Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A mídia hostil e outros delírios persecutórios

Percepções distorcidas sobre o que é a imprensa são obstáculos à comunicação política

Tenho um conhecido, mais velho — ele é engenheiro agrônomo aposentado — que ideologicamente tem uma postura muito peculiar. Ameaça de golpe comunista, MST é um grupo terrorista, bolsonarismo, cloroquina, marxismo cultural, Paulo Freire, urnas eletrônicas não são confiáveis, negacionismo climático… Soma-se à isso delírios religiosos e intervenção de entidades espirituais, planos cósmicos, enfim. O pacote completo. Obviamente, já me irritei muito com isso mas hoje aprendi a manter o distanciamento que uma observação antropológica exige.

Essa semana, conversávamos sobre a tese jurídica do Marco Temporal e esse meu conhecido defendeu o canal Rural Business como uma fonte independente, imparcial e isenta de informação. Pois bem, não é preciso muito para entender que um canal chamado Rural Business não pode, por definição, ser imparcial à questão do Marco Temporal, que trata justamente do conflito de terras entre o agronegócio de povos originários. Para quem não conhece o canal, ele funciona como uma agência de informações e seus sócios proprietários são Júlio Cesar Bressac e Tânia Tozzi, ligados respectivamente à pecuária e ao mercado de grãos. Eventualmente eles mesmos apresentam as análise de mercado no canal.

Para se ter uma ideia, Bressac tem defendido que a pandemia trata-se, na verdade, de uma armação chinesa para avançar sobre o mercado mundial e em seu canal existem vídeos com títulos como “A China enganou quase todo mundo, menos o assinante do Rural Business”. Suas análise são carregadas de adjetivações e insinuações o que, em tese, deveria colocar o canal longe de qualquer ideia de isenção, imparcialidade e até de seriedade.

Vejam bem. É perfeitamente entendível que um setor econômico expressivo como o agronegócio brasileiro tenha seus veículos de comunicação e seus órgãos próprios para defender seus interesses. E assim o fazem outros setores, instituições, organizações, movimentos políticos. É assim que a sociedade funciona. O absurdo da afirmação está, não em defender determinados interesses, mas justamente em adotar um dos extremos como marco zero, como ponto de neutralidade.

Isso tudo me faz pensar que, na linha de raciocínio desse meu amigo, as ideias de independência, imparcialidade e isenção estão, de alguma maneira, ligadas à uma certa ideia de justeza na abordagem do tema. Quer dizer, pouco importam a técnica jornalística, a escolha das fontes ou princípios éticos da profissão. Se é justo, é bom e, se é bom, é justo. Sendo o inverso disso mais comum e tão verdadeiro quanto. Se a abordagem não me agrada é porque, com certeza, o veículo não é imparcial e está defendendo seus interesses. Tão simples — e perigoso — quanto isso.

De ponta a ponta no espectro ideológico
Apesar do surgimento recente de uma ala direita mais adepta à teorias da conspiração, se engana aquele que acha que esse tipo de percepção sobre a mídia se restringe a esse grupo. Tenho eu, na minha conta pessoal, inúmera experiências em que o menor dos problemas técnicos é justificado como uma perseguição política e um ato de censura. “O sinal da internet estava ruim durante a live? Censura de Zuckeberg!”. Confesso que as primeiras vezes (sim, foram algumas) interpretei como deboche até perceber o quanto isso é dado por verdade se espalhando como rastilho de pólvora, por mais absurdo que seja.

Ou então a cobertura jornalística que fez uma ponderação correta sobre um dado estatístico que não foi do agrado do assessorado. É certo que sem essa ressalva ele ficaria melhor politicamente — mas isso seria propaganda política, não jornalismo. Aquela frase com quatro ou cinco palavra logo virou, aos olhos dos assessorados, um claro ataque do órgão de imprensa que, ressentido por ter que dar uma informação positiva sobre eles, não poderia deixar passar sem fazer um ataque.

Temos ainda, como exemplo de que isso afeta todo o espectro ideológico, páginas de humor político como a Caneta desmanipuladora e sua correlata de direita, a Caneta desesquerdizadora — páginas que se sustentam fazendo “correções” em jornais para denunciar supostos discursos velados. Ou então, o PIG – Partido da Imprensa Golpista, expressão usada por Paulo Henrique Amorin e amplamente usada pelos apoiadores do Partido dos Trabalhadores para denunciar um suposto alinhamento da imprensa brasileira com alas mais à direita. Que, por sua vez, tem seu paralelo na ala direita e conservadora que igualmente ataca a imprensa por “espalhar fake news”, “apoiar a ditadura gayzista” ou “doutrinação marxista”.

