Desde meados de fevereiro, quando o primeiro caso brasileiro de Covid-19 foi confirmado, “fake news”, “desinformação” e “negacionismo” viraram termos comuns no dia a dia da população. Apesar de a circulação de boatos ser um fenômeno antigo, seus efeitos são acelerados durante uma pandemia e causam sérios danos à sociedade, entre os quais o crescente número de mortes pela doença.
Desinformações sobre a pandemia estimularam a destruição de torres de telefonia no Reino Unido, casos de xenofobia em uma série de países, a popularização e o fortalecimento de movimentos extremistas armados, a invasão de hospitais, ataques e ameaças a cientistas e profissionais da saúde no Brasil, além do envenenamento de pessoas após o consumo de substâncias apresentadas como “curas” na Nigéria, na Argentina, no Vietnã, no Irã e nos Estados Unidos. A descrença na gravidade da Covid-19 e na necessidade de interromper suas cadeias de transmissão também fez com que mais pessoas fossem expostas ao vírus e sofressem com as complicações da doença.
O estudo da desinformação ou da desordem da informação é um campo de conhecimento interdisciplinar. Nele, os efeitos do negacionismo climático, da oposição a vacinas assim como das diversas formas de ataque à ciência — instituições de pesquisa, universidades públicas etc. — são conhecidos.
Entre os diferentes tipos de desinformação, se destacam as teorias da conspiração — narrativas que tentam explicar grandes acontecimentos a partir de planos secretos que seriam orquestrados por pessoas perversas e poderosas. Sabemos que a exposição excessiva a teorias da conspiração sobre vacinas, por exemplo, pode diminuir a intenção das pessoas de se vacinar e incentivar a busca por calendários alternativos de vacinação. Da mesma forma, coberturas jornalísticas malfeitas e motivadas pelo número de acessos (clickbait) estimulam falsas controvérsias. Reportagens aparentemente “equilibradas” sobre vacinas, por exemplo, tendem a reduzir a percepção de segurança e a decisão de vacinar os filhos. Considerando o público brasileiro especificamente, de acordo com um levantamento da Avaaz realizado em 2019, 57% dos entrevistados que não se vacinaram declararam que não o fizeram por causa da crença em alguma informação incorreta.
A pandemia estabeleceu um cenário em que a solidariedade se torna necessária para o enfrentamento da doença, mas o medo, a ansiedade, os preconceitos, as diferentes crenças religiosas e políticas e os interesses ligados a elas se misturam em uma trama complexa que divide a população. A literatura de qualidade sobre desinformação e teorias da conspiração foi produzida em contextos diferentes, mas é a partir dela que poderemos compreender a infodemia que acompanha a Covid-19.
Regulação
O medo e a ansiedade criam um ambiente propício para a popularização de teorias da conspiração. Responder ao problema com informações corretas, expor a falta de lógica da teoria, focar na (falta de) credibilidade dos teóricos da conspiração, disponibilizar links para sites de checagem ou explicar o processo de verificação adotado nessa situação são algumas formas de desmistificação que têm se mostrado efetivas no combate a essas teorias.
Os questionamentos da população também precisam ser levados a sério. Pesquisas apontam, por exemplo, que parte dos indivíduos presentes em comunidades antivacinação se aproxima desses grupos em busca de respostas, encorajados pelos sistemas de recomendação das redes sociais e pela “ridicularização” ou “silenciamento” ocorridos em outros espaços (consultórios médicos, núcleo familiar). O senso de pertencimento, a identificação com outros membros e a validação de ideias fortalece essas comunidades e prejudica a disputa pelo público indeciso.
Na ânsia de propor respostas ao problema, políticos de diferentes países criam legislações que prometem o “fim das fake news“. Embora a necessidade de regulação se torne cada vez mais clara, especialistas alertam para os riscos de legislações apressadas e alheias à ciência, que têm servido a alguns governos como instrumento de censura e de perseguição política da população e da imprensa. Atualmente, mais de 50 países estão ensaiando ou testando mecanismos legais de responsabilização, ao mesmo tempo em que muitos dos governantes são denunciados pela produção e pelo impulsionamento de desinformações perigosas, como é o caso do Brasil.
Combater a difusão de desinformação é uma tarefa desafiadora. Sabemos que políticas de uso que visam coibir a produção de certos tipos de conteúdos tendem a se tornar obsoletas em pouco tempo devido ao comportamento de movimentos negacionistas. Isso ocorre porque esses movimentos possuem dinâmicas que permitem que seus canais, grupos ou páginas se adaptem rapidamente, criando alternativas — de substituição de termos à criação de “comunidades backup” em outras plataformas — para driblar as proibições.
Dados preliminares indicam por exemplo que canais do YouTube que desinformam sobre vacinas adotam estratégias para fidelizar a audiência e para que seus conteúdos e lucros não sejam prejudicados por mudanças nas políticas de uso da plataforma. É dessa forma que, ainda que os canais sejam desmonetizados por disseminar informações perigosas, o acesso ao público e o financiamento se mantêm — se o dinheiro não vem de anúncios, ele pode vir da comercialização de produtos e serviços, de doações recebidas por meio de plataformas de arrecadação e até mesmo de patrocínios diretos, sem a necessidade de mediação da empresa que administra a rede social.
Educação midiática
Partindo desses desafios, especialistas defendem que a educação midiática precisa ser incorporada ao debate sobre a desinformação e reconhecida como política pública essencial e urgente. A ideia é parecida com o projeto que vem sendo realizado pela Finlândia desde 2014. A iniciativa do governo finlandês tem como objetivo preparar a população para lidar com o ambiente digital cada vez mais complexo em que vivemos. Eles ensinam professores, estudantes, jornalistas e políticos a identificar informações falsas e a adotar estratégias para combatê-las. Com base nisso, o currículo escolar do país vem sendo adaptado para que conceitos e exercícios práticos de reconhecimento de desinformação se tornem acessíveis a públicos de diferentes idades.
Iniciativas estão surgindo através de projetos informais de educação e de divulgação científica. O Manual das Teorias da Conspiração, por exemplo, apresenta em poucas páginas o que é preciso saber para reconhecer o pensamento conspiratório e para lidar com as vítimas das teorias da conspiração. Pesquisadores do campo da desinformação agora trabalham para desenvolver ferramentas educacionais mais interativas e lúdicas como o Cranky Uncle. O jogo, que tem previsão de lançamento para 2020, ensina o público a reagir às técnicas e argumentos frequentemente utilizados por quem nega a existência das mudanças climáticas.
O Bad News Game, por sua vez, convida os usuários a ocuparem a posição de quem cria fake news. Os jogadores devem aumentar o número de seguidores e seus níveis de credibilidade, ao mesmo tempo em que são apresentados às estratégias mais utilizadas por quem espalha desinformação: polarização, apelo emocional, disseminação de teorias da conspiração, trollagem de usuários online, desvio de culpa e uso de contas impostoras. A estratégia de “inoculação” usada por esse tipo de projeto tem ganhado cada vez mais evidências de efetividade. Uma pesquisa inicial com 15 mil usuários do Bad News Gameindica que a habilidade dos participantes de reconhecer e de evitar desinformações aumenta após a utilização do jogo.
Entendendo Ciência e Desinformação
Uma questão que tem se tornado mais evidente com a Covid-19 é a necessidade de comunicar a ciência para além dos resultados, expondo as suas limitações, influências e processos de produção do conhecimento. O imaginário da ciência como produtora de soluções rápidas que “surgem” a partir da genialidade de alguém não só é insuficiente, como também oferece riscos à sobrevivência das instituições de pesquisa. Continuar alimentando esse imaginário com a promessa de tratamentos ou de uma vacina com data para ser lançada é arriscar a confiança e o apoio da população.
É preciso compreender que a desinformação não só promove, mas é também resultado da crise de confiança nas instituições. Ainda que existam grupos negando os riscos da Covid-19, a importância das vacinas, a existência das mudanças climáticas ou o formato da Terra, pesquisas de Percepção Pública da Ciência realizadas até o momento apontam para um mesmo quadro: a população brasileira é uma das mais otimistas do mundo quando o assunto é ciência.
Polarizações do tipo “anti-” e “pró-” distorcem a realidade e ignoram um grande número de fatores que influenciam as decisões e atitudes de cada cidadão. Para entender a crise de aceitação a vacinas, por exemplo, precisamos considerar todo um espectro de posicionamentos que ocorre no caminho entre os defensores das vacinas e seus opositores declarados: há quem recuse vacinas específicas; quem adie o calendário vacinal; quem obedeça ao calendário, mas não se sinta seguro, entre outros possíveis grupos.
Os motivos para deixar de se vacinar também são diversos e complexos. Dependendo do país, podem ter a ver com os custos financeiros (caso dos Estados Unidos); com a disponibilidade de vacinas no sistema de saúde local; com a dificuldade das instituições de saúde de criar uma comunicação efetiva com o público; com a percepção de risco das doenças; com a incompatibilidade de crenças e valores; com razões médicas específicas que impeçam o uso de vacinas etc.
É possível observar o mesmo fenômeno quando o assunto é mudanças climáticas. Para avançar no debate e desenvolver planos de comunicação que realmente funcionem, pesquisadores de Yale e da Universidade George Mason desenvolveram o Global Warming’s Six Americas — um modelo que permite identificar seis grupos distintos entre os norte-americanos, considerando que cada um deles responde de uma maneira ao problema das mudanças climáticas. Audiências diferentes, estratégias diferentes.
Qualquer abordagem polarizada pode afastar grupos inteiros de discussões relevantes, como no caso da Covid-19, reduzindo qualquer possibilidade de diálogo, além de abrir caminho para que as disputas se tornem mais intensas e associadas a identidades e valores.
Estabelecer um ambiente seguro para discussão, oferecer informações claras e compatíveis com o contexto de diferentes públicos, evitar a promoção de falsas controvérsias e tentar entender as preocupações que motivam as dúvidas e as crenças em boatos são ações que podem contribuir para a recuperação dos ecossistemas de informação. Chegou o momento de reconhecer que a ciência é essencial para fazer divulgação científica e para combater a desinformação. Sem ela, os riscos de criar ações que só agravam o problema se tornam ainda maiores.
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Infovid — Rede interdisciplinar de cientistas e comunicadores comprometidos com a divulgação de informações de qualidade e com o combate às desinformações sobre a Covid-19.
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Dayane Machado é doutoranda no DPCT/IG e EDReS da Unicamp, membro do grupo Infovid.
Leda Gitahy é professora do DPCT/IG e EDReS da Unicamp, membro do grupo Infovid.