‘Jornalismo não é ciência, na melhor das hipóteses pode ser arte. Depende do talento inato de quem o pratica, da qualidade de suas leituras.’ [Mino Carta]
‘Para ser jornalista é preciso ter uma formação cultural sólida, científica ou humanística. Mas as escolas são precárias. Como dar um curso sobre algo que nem consigo definir direito? Trabalhei quarenta anos em jornal e acho muito difícil definir o que meia dúzia de atrevidos em Brasília definem como curso de jornalismo. Foi o que fez o patife do Gama e Silva (ministro da Justiça do Governo Costa e Silva), que elaborou a lei para tirar os comunistas dos jornais’ [Cláudio Abramo (1923-1987)]
Eu ainda acredito que o jornalismo é uma profissão intelectual que se escora no dom do espírito. A Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas), seus sindicatos afiliados, os professores e alunos de Jornalismo querem argumentar até a morte que a obrigatoriedade do diploma específico é sinônimo de jornalismo com ética e qualidade.
Daniel Cornu, professor do Instituto de Jornalismo e Comunicação da Universidade de Neuchâtel, de Lausanne, e diretor do Centro Franco-Suíço de Formação de Jornalistas, de Genebra, deixa claro o que é o jornalismo:
‘O jornalismo é uma `profissão aberta´, que não exige formação específica ou diploma. Sua definição é tautológica: é considerado jornalista quem exerce sua atividade principal na imprensa escrita ou nos meios de comunicação audiovisuais. Mais precisamente, são reconhecidos como jornalistas os agentes da mídia, independentemente dos meios ou técnicas de expressão utilizados, que satisfaçam três critérios: a concepção e realização de uma produção intelectual, uma relação deste trabalho com a informação, além do critério de atualidade.’
Oferta é maior que a demanda
A obrigatoriedade do diploma de jornalista, imposta durante o período ditatorial por uma junta militar, baseada no AI-5, se por um lado deu uma moralização na profissão, afastando picaretas que se faziam de jornalistas, por um outro provocou o surgimento desenfreado de cursos de Jornalismo, muitos sem qualidade, tudo por causa da reserva de mercado.
É o que aponta o jornalista português naturalizado brasileiro Carlos Chaparro, doutor em Ciências da Comunicação e professor de Jornalismo na Escola de Comunicações e Artes, da Universidade de São Paulo em um artigo no site Comunique-se:
‘Reconheça-se, entretanto: ao imporem a obrigatoriedade do diploma como instrumento de controle no ingresso na profissão, e ao garantirem seriedade ao instituto do provisionamento para os que de fato trabalhavam como jornalistas, os sindicatos conseguiram expulsar da profissão quem nela estava apenas pelas benesses que a carteirinha de jornalista garantia. Não sei quantos, mas não foram poucos os advogados, os deputados, os padres e os empresários que, graças à obrigatoriedade do diploma, perderam a carteirinha de jornalista e as benesses que ela garantia. Ocorreu, portanto, um banho de moralização na organização da profissão. Porém, à custa de alto preço: a proliferação descontrolada dos cursos de jornalismo, muitos deles sem qualidade, sob o estimulo da enorme demanda garantida pela reserva de mercado.’
A reserva de mercado para diplomados em jornalismo já não é mais garantia de emprego nos meios de comunicação em virtude da oferta ser maior que a demanda. Segundo dados do Censo do Ensino Superior de 2005, existiam 497 cursos superiores de jornalismo e foram diplomados 28.185 alunos. Em junho de 2005, havia 35.322 jornalistas com carteira assinada no Brasil. Muitos que se formam nas escolas de comunicação acabam exercendo outras funções diversas do jornalismo por não encontrarem emprego.
