A Constituição Federal definiu, graças a uma forte mobilização de trabalhadores da Comunicação, liderados pelas federações de Jornalistas, Radialistas e Telefônicos, que a produção educativa, cultural e jornalística nas emissoras de rádio e televisão deveria ser regionalizada. Esse dispositivo, previsto no artigo 221, nunca entrou em vigor devido à falta de uma regulamentação infraconstitucional, que nunca ocorreu.
Não foi por falta de iniciativas. Várias projetos legislativas propuseram parcelas mínimas que deveriam ser produzidas pelas emissoras geradoras. A pressão das grandes redes midiáticas e a chamada bancada da mídia nunca permitiram que qualquer desses projetos se materializasse. Pelo contrário: no rádio, onde não existe legalmente a categoria de emissora repetidora e todas são geradoras — portanto, obrigadas a produzirem seus conteúdos —, passou-se a admitir a mesma configuração de rede existente para as televisões. As estações regionais de rádio passaram a ser simples retransmissoras da produção do centro-sul, notadamente, do Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília.
Essa realidade pode se alterar agora em decorrência de uma canetada do Conselho Administrativo de Defesa Econômica – Cade. O órgão vinculado ao ministério da Justiça, e que tem poder de avaliar a existência de cartéis e monopólios na economia brasileira, acaba de realizar o estudo analisando os segmentos de TV aberta e por assinatura, segundo informa Fernando Lauterjung, no site TelaNews.
Avaliando as chamadas “condutas anticompetitivas”, o Cade aponta que a estruturação em redes, para efeitos de concentração, “é negativa porque limita a variedade de conteúdo, sendo transmitida menos programação do que existiria, se cada geradora fosse diretamente responsável pelos produtos audiovisuais transmitidos”. Com certeza, uma maior pluralidade na produção de conteúdos geraria mais emprego, faria a renda da indústria cultural circular onde hoje não circula e abriria oportunidades para profissionais que não migraram para os polos produtores.
Segundo o Cade, a concorrência pela audiência das programações ocorre entre as cabeças de rede de abrangência nacional. “Historicamente, a última entrada significativa no mercado de cabeças de rede nacionais se deu em 1999, com a entrada da Rede TV” — que convenhamos não acrescentou muito na quantidade e qualidade de novos conteúdos televisivos. “Portanto — continua o relatório —, tal mercado não é dinâmico.
O mercado é também altamente verticalizado, uma vez que para se tornar uma cabeça de rede nacional, a empresa deve atuar simultaneamente nas etapas de transmissão de conteúdo, programação e produção de conteúdo”, aponta o documento do Cade.
Aqui, embora o Cade não faça menção, há de se lembrar outro dispositivo constitucional até hoje desrespeitado. Trata-se da obrigação de estimular a produção independente que objetive a divulgação da cultura nacional e regional, conforme estabelece o inciso II, do artigo 221.
A bandeira da regionalização, levantada na década de 80 pelos trabalhadores do setor, tinha como pano de fundo preservar as diferenças culturais regionais, abrir a porta a valores locais, evitar a pasteurização da informação, centrada nos polos econômicos e fomentar uma maior geração de emprego e renda.
As gerações que nasceram depois do advento das transmissões via satélite não vivenciaram os telejornais locais que tratavam de todos os temas: locais, nacionais e internacionais. Não havia jornal em rede nacional. Mesmo a rede Globo contava com âncoras em diversas praças que apresentavam as notícias de seus estados.
Tão pouco viram os programas musicais e humorísticos das diversas cidades. Nomes como Chico Anísio, Falcão, Renato Aragão e Tom Cavalcante, dentre tantos outros, foram descobertos pelas emissoras locais de TV. Exemplo interessante de conteúdo local era o programa do Titio Darlan, que nos anos 60, com um flip sharp e pincel atômico desenhava histórias no papel. A técnica foi sucesso na Capital Federal. Muito tempo depois, Daniel Azulai se notabilizou nacionalmente ao comandar um programa bem parecido com o do Titio Darlan. A diferença básica é que a TV Cultura de São Paulo transmitia para todo o Brasil.
