Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O impacto social da mídia

Este é um tema muito discutido entre os estudiosos das ciências da Comunicação, que, tendo começado por admitir uma correspondência linear entre a ação da mídia e a da opinião pública, para a seguir concluir que a influência da mídia é temperada por outras influências, como o meio em que o cidadão leitor/ouvinte/telespectador está inserido, convergem hoje no reconhecimento da influência decisiva dos meios de comunicação na construção social da realidade, quer criando uma ‘agenda’ de temas de discussão, quer fornecendo as bases para essa discussão.

Esse fato cria, naturalmente, uma responsabilidade social da mídia – e também dos jornalistas, que não podem desvincular-se da obrigação de calcular os possíveis efeitos sociais dos seus atos.

Na verdade, se faz parte da obrigação do jornalista o compromisso com a verdade e a busca da impossível objetividade, nenhum de nós pode ignorar que os acontecimentos tal como os narramos não existem por si próprios, antes resultam da convergência do ocorrido com a forma como os percebemos – ou seja, que os jornalistas detêm um poder decorrente da linguagem utilizada, bem como na seleção de ângulos e fontes de notícia, participando assim na produção e reprodução de relações de poder.

Após a 2ª Guerra Mundial, muitos jornalistas aceitavam essa responsabilidade social, considerando que deviam fornecer ao povo a informação necessária ao debate político, através de um jornalismo explicativo, que contextualizava os fatos, e da criação de espaços plurais de debate de opiniões.

Em Portugal, na seqüência da liberdade reconquistada a 25 de abril de 1974, o Código Deontológico aprovado dois anos depois proclama que o jornalista deve ‘esforçar-se por contribuir para a formação da consciência cívica e da personalidade moral dos seus concidadãos, bem como para o desenvolvimento da cultura e da capacidade crítica do povo português, e não fomentar de qualquer modo maus instintos ou sentimentos mórbidos, tratando os assuntos escabrosos com respeito pela consciência moral da coletividade ‘.

Em 1983, opondo-se às ideias ultra-liberais, segundo as quais o jornalista seria simplesmente responsável perante os proprietários do órgão de informação em que trabalha, a Unesco defendeu, num texto que se pretendia plataforma comum e fonte de inspiração para os diferentes Códigos de Ética, que o jornalista é responsável ‘perante o grande público’, e a sua ‘responsabilidade social’ exige que ele atue em todas as circunstâncias ‘em conformidade com a sua própria consciência ética’.

O actual Código Deontológico dos jornalistas portugueses, aprovado em 1993, apela também para a consciência dos profissionais. O Artigo 5º estipula que ‘o jornalista deve assumir a responsabilidade por todos os seus trabalhos e atos profissionais’ e deve também ‘recusar atos que violentem a sua consciência.’

Essa referência à ‘recusa de atos que violentem a sua consciência’ lembra que, ainda que se não deva omitir a responsabilidade social dos proprietários dos órgãos de informação, os jornalistas, mesmo assalariados, mantêm uma margem de decisão suficientemente ampla para que possamos falar da sua ‘responsabilidade social’, do seu compromisso com o público.

Mas essa noção de responsabilidade social dos jornalistas não é, no entanto, pacífica. Como escreveu Mário Mesquita, muitos jornalistas ‘cansados da carga ideológica dos anos 70 e 80 concluíram que mais valia assumir realisticamente o contrato com a empresa midiática e esquecer as longínquas obrigações perante a sociedade’ .

Até porque são muitos os constrangimentos que pesam sobre o grupo profissional dos jornalistas em Portugal, nomeadamente:

** concentração dos meios de comunicação e a detenção destes por grupos econômicos que se orientam pelas leis de mercado e a procura do lucro;

** condições contratuais de precariedade e ausência de garantias;

** condições técnicas: aumento dos ritmos de produção e da velocidade de difusão, permitidos pelas inovações tecnológicas.

Na verdade, as novas tecnologias, cujos avanços pareciam favoráveis aos jornalistas, vieram revelar-se geradoras de constrangimentos, favorecendo uma velocidade que se opõe à tradicional tarefa jornalística de interpretação dos fatos sociais. Na televisão, impôs-se o ‘ao vivo’, com tudo o que pressupõe de incapacidade editorial do jornalista, de ausência de contextualização e de contraditório, de sobreposição da emoção à compreensão. E a concorrência entre cadeias de televisão transformou a velocidade, o ‘mostrar primeiro’, em valor-notícia, que se estendeu à própria imprensa escrita, tornando habitual o aparecimento de notícias sobre temas não totalmente investigados ou mesmo não confirmados, com a sugestiva explicação: ‘Se não déssemos, a concorrência iria dá-la’.

Ditar a agenda

As novas tecnologias trouxeram ao jornalista um outro constrangimento: a polivalência. Hoje, o próprio jornalista pode montar a sua peça, às vezes antes ainda de chegar à redação, tal como um seu colega trabalhando num jornal pode formatar o texto que acabou de escrever, com o número de caracteres pré-determinado pela chefia.