‘Foi importante, mas não é mais’
Muita gente é formada em jornalismo, mas é incapaz de executar uma entrevista. Muitas pessoas não levam jeito para a profissão e fazem jornalismo ou por pura vaidade pessoal ou pela ambição de trabalhar na TV e chegar a ser o William Bonner ou a Ana Paula Padrão. Mas são poucos os jornalistas que chegam a esse topo da carreira. Enquanto não formados, mas com o registro precário, fazem ótimas reportagens. O psicólogo e policial civil do Distrito Federal, Luciano Porciúncula Garrido, analisa quais são os reais interesses da Fenaj e dos sindicatos afiliados para a defesa da obrigatoriedade do diploma específico:
‘Nesse particular, as entidades representativas de classe continuam inarredáveis. Insistem na importância da graduação, com as alegações as mais diversas, com ênfase especial sobre um possível declínio na qualidade do exercício profissional. E como não poderia faltar um pretexto ideológico, sugerem ainda que a abolição do diploma atende a uma demanda patronal, cujas preocupações – segundo afirmam – resumem-se invariavelmente a interesses comerciais. Mas o arrazoado das entidades classistas possui também o seu lado, digamos, comezinho. Atenta aos interesses corporativos, esmeram-se em manter uma cômoda e benfazeja reserva de mercado. O brasileiro, como se sabe, sempre foi avesso a ambientes competitivos, e esquiva-se da livre concorrência com uma eficiência – essa, sim – bastante competitiva. No Brasil, os monopólios e privilégios compõem a ordem natural das coisas, e são preservadas com ares de clausulas pétreas (bem entendido: sempre em favor de uma minoria organizada, e em detrimento de uma maioria silenciosa).’
Segundo Ivana Bentes de Oliveira, diretora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em entrevista à IHU Online, a obrigatoriedade do diploma está atrelada à legitimação dos sindicatos. E ressalta que as escolas de comunicação devem vender qualidade e não reserva de mercado:
‘Acredito que o diploma represente uma reserva de legitimação dos sindicatos. É claro que os sindicatos tiveram uma importância histórica nas lutas políticas e vão continuar a ter, mas também considero que devemos passar por um momento de mudança dessa mentalidade, porque quem faz jornalismo não é só jornalista. Nós temos outros grupos sociais produzindo jornalismo. (…) Creio que o diploma já foi importante, mas não é mais. As escolas de comunicação precisam vender qualidade, e não reserva de mercado para um determinado profissional. (…) Se a exigência do diploma acabasse amanhã, os cursos de comunicação continuariam iguais. Os cursos que fazem a diferença continuam formando profissionais de qualidade. O que muda e o que acaba são os cursos que realmente vendiam o diploma.’
‘Restrições devem ser eliminadas’
No que tange ao corporativismo dos jornalistas e da organização sindical, cito um trecho de um artigo do jornalista Almir da Silva Lima:
‘O pior, no entanto, é que, em regra geral, os jornalistas, por não terem consciência sindical e de classe, acabam se alienando e adotando a douta ideologia corporativista de considerar o diploma universitário como sinônimo de vocação e principalmente competência profissionais.’
Ele ainda acrescenta que: ‘Infelizmente, os jornalistas somente `reivindicam´ uma espécie de reserva de mercado e a se organizar em sindicatos e federações separados dos radialistas e demais trabalhadores das empresas de jornalismo ou comunicação social, sobretudo, das indústrias gráficas.’
Faltou citar que os repórteres cinematográficos, repórteres fotográficos e diagramadores são discriminados pelos demais jornalistas em virtude de não possuírem diploma de jornalismo.
O diploma de jornalismo tinha que ser um diferencial para disputa com mais possibilidades de uma vaga no mercado aberto. Na verdade, não existe diploma de jornalismo, mas diploma de comunicação social com habilitação em jornalismo.
Além do Brasil, o diploma de jornalismo para o exercício da profissão é obrigatório em outros 13 países, em sua maioria, em desenvolvimento e com pouca tradição democrática. São eles: África do Sul, Arábia Saudita, Colômbia, Congo, Costa do Marfim, Croácia, Equador, Honduras, Indonésia, Síria, Tunísia, Turquia e Ucrânia. Entidades internacionais como o Comittee to Project Journalists e a Repórteres Sem Fronteiras vêem a obrigatoriedade do diploma de jornalismo como uma arma de cerceamento da liberdade de imprensa. A World Free Press Comitee, em 1987, lançou a Charter for a Free Press. Naquele ano, entidades jornalísticas de 34 países reunidos em Londres estabeleceram 10 princípios para garantir a liberdade de imprensa no mundo. O nono diz explicitamente: ‘As restrições por meio de regulamentação ou de outros procedimentos de certificação ao livre acesso ao campo do jornalismo ou sobre sua prática devem ser eliminadas.’
