Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Carinho ou assédio, estupro ou sexo consentido?

“A guerra só é vencida pela determinação dos combatentes” .
— Tolstoi

Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Só pode responder a estas questões a mulher que estava em cena.

No caso do afago mais recente, Isa Penna, 29 anos, deputada estadual pelo PSOL em São Paulo que se assume ecossocialista, feminista e bissexual, reconhece assédio no carinho de Fernando Cury da Cidadania mês passado. Há 48 assinaturas para análise do caso em plenário e o partido tenta expulsá-lo mas Thaíssa de Moura Guimarães acabou de suspender a ação.

A juíza da 20ª Vara Cível de Brasília reconhece que o vídeo espalhado nas redes “deixa claro a conduta à qual se refere o procedimento ético”. Mas naquela embolada linguagem jurídica a doutora acrescenta: “deve haver pormenorização da conduta para ensejar oportunidade de defesa e contraditório ao requerente (Cury), princípios constitucionais que também devem ser observados em procedimentos administrativos”.

Quem entender o que a juíza quis dizer ganha direito a uma dose da vacina “do Dória” aprovada pela Anvisa neste domingo. Talvez, que Cury teve uma intenção diferente ao apalpar o corpo de Isa na altura dos seios enquanto a deputada conversava com o presidente durante um misto de votação do orçamento da Casa e confraternização de fim de ano. Um pouco antes Cury conversa com o colega Rodrigo Moraes dizendo algo que Moraes tenta impedi-lo de fazer, mas não consegue. E Cury se desvencilha da mão do colega e vai apalpar Isa. Aposta de macho?

Na entrevista concedida à Folha de S.Paulo (17/1/21) Isa diz o que a maioria das mulheres em posição de destaque já sentiram. “Se você é mulher e faz política, sabe que vai sofrer assédio”. Tem algumas opções de como você chegou até lá: de quem é filha, de quem você é esposa e, se não for nenhum dessas, você dormiu com alguém.

Contribuiu para o assédio o vídeo postado pela deputada no Instagram dançando funk. Isa dança funk, é advogada e deputada. “A gente quer ser livre, pelo amor de Deus”, diz, afirmando a solidariedade a mulheres inclusive de partidos de direita como Joice Hasselmann (PSL), que posou de biquíni e foi criticada, e Janaína Paschoal (PSL), acusada de “se sentar no colo de João Dória”.

Dois casos recentes envolveram Mariana Ferrer num julgamento escandaloso que inventou o estupro culposo, e Amanda Audi noutro julgamento que inocentou o acusado a tal ponto que ele ameaça processar o veículo que relatar a história — como aconteceu com a matéria publicada no site da Associação Brasileira de Imprensa. Aqui a dúvida não é sobre carinho ou assédio, é entre estupro e sexo consentido. Eles dizem que houve consenso, elas se sentiram estupradas.

Este é o país da mulheres-maravilha, do silicone nas nádegas e nos seios, das plásticas até nas genitálias, das carícias que destroem inocências, do abuso sexual infantil, de estupradores que em casos extremo arrancam os olhos das vítimas, jogam ácido, desfiguram o rosto. De homens que, abandonados, matam. Que batem “porque elas gostam”, que dominam porque “é o papel do macho”, que vão em frente porque “quando elas dizem não é porque querem”. Mulher gosta de apanhar, já dizia Nelson Rodrigues.

Mulheres são serpentes, tentação, sedução, feiticeiras. Na Índia, não faz muito tempo, as mulheres estavam tão cansadas de apanhar que um grupo delas, enfurecido, invadiu uma loja de bebidas na cidade de Abdulah Purmet, jogou tudo na rua e raspou a cabeça dos homens embriagados que encontraram no bar.

Houve o caso de Elise Araújo em 2012 que contratou um detetive para descobrir se era traída, então aguardou o melhor momento para atirar em Marcos Kitano Matsunaga e, no dia seguinte, esquartejar o marido ainda vivo. Ali havia ainda o interesse pela fortuna do ex-diretor executivo da Yoki. Mas são relativamente poucos os casos de mulheres que assassinam pelas costas o amante que vai embora como Norma Desmond (Gloria Swanson) fez com Joe Gills (William Holden) em Crepúsculo dos Deuses (Billy Wilder,1950). Mais corriqueiros assassinatos como o de Elisa Samudio pelo ex-goleiro do Flamengo, Bruno em 2010 — o corpo de Elisa, que reivindicava uma pensão maior para o filho, nunca foi encontrado.

Até 1972 eram mais comuns atitudes como a mulher da música de Chico Buarque, do mesmo ano, Atrás da Porta “… me debrucei sobre teu corpo…sem carinho, sem coberta/no tapete atrás da porta/reclamei baixinho” — esta letra a censura da ditadura deixou passar, cortou apenas “nos teus pelos”. Depois as mulheres foram mudando e a confiança mesmo veio depois dos 38 pontos aprovados na 4ª Conferência da Mulher em Pequim em 1995 para uma plataforma de ação.

Mas ainda temos de olhar com inveja para países como a Argentina que acabam de aprovar o direito de aborto, o direito das mulheres ao seu corpo.

E ainda são raras as mulheres que conseguem provar que estupro, não sexo consentido, ou assédio, não carinho. Carinho ou amor as mulheres sabem quando querem e recebem, aliás precisam às vezes mais deles do que de sexo. Expulsar ou não Fernando Cury do partido é uma decisão interna.

Mas já é tempo de saber distinguir uma coisa da outra.

O país dos absurdos

Por mais absurdo que esta discussão ainda tenha espaço no século XXI, não podemos esquecer de que vivemos no país dos absurdos.
Monica Calazans, 54 anos, enfermeira negra do UTI do Instituto de Infectologia Emílio Ribas em São Paulo, é a primeira brasileira vacinada. Mas no Brasil de 8 milhões de infectados e 200 mil mortos ainda ecoa as estratégias do caos do presidente e seu general-ministro da Saúde pouco antes de perderem a guerra contra a vacina “do Dória e da China”.

“Marcos Pontes (Ciência e Tecnologia) trabalha em uma vacina brasileira. Eu não sei onde está sendo construída a vacina”. “Ficar em casa é coisa de covarde”. “Tem que deixar de ser um país de maricas”. “Lamento as mortes…tem de enfrentar como homem , não como moleque”. “Todos nós vamos morrer um dia”, frases de Bolsonaro.

“Recomendamos tratamento precoce de ivermectina, hidrocloroquina e azitromicina”, diz Pazuelo a pacientes que morriam sufocados por falta de respiradores em Manaus.

Um estrondoso panelaço varreu o país neste fim de semana o que comprova Tolstoi na frase do príncipe André em Guerra e Paz (1865-69): “A guerra só é vencida pela determinação dos combatentes”

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Norma Couri é jornalista.