Raízes da impressão
Como se explica o ódio à imprensa — no caso brasileiro, encarnada pela Rede Globo — que une petistas a bolsonaristas, passando por uma infinidade de outros grupos? Há uma hipótese de que essa aversão se origine, justamente, do partidarismo. Ou seja, a percepção sobre uma suposta tendenciosidade midiática seria decorrente de uma leitura enviesada por parte do receptor.

Vejam bem. Não se trata de negar possíveis posições tendenciosas na imprensa. Mas sim de reconhecer que, na percepção dessa tendência, vale muito mais o viés de quem lê. Por isso diz-se percepção. E esse é o mérito dessa hipótese. Estudos de mídia tradicionalmente olham para o que a mídia faz com as pessoas. E aqui há uma inversão dessa chave: o que as pessoas fazem com a mídia?

A hipótese foi desenvolvida em 1982 por Robert Vallone, Lee Ross e Mark Lepper, na Universidade de Stanford. O experimento foi o seguinte. Naquele mesmo ano, no Líbano, ocorreu o massacre de Sabra e Shatila. Milhares de refugiados palestinos foram assassinados em um campo de refugiados localizado em uma área controlada pelo exército sionista israelense – que na época ocupavam Beirute. As milícias eram de cristãos maronitas libaneses, mas o Estado de Israel foi duramente acusado de fazer vistas grossas ao episódio. Os pesquisadores então exibiram então a mesma cobertura midiática do fato para três grupos diferentes e previamente selecionados: um grupo com tendências pró-Palestina, um grupo indiferente ao conflito e um grupo com tendências pró-Israel.

O resultado obtido pelos pesquisadores foi de que o grupo pró-Palestina avaliou a cobertura da imprensa como sendo favorável à Israel, culpando-o pouco por suas responsabilidades, e até simpática ao sionismo. Por outro lado, o grupo pró-Israel avaliou a cobertura como sendo anti-Israel, atribuindo uma culpa desproporcional e fazendo ataques ao Estado sionista, com mais referências positivas à Palestina. O grupo indiferente não avaliou nenhuma tendência significativa na cobertura. Os dois grupos com posicionamentos prévios mais definidos, contudo, avaliaram que essa cobertura levaria um receptor neutro a uma leitura contrária da sua.

Uma vasta literatura vem confirmando isso com conflitos geopolíticos, disputas eleitorais e até competições esportivas. No caso de meu conhecido, o Canal Rural é visto como neutro justa e contraditoriamente por assumir todas as mesmas posições que ele.

Explicações para a percepção da mídia hostil
Existem algumas explicações para o fenômeno, embora não seja tão simples de prová-las. A nível de indivíduo, estudos sobre psicologia social dão pistas sobre isso. É amplamente aceito e demonstrado que nosso cérebro funciona por pequenos atalhos que chamamos de vieses cognitivos. O cotidiano não nos permite debruçar e debater sobre cada mínimo detalhe ao passo que acabamos nos apoiando nesses mecanismos. Raciocínio motivado é um deles. Damos maior importância aos fatos que corroboram nossas posições e relativizamos os contrários para evitar o desgaste mental da contradição, especialmente nos temas com forte carga emocional (partidarismo, por exemplo). Um outro, chamado de viés de confirmação – e que engloba uma série de tendências -, explica como preferimos informações que vimos primeiro, como nossa memória é seletiva e como fazemos mais esforço interpretativo para confirmar aquilo que já pensamos. E isso tudo é muito poderoso por um motivo simples: funciona na maioria das vezes. E aqui está o tipo de detalhe onde o Diabo mora.

A nível social, há um fator importante também para ser considerado. É o que se chamou de “fator de origem”. Estudos sobre o fenômeno da percepção da mídia hostil perceberam que a percepção sobre e emissor da mensagem influencia diretamente sobre a percepção da mensagem em si. Um texto atribuído a uma redação de estudante de ensino médio é visto como uma simples redação. O mesmo texto, atribuído a um veículo de imprensa, se torna um problema muito maior e a percepção sobre se enviesamento é elevada exponencialmente

Efeitos correlatos
Essa distorção provocada pelo “fator de origem” se explica por um fenômeno correlato ao da percepção da mídia hostil que é chamado de Efeito da Terceira Pessoa. Basicamente, essa hipótese teórica afirma que super-valorizamos o impacto midiático sobre as outras pessoas mas minimizamos sobre nós mesmos. Algo semelhante com “o Brasil é um país racista mas eu não sou”. A lógica é a mesma. O problema está sempre no outro.