Na música, valores como os de Caetano, Gil, Gal, Bethânia, Alceu Valença, Djavan, mais recentemente, Cassia Eller, Paralamas do Sucesso, dentre tantos outros, só conseguiram vingar depois que migraram para o Rio e São Paulo para lá obter a visibilidade que só as emissoras cabeça de rede tem condições de propiciar.
Mesmo no jornalismo, grandes nomes, como os de Marcelo Canellas, Caco Barcelos, Ananda Apple, tiveram que abandonar os Pampas em busca de um mercado mais forte. Do cerrado do Planalto Central, muita gente também foi buscar melhor posicionamento no Rio e São Paulo. Vide os casos recentes de Poliana Abrita e Tadeu Schmidt, mas no passado teve também Amália Rocha, Mauro Naves, Ana Paula Padrão, Leilane Neubarth, dentre vários e várias outras.
Para as empresas é muito mais barato produzir e mais fácil de gerir um só conteúdo, uma só grade de programação, e difundi-la nacionalmente. O custo desse modelo é a redução da oferta de trabalho, da diversificação cultural e informativa. Além disso fortalece uma agenda temática formulada a partir de uma única perspectiva. Com as grandes redes, o caboclo da Amazônia sabe mais das enchentes do Tietê do que sobre os igarapés amazônicos.
Programação esportiva
Os efeitos maléficos também se materializam no campo dos conteúdos desportivos, em especial na pluralidade informativa e de entretenimento. Nos anos de 1970, quem morasse em Brasília podia acompanhar o futebol do Rio, na Globo, o de São Paulo, na Bandeirantes, e o do Rio Grande do Sul, na TV Nacional — hoje TV Brasil — já que os generais de plantão apreciavam o futebol gaúcho. Hoje, em dia, na maioria dos casos, o jogo é um só para todo o Brasil e o espectador é obrigado a torcer ou a secar um time de uma distante cidade que não lhe diz nada culturalmente.
O Cade aponta como condutas anticompetitivas os contratos de direito de transmissão de eventos esportivos. “Principalmente com relação ao abuso de poder econômico, abuso de posição dominante e acordo de exclusividade”. “Há ainda um conjunto de restrições verticais que podem prejudicar a concorrência, principalmente, quando são estabelecidas por programadoras que detém portfólio com canais esportivos. Tal fato pode acarretar um fechamento de mercado para programadoras de menor porte ou ainda acarretar efeitos negativos no mercado de empacotamento, ao aumentar o poder de barganha das programadoras de grande porte”, aponta o documento.
Não é sabido até onde o Cade pretende levar suas conclusões. Se pretende pautar uma nova normatização que priorize a regionalização da produção televisiva. O momento atual, em que o Palácio do Planalto tem se bicado com a maioria dos grandes conglomerados midiáticos, pode ser um elemento motivador para que isso ocorra e o Executivo venha propor uma nova regulamentação.
Pensar num país com as dimensões do Brasil com um só cardápio de conteúdos midiáticos é ruim e joga contra a criatividade regional. Entretanto, mudar de supetão as regras da produção teleradiofônica, principalmente depois dos efeitos econômicos da Covid, pode ser nocivo à maioria dos meios de comunicação e levar alguns à sucumbência.
Para não ser surpreendido, o Congresso Nacional deveria tomar à frente esse debate. Junto com a regionalização, a exemplo do que ocorre em países como a França, deve-se pensar numa lei que regule a distribuição das verbas publicitárias, para que as mídias locais, regionais e nacionais sobrevivam. Lá, canais nacionais de TV não veiculam propaganda do varejo. Essa é uma publicidade que cabe às mídias locais, impressas, radiofônicas ou televisivas. Mas esse é um debate mais profundo, que fica para outro artigo.
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Chico Sant’Anna é jornalista, documentarista e pesquisador em Comunicação, com Doutorado pela Universidade de Rennes 1 – França. Durante a Constituinte, era vice-presidente Regional da Federação Nacional dos Jornalistas – Fenaj, tendo atuado diretamente nas gestões para a redação do Capítulo da Comunicação Social, na Constituição de 1988.