Para a administração, esta capacidade de polivalência significa a possibilidade de redução de pessoal e de maiores lucros. Mas, para o jornalista, essa capacidade de aliar a competência técnica à interpretativa pode significar uma consciência da urgência totalmente contraditória com o tempo necessário ao enquadramento/contextualização de uma notícia. A velocidade quadra bem com a imagem mítica do jornalista, mas coarcta-o na sua capacidade de mediador entre o acontecimento e o público, na própria capacidade de pensar.

E, a somar-se à procura do lucro pelos proprietários dos meios de comunicação, com correspondentes cortes nas redações e no tempo de investigação, faz com que cheguem ao público, vezes demais, temas insuficientemente investigados, às vezes tal qual foram produzidos pela agências de comunicação ao serviço de interesses comerciais ou políticos, sem que tenham passado pelo filtro crítico dos jornalistas.

Isto leva-me a ter uma posição de grande dúvida: que prioridade atribuem os meios de comunicação de massa às causas sociais e humanitárias? Perdoem-me o cinismo: a prioridade que a essas causas atribuam os senhores do mundo.

Estive nos Estados Unidos algum tempo antes da entrada das tropas norte-americanas na Somália. A Somália era uma constante nos noticiários das cadeias norte-americanas. Coincidência? Súbita consciencialização da administração norte-americana sobre o problema, depois de ouvir os noticiários? Ou preparação da opinião pública para a ação de Washington?

Deixo-vos a escolha. Sem esquecer que o massacre de Ruanda, esse, não interessou ninguém. Nem as milhares de crianças mortas na seqüência do boicote ao Iraque, consideradas meros danos colaterais – tão colaterais como os iraquianos que vão morrendo no conflito, que não logram ocupar nunca o mesmo espaço que os mortos da coligação. Para já não falar dos crimes cometidos ao longo das décadas de 70 e 80 na América Latina – que nunca lograram na grande mídia internacional o destaque dado aos boat-people vietnamitas ou a Timisoara. Ou de Timor, até que os manifestantes de Santa Cruz conseguiram morrer frente às câmeras de jornalistas ocidentais e também estes tenham sido atingidos…

O caso de Timor é paradigmático do impacto social da mídia e da importância que podem assumir na defesa de causas humanitárias. A morte dos manifestantes de Santa Cruz, enquanto rezavam orações católicas em português, criou um movimento de solidariedade com o povo de Timor Leste que lhe fora sempre negado enquanto a imagem da resistência timorense era de um partido de tendência comunista e permitiu o avanço no processo que levaria ao referendo. A abertura do território aos jornalistas portugueses, até aí impedidos de entrar em Timor, e que assim puderam testemunhar os massacres que se seguiram à vitória da opção independentista, permitiu uma cobertura até aí inexistente da questão timorense e deu origem a um fato novo – a quebra da ‘isenção’ jornalística por parte de dois grandes órgãos de informação, o DN e a TSF, que arrastaram todos os restantes numa onda de defesa de Timor Leste.

Não são, no entanto, muitas as causas que, por diferentes razões, unam todo um país da esquerda à direita. E, como Timor demonstrou, mesmo essa união dura um momento – depois, a mídia dedica-se a outra coisa, os políticos também. Como bem sabem os timorenses, Timor-Leste deixou de estar na moda.

E esse é um dos grandes problemas do impacto social da mídia: é que, como referi no início, eles marcam a agenda – mas deixam-se guiar pela sua própria agenda. No meio disto, há, certamente, jornalistas que logram ser ‘atores humanitários’ – por sorte, talento, ou quando a sua agenda coincide com outras agendas.

Sem ilusões

Uma jornalista do Público denunciou a existência da prática da mutilação genital feminina em Portugal, entre a comunidade imigrante. Como outros e outras denunciam a situação dos imigrantes em Portugal, o racismo, ou outras violações dos direitos humanos. Mas são pequenas ilhas num panorama onde a preocupação cada vez maior são as audiências e a quota de publicidade e uma agenda midiática que está longe de ser ditada por questões humanitárias

Basta pensar em Timor Leste: os timorenses pedem agora livros e professores de português, mas já passou o tempo de nos ocuparmos de Timor: são independentes, entendam-se. Ainda quando o queira, o jornalista não é um ator humanitário e os veículos de mídia só excepcionalmente são instituições de caridade.

Às pessoas envolvidas na luta pelos direitos humanos, na ajuda humanitária, resta estarem atentas, à espera de uma oportunidade de o seu tema se tornar subitamente ‘agendável’: ao fim de semana, quando as notícias são poucas. Ou quando uma história humana se torna suficientemente forte – uma apenas, porque todos sabemos que um morto é um drama e milhares uma estatística. E lembrarem-se que os jornalistas são muito sensíveis às tentativas de manipulação – e desconfiam de quem age por motivos cuja razão lhes escapa. Também não gostam de contar boas práticas: o lema da profissão é que ‘good news is no news’.

Resta, assim, pôr diariamente a imaginação no poder.

Mas, apesar do pessimismo da análise, não há que desesperar: afinal, muitas idéias minoritárias foram fazendo o seu caminho na mídia e são, hoje, consensuais. A dar razão a Antonio Machado: o caminho faz-se a andar. Só que, a meu ver, se deve fazer sem ilusões.

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Jornalista; este artigo resume sua intervenção no seminário ‘Os media e a cidadania global’, realizado em outubro, em Lisboa, Portugal, pela revista Fórum DC, com apoio da Fundação Avina