Há alguns dias Erika Hilton, 27 anos, vem denunciando ameaças sofridas por anônimos como um sujeito que se identificou apenas como “garçom reaça”. Foi logo depois de Samara Sosthenes, 33 anos, receber na sua casa tiros disparados por alguém de capacete que conduzia uma moto. Alguns dias antes, a casa de Carolina Iara, 28 anos, também foi alvejada. Em outra época os ataques passariam despercebidos na sociedade pela invisibilidade dessas três mulheres — como até hoje ninguém sabe quem matou Marielle. Érica, Samara e Carolina são trans e os três atentados ocorreram na semana da Visibilidade Trans — dia 29 de janeiro foi o Dia da Visibilidade Trans. E por que esses casos foram parar na mídia, alertando a população?
Porque as três são parlamentares da Câmara de Vereadores de São Paulo, todas do PSOL. Samara e Carolina são co-vereadoras, a primeira do Quilombo Periférico, a segunda da Bancada Feminista. Mas foi com Erika Hilton que o Brasil começou a mudar no dia 15 de novembro do ano passado quando ela se elegeu a primeira mulher trans a ocupar uma cadeira na Câmara Municipal de São Paulo. No total 30 pessoas trans foram eleitas no Brasil em 2020, número quatro vezes maior do que em 2016. Erika foi a vereadora mais votada do Brasil, 50 mil votos. Mas a violência continua.
Nesta segunda-feira, 01/02, Erika foi também a primeira mulher trans a ser entrevistada no Roda Viva da TV Cultura. Ouvir seu discurso articulado, e admirar sua elegância e bom gosto, dá o que pensar sobre quantas erikas estão perdidas para a prostituição e o crack debaixo de nossos olhos. Este é o foco da vereadora paulistana, mostrar o caminho da construção para se tornar uma pessoa. “Em nossas narrativas só aparecemos como vítimas, reforçando uma desumanização, o sentimento da pena, só aparecemos sob essa lente quando o que queremos é sair na rua à luz do dia, ir ao parque, ao teatro, ao restaurante, ter direito à cidade sem sermos ridicularizadas pelas famílias brasileiras”. É comovente ouvir Érika pedir “um beijo na boca”, transexuais estão acostumados apenas a ter o corpo usado.
Mas como ela diz, só quem sabe a dor do racismo e da transfobia é quem carrega o estigma na própria pele. O lugar ainda é o submundo, o lugar das drogas, da manchete policial , das agressões nas redes sociais (“seu cabelo não serve nem para limpar panela, traveco”), de lutar para sobreviver aos 30 anos. “Não queremos pena, queremos existir, somos humanas, sou irmã, filha, neta, não quero ser vista apenas dentro do universo pornô onde nos atiram”.
Os assassinatos de transsexuais cresceram 41% no Brasil. No ano passado sob o governo Bolsonaro, 174 mulheres trans foram assassinadas segundo a Associação Nacional de Travestis e transexuais do Brasil, ANTRA. Dessas, quase 80% eram negras, 29 só em São Paulo. O Brasil também se tornou recordista em mortes de ativistas de Direitos Humanos, foram 57 só em 2017. Medo?
O lema de Erika é não ter medo, aprendeu com o movimento negro a ter força para resistir e sair do crack, das esquinas, lutar pela representatividade no Congresso. “E para tirar esse genocida do poder”, diz a vereadora.
Érika gosta de se identificar com todos os preconceitos que concentra, “mulher, negra, trans e periférica”, e não esconde a identidade que lhe deixou mais marcas, a de prostituta. Em 2020, a mais votada entre as candidatas mulheres foi a prova viva de que os nossos ministros estão equivocados. O da Educação, Milton Ribeiro, surpreendeu-se quando foi intimado a explicar à Procuradoria Geral da República por que disse que a homossexualidade não é “normal” e “ocorre em famílias desajustadas”: “Estou defendendo a Bíblia”.
Como seus pares, Erika foi forçada a frequentar a Igreja evangélica na casa dos tios que acreditavam, o “mal” seria curado por Deus. “Minha família tinha medo do que pudesse vir a acontecer com meu corpo”, ela justifica, e reforça a necessidade da informação, da não negação. “Para que outros não tenham de passar por isso”. Provou o kit gay repressor oferecido pelo governo, enfiaram Érika na Igreja evangélica cheia de preconceitos mas fugiu. Ao contrário, acabou se reconhecendo do outro lado da curva da vida, numa das esquinas mais famosas de São Paulo, a da Mourato Coelho dos travestis.
Passou anos na rua como prostituta até cansar de tanta violência. Uma de suas colegas, Carolina Iara de Oliveira, hoje cientista social, que ainda criança foi submetida a várias operações — segundo os médicos para “virar homem” — contraiu AIDS. Erika acordou em tempo, resolveu voltar para a casa da mãe, aproveitar a família e estudar. No cursinho de pré-vestibular descobriu um caminho: a luta na política. Usou toda revolta acumulada por anos de repressão para integrar a Bancada Ativista do PSOL em 2018 e ganhar a primeira vitória numa candidatura coletiva.
A partir daí usa toda sua capacidade de persuasão, que é grande, para tornar o Brasil mais receptivo às diferenças, e despertar a comunidade LGBTI para a dignidade de seus corpos.” O lugar desse corpo não é o flagelo, é o direito a emprego, renda, moradia, educação, cultura, cuidados sanitários e não apenas hormônios. E chegar à disputa eleitoral porque mais de nós faria toda diferença na mudança da legislação e dos códigos sociais”.
“Nós, corpos negros, trans, periféricos, podemos existir e atuar para além dos espaços que nos foram sentenciados, como as esquinas, o cárcere, o manicômio”.
“Não queremos outra Marielle Franco!”.
Erika fala da importância do afeto para que outras representantes da sua comunidade consigam dar o salto gigante que ela deu. Chama atenção da sociedade enclausurada “no pacto narcisista da branquitude”. Lastima os resultados “ perigosos “ da eleição da Câmara mas não retrocede, “precisamos avançar”. Ainda não sabe se vai concorrer ao governo federal em 2022, mas Erika seria uma pena não vê-la em Brasilia.
P.S.: Para comemorar a Semana da Visibilidade Trans o Canal Brasil passa amanhã, dia 4/2, às 18h10, o documentário Maria Luíza, primeira transexual das Forças Armadas do Brasil que foi “aposentada por invalidez”, depois de uma carreira brilhante com medalhas e diplomas, quando comunicou na Aeronáutica em 1998 sua transição de gênero. Duas décadas depois o STJ decidiu que ela passou por discriminação e ordenou a restituição de seus direitos.
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Norma Couri é jornalista.