Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Telenovelas antigas exibidas na grade atual revelam preconceitos

Não sou de ver novela, mas acho que elas são muito boas para retratar a sociedade e contextos de uma época. Percebi esse grande potencial da teledramaturgia assistindo involuntariamente algumas novelas no Canal Viva, por às vezes estar no mesmo recinto que a minha mãe (ela é noveleira, daí não tem jeito…). Comecei a reparar nos figurinos antigos, maquiagem, penteados, cenografia, carros. Talvez esses elementos sejam os que mais saltam aos olhos como registro de um tempo antigo. Mesmo que o tempo nem seja tão antigo assim. Uma novela ambientada há uns 15 anos já é o bastante para nos provocar certa estranheza quando a assistimos em uma perspectiva comparada à atualidade.

Mas não fica só nisso. Logo você começa a reparar em outros elementos: gestos, gírias e expressões. Tudo descortinando as diferenças entre contextos e épocas. Em Pai Herói, por exemplo, novela de 1979 reprisada recentemente pelo Viva, chamou a minha atenção o modo como o personagem André (Tony Ramos) agarrava e sacudia Carina (Elizabeth Savalla) com certa truculência nas brigas de casal, mesmo sem ser um vilão. Pelo contrário, era o protagonista e herói da trama. Naquela dramatização de gestos é possível encontrar um registro da micro-história contemporânea, de como eram as relações cotidianas na década de 1970, incluindo o machismo e a subordinação feminina na cultura da época? Creio que sim.

Mesmo as novelas de época, que retratam um período diferente daquele em que foram feitas, ainda assim nos dizem alguma coisa em perspectiva histórica. A versão original de Sinhá Moça (1986) e o seu remake (2006), quando vistos em perspectiva comparada, nos mostram o quanto os aspectos técnicos das produções audiovisuais avançaram. A iluminação é um exemplo que salta aos olhos, literalmente: a versão original tinha tomadas bem mais escuras, principalmente em ambientes internos.

Podemos ir além. Duas novelas do autor Manoel Carlos estão sendo reprisadas atualmente na Globo e no Viva: Laços de Família (2000) e Mulheres Apaixonadas (2003), respectivamente. Maneco, como é chamado o dramaturgo, ficou conhecido como o novelista do Leblon, bairro mais caro e nobre do Rio de Janeiro. As Helenas, suas heroínas — outra característica de Manoel Carlos — vivenciavam suas histórias nos círculos de elite, em um Brasil aristocrático de poucos privilegiados. Em um desses episódios aleatórios e involuntários com os quais me deparo, ouço a frase: “Pai, preciso tirar logo minha carteira de motorista. Não aguento mais andar de táxi”, disse a adolescente para seu papai. Surreal. Ao menos para mim. E para a esmagadora maioria da população também.

A frase é de Mulheres Apaixonadas, exibida na primeira metade da década passada. De lá para cá, o Brasil passou por transformações sociais — pude sentir e observar algumas delas — que possibilitaram uma ascensão de poder aquisitivo das classes C, D e E. Você pode até discordar dessa perspectiva e não pretendo me aprofundar em questões políticas, mas experimente observar a teledramaturgia desta última década. Observe como o enquadramento das temáticas mudou nas novelas. O universo teledramatúrgico burguês de Manoel Carlos e similares foi perdendo espaço e sendo substituído por obras, digamos, mais inclusivas, cujos eixos temáticos estão mais próximos das classes populares: Avenida Brasil (2012), Salve Jorge (2012), A Força do Querer (2017), Amor de Mãe (2019)… Isso não acontece por acaso. É a produção cultural acompanhando as mudanças sociais.

De Sassaricando a Haja Coração: corpolatria e culto à juventude aumentaram nos últimos anos?

Mas como a história não é linear e nem toda mudança é “positiva”, vamos lá… Assistindo à novela Haja Coração (2016), inspirada em Sassaricando (1987), fiquei surpreso ao ver Alexandre Borges no papel de Aparício, que era interpretado na obra original por Paulo Autran. O que me surpreendeu foi o fato de Borges ser visivelmente mais jovem do que Autran era quando fazia o personagem. Daí vi que alguns outros personagens da novela atual são interpretados por atores mais jovens do que os originais.

Resolvi passar para uma análise mais minuciosa (a quem chame isso de “falta do que fazer”, rsrs). Pesquisei as idades de algumas atrizes quando atuavam em ambas as obras (as idades estão entre parênteses): O trio de amigas Rebeca, Penélope e Leonora, interpretado em Sassaricando por, respectivamente, Tônia Carrero (65), Eva Wilma (54) e Irene Ravache (43), foi substituído em Haja Coração por Malu Mader (50), Carolina Ferraz (48) e Ellen Rocche (37). Somando e dividindo as idades das atrizes recentes, temos uma média de 45 anos, nove a menos que a média de 54 anos das atrizes originais em 1987. Isso em uma sociedade em que a expectativa de vida aumentou nos últimos anos. Não é curioso que vivamos mais, mas sejamos descartados e/ou desvalorizados mais cedo?

Daí achei que eu tivesse descoberto a pólvora com esse contraste de faixa etária entre as obras (que ingenuidade! Mas como eu disse anteriormente, não sou muito fã de novela), porém, quando fui procurar na internet sobre as duas produções e as diferenças de idade entre os atores, me deparei com uma excelente matéria que já fala sobre isso, que parte dessas diferenças para discutir a sociedade atual e a discriminação com as pessoas de mais idade, não só nas produções audiovisuais, mas no mercado de trabalho em geral, incluindo falas de um sociólogo, recortes de gênero e de classe. Matéria muito boa mesmo!

Se for verdade o que afirmo, que telenovelas servem mesmo como documento histórico ao retratar contextos sociais, gostos e ideias de uma época, Haja Coração, em comparação à obra oitentista que a inspirou, serve como um bom exemplo de nosso atual culto exagerado à juventude, de nossa corpolatria e do quanto esses aspectos sociais foram acentuados em um intervalo de tempo relativamente curto (dos anos 1980 para cá). O fato de a Globo estar reexibindo Haja Coração atualmente ao mesmo tempo em que Sassaricando pode ser assistida no canal Viva facilita que ambas sejam vistas em perspectiva comparada. Cada um pode tirar suas próprias conclusões sobre as mudanças sociais e nossos valores atuais, incluindo nossa relação com os mais velhos e nossa política de cuidados. Ou apenas se divertir com as tramas.

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Alexandre Campos é jornalista, cineasta e historiador, mestre em Mídia e Cotidiano (UFF), especialista em Sociologia Política (Ucam) e assessor de Comunicação no setor público.