Além de tradicionalmente ser a instituição que declara quem venceu uma eleição presidencial, a imprensa norte-americana assumiu na quinta feira (5/11) a delicadíssima posição de tirar do ar uma fala do presidente Donald Trump, alegando que ele estava disseminando mentiras. A atitude de três das cinco maiores redes de TV dos Estados Unidos transformou-as num verdadeiro tribunal eleitoral informal capaz de decidir o que pode ou não pode ser transmitido para a população.
O anúncio do vencedor de uma eleição presidencial é uma tradição antiga num país que não tem um tribunal eleitoral como o brasileiro. As redes somam os resultados apurados pelos estados e anunciam quem obteve a maioria dos delegados no colégio eleitoral que apontará o próximo ocupante da Casa Branca.
Mas esta foi a primeira vez na história da imprensa norte-americana que televisões ampliaram sua participação nas apurações ao impedir que o presidente Trump concluísse um pronunciamento no qual qualificou como fraudulenta a apuração dos votos em vários estados norte-americanos. Trump não apresentou nenhuma evidência de fraude configurando claramente um caso de desinformação intencional visando intimidar adversários e apuradores.
Ao contrário das redes CBS, ABC e NBC, as demais redes transmitiram o pronunciamento até o fim, justificando depois porque não tiraram Trump do ar. Na CNN, por exemplo, o apresentador Anderson Cooper explicou: “Esse é o presidente dos Estados Unidos. Essa é a pessoa mais poderosa do mundo, e nós o vemos como uma tartaruga obesa, de costas, se debatendo no Sol quente, percebendo que seu tempo acabou”.
A FOX, tradicional aliada de Trump, não fez comentários sobre o pronunciamento, mas sua cobertura passou a ser questionada pela ultra direita norte-americana que acusou a emissora de anunciar mais vitórias do candidato democrata Joe Biden do que as do candidato republicano. A audiência mais conservadora cobrou da FOX a politização da cobertura eleitoral e o abandono de qualquer preocupação com a imparcialidade.
O incidente com a fala de Trump não interferiu no processo de apuração, mas criou um fato novo que já está provocando muita discussão entre os jornalistas norte-americanos porque criou um precedente delicado. Na ausência de um organismo oficial encarregado de regular condutas eleitorais, a imprensa assumiu a responsabilidade de definir o que é verdadeiro e o que é falso na retórica política durante um pleito presidencial.
Precedente polêmico
Donald Trump sempre atropelou a veracidade dos fatos, bem como menosprezou sistematicamente o papel da imprensa. Seu currículo como mentiroso é vasto, porque segundo o jornal The Washington Post, o presidente falseou dados, fatos e eventos em cerca de 20 mil vezes em pronunciamentos públicos, nos seus quatro anos de mandato. Por isto a decisão das três redes não chegou a causar grande surpresa, mas o simbolismo da atitude mostrou a dificuldade que a imprensa tem em lidar com a complexa questão da verdade.
Num mundo submetido a uma avalanche informativa, é cada vez mais complexa a identificação da veracidade de fatos pelos organismos legais encarregados de julgar o que é verdade ou mentira em situações específicas. No caso da imprensa, as dificuldades são ainda maiores porque ela lida com uma enorme diversidade de dados, fatos e eventos, que exigem uma contextualização adequada para que possam ser classificados como verdadeiros ou falsos.
Tudo isto é cobrado em tempo real do jornalismo, que enfrenta também as pressões de leitores, ouvintes e telespectadores, bem como de grupos vinculados a interesses políticos, financeiros e corporativos. Estes fatores estiveram presentes no momento em que as três redes norte-americanas julgaram o conteúdo da fala presidencial e agiram como tribunal informal ao decidir pela interrupção do pronunciamento.
A avaliação da credibilidade é uma das funções do jornalismo, mas assumir uma atitude como a que foi tomada abre um precedente no mínimo polêmico. A imprensa não está preparada para agir como tribunal, embora ela venha assumindo esta postura com frequência crescente na atribuição de relevância a alguns fatos em prejuízo de outros, na hora de decidir como uma notícia vai chegar até o público.
O que aconteceu agora nos Estados Unidos provavelmente não será um caso isolado porque num mundo em que as notícias são transmitidas cada vez mais em tempo real, decidir o que vai para a internet, o que é certo ou errado, legal ou ilegal, equivale a agir como um tribunal da comunicação.
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Carlos Castilho é jornalista, graduado em mídias eletrônicas, com mestrado e doutorado em Jornalismo Digital e pós-doutorado em Jornalismo Local.