Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

A precarização dos serviços de vigilância e o racismo estrutural

Foto: Eduardo Saraiva/A2IMG

Não há outras palavras para descrever. João Alberto Silveira Freitas, 40 anos, o Beto, na quinta-feira (19/11), foi espancado até morte pelos seguranças da filial da zona norte de Porto Alegre do Carrefour por ser negro e pobre. É o chamado racismo estrutural, uma das chagas do Brasil. Essa história está sendo muito bem contada pelos noticiários brasileiros dos jornais (site e papel), rádios, TVs e outras plataformas. A imprensa ao redor do mundo está dando grandes espaços para a notícia. Beto foi morto às vésperas do Dia Nacional da Consciência Negra, uma data nacional criada em 2003 para lembrar Zumbi dos Palmares, um herói na luta contra a escrivão no Brasil. Agora, ele faz parte de uma longa lista de negros e pobres que foram mortos, feridos, escorraçados e humilhados pelos seguranças das lojas de varejo no Brasil, como o Carrefour, que tem currículo nesse assunto. E sobre esse detalhe da cobertura que quero conversar.

A segurança privada no Brasil é povoada de empresas aventureiras e clandestinas. É isso que tenho visto nos 40 anos que sou repórter e nas centenas de matérias que fiz envolvendo problemas de seguranças com clientes de lojas do varejo. Quem duvida, olhe os jornais. Vamos aos fatos. No caso da filial do Carrrefour de Porto Alegre, os seguranças envolvidos no espancamento, asfixia e morte de Beto são Magno Braz Borges, 30 anos, e Giovane Gaspar da Silva, 24 anos, soldado temporário da Brigada Militar (BM) — no Rio Grande do Sul, policial militar é chamado de brigadiano. E a empresa contratada pelo supermercado para “fiscalização e prevenção de perda” é a Vector, com sede em São Paulo. O brigadiano temporário não poderia realizar trabalhos de segurança privada, porque a BM proíbe. Mas o que acontece na prática? As empresas de segurança, para vencer uma concorrência pública ou privada, atribuem um preço abaixo do mercado. E depois contratam free lancers para realizar os serviços de vigilância — porque eles custam muito menos que o trabalhador contratado regularmente. A operação não é ilegal. Mas o serviço prestado é de baixa qualidade, porque os free lancers geralmente são policiais civis e militares fazendo bico para engordar o salário. Ou seja: estão trabalhando nas horas vagas.

A questão das empresas clandestinas é um capítulo à parte no setor de segurança privada. Ninguém sabe exatamente quantas existem no Brasil. Mas somam algumas centenas. E sempre que há crise no mercado de trabalho, como nos dias atuais, o número cresce. Geralmente, elas operam nas pequenas lojas de varejo, nas calçadas onde existe um grande fluxo de compradores e nos bairros residenciais. Claro, as grandes empresas do setor sempre reclamaram contra a concorrência desleal das clandestinas. A maioria delas têm como dono um policial da ativa que emprega aposentados — não importa em que ramo tenha trabalhado — para atuar como vigilantes. Há mais um problema. Até uma década atrás, o treinamento do policial militar nas academias tinha um forte apelo ideológico dos tempos da Guerra Fria — 1947 a 1991, travada entre os Estados Unidos, capitalista, e a extinta União Soviética, comunista. E a linha mestra era preparar o policial militar para a guerra. O suspeito de sempre é o negro, o pobre e o favelado.

O que escrevi não é opinião. São fatos que podem ser comprovados pelos colegas. Em linhas gerais é esse o caos da segurança privada no Brasil. Esse problema vem sendo agravado pelas bravatas do presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido). Perguntei para um especialista em segurança privada o que aconteceria nos dias seguintes à morte de Beto, em Porto Alegre. A resposta foi curta: “Nada”. Insisti e pedi maiores explicações, e ele acrescentou: “O setor da segurança privada é uma engrenagem dentro de máquina chamada Brasil. Não é ele que determina que negro, pobre e favelado são os suspeitos de sempre. Ele só cumpre ordens”. O que acontece no setor de segurança privada precisa voltar a fazer parte da nossa pauta de notícias diárias. O setor é complexo e saber como as coisas estão funcionando é fundamental para o repórter envolvido na cobertura diária. No caso da morte de Beto e outros acontecimentos envolvendo seguranças do Carrefour. Muito pouco se publicou. Ou seja: aqueles seguranças não estavam lá passeando. Eles foram colocados ali por uma empresa. Eu pergunto o seguinte: as pessoas que contrataram os dois seguranças que mataram Beto vão para a cadeia? Duvido. Por quê? Ninguém sabe quem são. A nossa cobertura está focada na questão política e no que aconteceu dentro do supermercado. Precisamos acrescentar uma investigação sobre quem contratou os seguranças. É por aí, colegas.

Texto publicado originalmente pelo blog Histórias Mal Contadas.

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Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social — habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais.