021 é de R$ 141, 9 milhões. Não foi Clemenceau quem disse que “a guerra é importante demais para ser deixada para os generais?”

Quem acompanhou o chanceler Ernesto Araújo na visita de Pompeo à Roraima foi Chico Rodrigues (DEM-RR). Esse mesmo, dos R$ 30 mil na cueca. O senador é vice-líder do governo com quem Bolsonaro declarou ter uma “relação estável”. Agora, diz que não tem a ver com seu governo. Rodrigues empregou um primo dos filhos do presidente, Leonardo Rodrigues, o “Leo Índio”. E integrou a comitiva presidencial na viagem a Israel em 2019, além de indicar o coordenador do Distrito Sanitário especial Indígena Leste em Roraima, Vitor Paracat.

Na quarentena, Chico Rodrigues passou a fornecer equipamentos de proteção superfaturados a este distrito que a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) aponta como um dos recordistas em casos de Covid-19 entre as comunidades indígenas. O distrito é responsável pela saúde de 51 mil indígenas de 325 comunidades. Rodrigues defende as teses de Bolsonaro como garimpo em terras indígenas, o fim das reservas legais em propriedades rurais e considera o desmatamento “exagerado em relação aos dados”.

Até agora Bolsonaro não deu “uma voadora no pescoço” de quem teve as calças arriadas pela Polícia Federal. E insiste que não há corrupção governo.

A negação se estende a Marina Silva quando o presidente da Funarte, Sérgio Camargo, diz que não reconhece a ex-ministra como negra e retira seu nome da lista de personalidades da instituição. Camargo nega o papel de Zumbi como herói, e nega a escravidão. O pai de Sérgio, o poeta e ativista do movimento negro Oswaldo Camargo, negou o filho, “seu caminho não é o meu”. Mas Sérgio aumentou a lista dos excluídos, “pretos por conveniência”. Citou a filha de Gilberto Gil, Preta Gil e a deputada Talíria Petrone (PSOL). E incluiu os desafetos de Bolsonaro, como o ex-deputado Jean Wyllys, que o presidente chamou de “veado” e “queima-rosca”, e Wyllys revidou com uma cusparada durante uma votação na Câmara. E o deputado David Miranda (PSOL), que é marido há 14 anos do jornalista combativo Glenn Greenwald.

Negar é o que este governo faz na área da Cultura, desprezando a história e deixando terra arrasada na Casa de Rui Barbosa, Ancine, IPHAN, Funarte. E desmontando o maior acervo audiovisual da América do Sul, a Cinemateca Brasileira, com 250 mil rolos e 1 milhão de documentos entre eles o acervo da primeira emissora do Brasil, a TV Tupi, e o arquivo do Departamento de Imprensa e Propaganda do Estado Novo (DIP).

Agora o Ministério da Educação está “desescrevendo” histórias infantis tradicionais no programa Conta para Mim. Extirpou beijos, mortes e bruxas do texto e imagem. Na história de João e Maria os meninos não são abandonados pelos pais e quem joga as pedrinhas para achar o caminho de volta é a mãe. Chapeuzinho Vermelho não se desvirtua do caminho seguro ensinado pela mãe, o que a fazia encontrar o lobo mau travestido de vovózinha. Também a rainha que morre de inveja de Branca de Neve não se transforma em bruxa, só vai para a cadeia. Os psicólogos do governo desconhecem que era benéfico às crianças de antigamente morrer de medo de serem abandonadas pelos pais na floresta, de não obedecer à mãe e encontrar no caminho um lobo mau, e da rainha transformada em bruxa má. Por isso as histórias eram contadas e recontadas. As crianças botavam o medo para fora. O filósofo e crítico literário Walter Benjamin chamou atenção para as histórias infantis funcionarem como antídoto para nossos medos, ao projetá-los.

Temos de procurar a verdade no fundo ou fundão, bem escondida neste governo. Semana passada a TV Brasil elogiou Bolsonaro durante o jogo Brasil e Peru pelas eliminatórias da Copa de 2022. O narrador da partida, André Marques, mandou um “abraço especial” para o presidente nos dois tempos do jogo, e fez uma saudação à Confederação Brasileira de Futebol em nome do Secretário executivo do Ministério das Comunicações, Fabio Wajngarten. No intervalo, veiculou reportagens favoráveis ao governo. A TV Brasil é uma emissora pública do Executivo federal e integra a Empresa Brasil de Comunicação (EBC). Não pode fazer promoção pessoal do agente público, seja o presidente ou ministro. O elogio ao presidente agride o princípio da impessoalidade da Constituição que prevê publicidade oficial apenas com caráter educativo, informativo ou social. A lei proíbe “qualquer forma de proselitismo na programação das emissoras públicas de radiodifusão”. Mas adulação e autopromoção é comportamento padrão de regimes autoritários como a Coréia do Norte, as ditaduras. Todos se recordam do uso da Copa de 70 pelo general Médici. O deputado Flávio Bolsonaro (PSL-SP) twittou os números da audiência durante o jogo, festejando estar à frente da Record com 12,9%, embora com metade da audiência da novela “Força do Querer” na Globo que chamam de “Globolixo”.

Era esta TV Brasil que o presidente prometeu extinguir. Mas neste governo o dito fica pelo não dito e a verdade, só no avesso ou nas cuecas. É esta TV Brasil que censura desmatamento na Amazônia, o quadro da fome, cortes no orçamento da Educação e palavras-chave como golpe ou ditadura. Exagera em eventos evangélicos com Bolsonaro presente e delegando à “mão de Deus” o preenchimento da vaga no STF, e a reeleição. Esta TV Brasil exterminou programas como o Toma Lá Dá Cá, do jornalista Ancelmo Gois, mini-séries como Equador, baseada no livro de Miguel Sousa Tavares. E cancelou o contrato do Observatório da Imprensa ao completar 18 anos no ar, 20 anos on-line, causando a doença e morte do seu criador, Alberto Dines.

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Norma Couri é jornalista.