A percepção dos grupos pró-Palestina e pró-Israel de que a cobertura levaria o leitor neutro à posição contrária está diretamente relacionada à super-valorização do poder de manipulação sobre o outro. Mesmo achando que a cobertura não exerce influência sobre suas posições próprias. Muitos pesquisadores têm usado essa hipótese para entender a defesa de regulação da mídia ou de censura por parte de grupos partidários. Para esses pesquisadores, a motivação desses projetos está na percepção do poder atribuído à fonte da mensagem, daí a necessidade de alguma forma de regulação. O fato de tanto apoiadores do PT quanto bolsonarista tentarem conter o “poder da mídia” (sempre encarnada na Globo) corrobora essa leitura.

Um obstáculo à comunicação política
E o que isso tem a ver com a comunicação política? Bem, a política se baseia em um processo permanente de análise, caracterização e algumas projeções sobre a realidade. Afinal, fazer política é fazer previsões. O problema está no fato de que, nesse processo, uma análise e caracterização erradas da realidade vão levar, muito provavelmente, a uma política errada.

Distorções de percepção são, aqui, verdadeiras armadilhas. É o tal detalhe, morada do tinhoso. André Mendonça Machado publicou no final de 2018, na Revista Brasileira de Inteligência (publicada pela Abin), um interessante artigo que debate justamente o problema das falhas provocadas por vieses cognitivos no serviço de inteligência e como isso pode levar a erros graves em termos de política externa.

Ora, na política cotidiana não é diferente. Uma percepção equivocada sobre o papel da imprensa leva, na quase totalidade dos casos, à uma política errada para a imprensa. E tratando-se de campanhas políticas, uma relação adequada com a imprensa é fundamental.

Não estamos excluindo a possibilidade de que, em determinados processos políticos, grupos se enfrentem com a imprensa ou que haja diferença de interesses, nem estamos dizendo que a imprensa muitas vezes não se pauta pelos interesses próprios ou os dos grupos econômicos que a sustenta. Mas a arte disso tudo está em reconhecer quando de fato trata-se de um ataque da imprensa para que – aí sim – se tenha uma política correta para enfrentar uma contenda com algum veículo. Mas para isso é preciso uma caracterização correta sobre o que é a imprensa. Aí sim, teríamos uma disputa justa.

Viver em pé de guerra é fácil e cômodo mentalmente, mas um equívoco político. É distorcer a realidade para caber na política e não a adequação da política para a realidade. A começar pelo fato de que se reduz uma miríade de veículos, cada qual com suas características, interesses e linhas editoriais, à uma entidade abstrata chamada de “mídia”. E mais, que jornais e revistas são feitos por pessoas, por trabalhadores da escrita e do audiovisual. A “mídia que manipula”, a “mídia que persegue” é, na verdade, um todo complexo com contradições próprias. Essa é uma simplificação perigosa para quem quer pensar (ou no caso dos que não querem pensar mas precisa atuam na) comunicação política.

Friso: uma coisa é propaganda política, outra é jornalismo. Para falar bem de si mesmo e minimizar os problemas, temos o primeiro. O segundo tem dever ético de fazer todas as ressalvas e, se for sério, o fará. A linha entre esse compromisso ético e os interesses do veículo é tênue, à vezes se cruza por deslize de quem escreveu a matéria. Mas fingir que ela não existe é delírio persecutório.

Lembro de um caso que uma vez me foi relatado. Certa vez um grupo publicou uma nota denunciando o boicote da imprensa local à sua política. O jornal local respondeu dias depois, em suas páginas, dizendo que havia tentado contato inúmeras vezes mas que, sem assessoria, ficava difícil achar as informações. Acho esse episódio muito ilustrativo.

Pressupor a “mídia” como inimiga permanente é a morte de qualquer trabalho de assessoria ou relações públicas. Além de uma leitura simplista e equivocada da realidade, é um obstáculo à comunicação política colocado pelos próprios sujeitos interessados na política.

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Romerito Pontes é comunicador social e atua com comunicação política.