Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Telenovela em tempos de crise

A crise econômica internacional parece ter atingido a atividade televisiva em sua principal fonte de captação de recursos: o setor publicitário. Um contraste em relação a 2008, ano fervilhante para a teledramaturgia brasileira, por exemplo. Os efeitos são visíveis: na Europa, as principais emissoras – RTP, SIC e TVI – amenizaram seus orçamentos, diminuindo a produção de teleficção e passando a investir em programas de menor custo, como entretenimento e shows de realidade. O caso da RTP, uma TV estatal, é ainda mais grave: apesar de em 2008 ter anunciado uma arrecadação de 51 milhões de euros em receitas, sua dívida ultrapassa os 800 milhões.

No que diz respeito às vendas internacionais, a própria feira televisiva de Cannes, na França, conhecida por ser o maior mercado europeu de negócios audiovisuais, apresentou em sua última edição uma grande quantidade de formatos com custos pífios de realização, sobretudo concursos de auditório. No âmbito latino-americano, salvo a Record – cujas cifras provêm da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), sua mantenedora – as emissoras também têm optado pela diminuição de prejuízos, através do barateamento da produção ou a própria redifusão de programas, os chamados produtos de estoque.

Aumentam produtos reprisados

Nestes tempos, para as organizações cujo principal produto é a teledramaturgia – especialmente as redes brasileiras, argentinas e mexicanas –, o mínimo risco de perder audiência pode representar um enorme prejuízo. Caminho das Índias, da Globo, é um exemplo de telenovela que não veio para inovar, uma vez que grande parte de sua narrativa já foi explorada em outras tramas de sua autora, Glória Perez. O enredo mais parece uma versão hindu de O Clone, reproduzindo fielmente seus elementos – como a pastelaria dos indianos, que muito se parece ao bar de Dona Jura; ou os desencontros de Maya e Bahuan, que também remetem aos intermináveis vaivens de Jade (Giovanna Antonelli) e Lucas (Murilo Benício).

Temáticas da novela América também foram reaproveitadas, como o núcleo da religiosa Creuza (Juliana Paes), uma falsa moralista que adorava seduzir os homens. Enredo parecido se vê atualmente em Caminho das Índias com a impetuosa Norminha, que, mesmo com a excelente atuação de Dira Paes, ainda se trata de uma personagem requentada. No decorrer dos capítulos, outra pedra no sapato de Glória Perez foi o protagonista Bahuan. O ator Márcio Garcia, seu intérprete, sofreu rejeição por parte do telespectador e desde então tem aparecido menos que os demais personagens, ficando até dois capítulos fora do ar. Como a reviravolta do personagem pode representar riscos, seu novo norte será, nas palavras da autora, um homem ‘duro, implacável, que se deixa levar e dominar pelas exigências dos sentidos e pelas ambições materiais’.

Na Argentina, de modo geral, as emissoras aumentaram a quantidade de produtos reprisados. Tal corte de custos evidencia-se especialmente na programação da Telefé, a principal rede do país. A tradicional novela do prime time foi amputada da programação, em uma clara demonstração de que o mercado publicitário portenho não está disposto a viabilizar custos elevados. Em seu lugar entrou o programa Justo a Tiempo, típico game-show de perguntas e respostas. Exibida seqüencialmente, a ficcional Los Exitosos Pells teve seu final prolongado. A estratégia é capitalizar a emissora, frente ao possível fracasso de sua sucessora – outra novela, ainda em fase de produção.

Eliminando possíveis desacertos

A série nacional Casados con Hijos é veiculada em dois horários (ao meio-dia e às 14 horas), seguida pelas novelas Doña Bárbara, importada do México, e Amor en Custódia, que é nacional, porém outra reprise. A faixa das 17 horas, tradicionalmente dedicada às novelas infanto-juvenis da Cris Morena Group, até poucos dias atrás exibia filmes, majoritariamente norte-americanos, além do desenho animado Los Simpsons. No entanto, há uma semana passou a veicular a terceira temporada de Casi Ángeles, uma espécie de Chiquititas remodelada.

No vice-líder Canal 13, que é ligado ao grupo Clarín, a redifusão de produtos é em menor medida, mas em fortes doses: a novela Floricienta, produzida originalmente em 2005, tem início às 17 horas, terminando somente quando a Telefé encerra Casi Ángeles, por volta das 20 horas. Nas demais emissoras, a sobrevida do mercado publicitário é ainda mais evidente: Xica da Silva, produção brasileira de 1997, da hoje extinta TV Manchete, ocupa o principal horário do Canal 9, sendo que a emissora ainda reprisa as também brasileiras O Rei do Gado e Sinhá Moça.

Justamente a empresária Maria Cristina de Giacomi, à frente da empresa Cris Morena Group, foi quem se deu melhor em remotos tempos de crise da TV argentina. Sua produtora de conteúdo surgiu em meio ao colapso de 2002, no ápice da desvalorização do peso argentino – que chegou a 70%, provocando uma forte fuga de anunciantes. O know-how de Morena (que é ex-cônjuge de Gustavo Yankelevich, diretor de programação da Telefé por mais de dez anos) colaborou suntuosamente para eliminar possíveis desacertos em suas realizações, avançando nas questões relevantes para concepção de um produto televisivo. Hoje, oito anos depois, Morena ainda colhe frutos.

Desafio será comover anunciantes

Com a redução de anunciantes, as emissoras do país novamente buscam a terceirização, apostando em produtos independentes – e, de longe, mais baratos – para alavancar sua audiência. É a chamada plataforma horizontal, ou seja, quando um canal de TV se limita à exibição do produto, não participando de sua produção. Algo comum em diversos países, mas ainda pouco praticado por emissoras latino-americanas.

No México, principal atingido pela crise, o tradicional intervalo de seis minutos do Canal de las Estrellas (emissora do conglomerado Televisa) foi substituído por inserções de três minutos, sendo que nesse tempo ainda são veiculados dois institucionais do próprio grupo. A empresa não obteve lucro no quarto semestre de 2008, embora tivesse registrado ganhos de 206 milhões de dólares no mesmo período de 2007. Com a desvalorização do peso mexicano, as dívidas negociadas em moeda norte-americana se tornaram onerosas. Em uma clara tentativa de suavizar seu prejuízo, a Televisa tenta ganhar mercado em países que, até então, não faziam parte de sua estratégia de expansão. É o caso de recentes contratos firmados com canais da China e França.

Um investimento errôneo também está pesando nos ombros do grupo mexicano. Após perder judicialmente ações do canal Univisión, sua subsidiária nos Estados Unidos, em uma batalha judicial que se estendeu durante anos, adotou a estratégia de gerar receita a partir dos milhares de roteiros de telenovelas que estão em seu acervo. Mas apesar de ser um bom negócio, a comercialização de um roteiro não é mais vantajosa do que a venda de uma novela mexicana integral (dublada e finalizada, pronta para ser exibida). Isto porque, no primeiro caso, é necessário remunerar autores, adaptadores e, muitas vezes, até empresas distribuidoras que intermediaram a negociação.

Neste difícil momento para a telenovela latino-americana, a ordem é diminuir possíveis riscos. Em outras palavras, abolir experimentações e novos formatos. O Brasil, apesar do atual reaproveitamento de temáticas e produtos de estoque, mantém-se continuamente na produção de telenovelas, tendo os altos investimentos da Record como exceção. A TV argentina se salva por ser a maior fonte de sustentação de teleficção da América Latina, através de seus scripts concebidos no idioma espanhol. E quanto às novelas mexicanas, o desafio será comover os anunciantes do país até que a crise seja amortizada. Para a Televisa, especialista em lágrimas e falta de inovação, isso não será tarefa difícil.

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Jornalista, mestrando em Ciências da Comunicação na Unisinos, Porto Alegre, RS