‘São mais conservadores que os patrões’
Em compensação, nesses países não existe a obrigatoriedade do diploma. A concepção que vigora nesses países é de que não pode haver impedimentos para qualquer cidadão não só ingressar no jornalismo, mas também montar o próprio jornal. São eles: Alemanha, Argentina, Áustria, Chile, China, Costa Rica, Dinamarca, Espanha, Estados Unidos, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Hungria, Itália, Japão, Luxemburgo, Peru, Polônia, Portugal, Reino Unido, Suécia, Suíça e em vários outros. Nessa lista estão, em sua maioria, países desenvolvidos e alguns em desenvolvimento.
O ensino superior ainda é privilégio para poucos no Brasil, mesmo com cotas nas universidades e ProUni. Muitas pessoas anseiam exercer o jornalismo, mas por reveses da vida, não puderam fazer um curso superior na área. Em São Paulo, na USP, Jornalismo é mais concorrido que Medicina.
Os militares transformaram uma profissão de cunho intelectual e artístico numa profissão técnica. Há um culto exacerbado ao bacharelismo (onde só é considerado jornalista quem tem diploma) e ao academicismo (onde somente na academia se aprendem os fundamentos técnicos para ser um bom jornalista). Conseguintemente, a profissão ficou elitizada, restrita a uma classe média. O jornalista Paulo Henrique Amorim afirma isso, em entrevista ao site Vermelho:
‘Agora só existe jornalista de classe média – não tem mais um proletário nas redações. Quando comecei a trabalhar em jornal, trabalhei com muitos proletários e filhos de proletário. E isso não tem mais – é tudo mauricinho. E eles próprios são mais conservadores que seus patrões.’
‘Por um projeto para a transformação da sociedade’
Apesar de não alimentar a menor simpatia pelos seus comentários na área política, cito uma declaração de José Nêumanne Pinto, colunista do Estadão e comentarista de política da Rádio Jovem Pan e do SBT. Ele afirma que a obrigatoriedade do diploma de jornalista provocou o emburrecimento dos jornalistas, não pela faculdade, mas pela reserva de mercado para os diplomados desta profissão:
‘Qual a importância da obrigatoriedade dos cursos superiores de Jornalismo? Infelizmente a profissionalização das redações tem coincidido com uma queda vertiginosa da média de inteligência de seus freqüentadores, et pour cause, de seus produtos. Parte relevante desse `emburrecimento´ deve-se não à existência de cursos superiores de Jornalismo, pois isso seria até um contra-senso, mas, sim, à estulta reserva de mercado para os diplomados nesses cursos. Reservas de mercado levam à padronização por baixo e foi isso que aconteceu nas redações dos meios de comunicação desde que a reserva de mercado para os diplomados em comunicação foi imposta pela ditadura militar, numa espécie de busca de legitimidade na ilegitimidade oposta. É uma bênção que haja tantos cursos superiores de jornalismo no País. Mas uma maldição que apenas eles possam fornecer a mão-de-obra disponível. O que é obrigatório sempre leva ao comodismo e o comodismo é o pai da ineficiência.’
Os cursos de Jornalismo têm um caráter altamente tecnicista, voltado para as demandas do mercado e a base humanística é ínfima, para não dizer nula. A própria Enecos (Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação Social), no XV Congresso Brasileiro de Estudantes de Comunicação Social, ocorrido em Maceió-AL, de 20 a 27 de janeiro de 2007, já expôs sua opinião quanto à obrigatoriedade do diploma específico para jornalista e o caráter tecnicista dos cursos de comunicação:
‘Contra a obrigatoriedade da exigência do diploma de jornalista, por uma outra forma de regulação profissional que impeça a precarização da profissão;
Contra a ideologia mercadológica adotada pelas faculdades na formação do comunicólogo. Contra o caráter tecnicista dos currículos dos cursos de comunicação social. Por um projeto pedagógico voltado para a formação humanista e a transformação da sociedade.’
Cursos de residência em jornais
Eu bem que poderia pedir reopção para Jornalismo, mas pretendo ficar na História porque é um curso que dá uma visão de mundo mais ampla, dá uma bagagem intelectual mais extensa, sem contar que os alunos deste curso, com destaque à minha turma 2008/1, são mais inteligentes e formadores de opinião e estou muito feliz no curso, a despeito dos problemas na grade curricular de licenciatura (por causa disso, farei somente o bacharelado) e de permanência no curso. Decidi, então, pegar disciplinas teóricas e práticas de jornalismo impresso, fotojornalismo, radiojornalismo e webjornalismo como eletivas, para que eu possa dominar as técnicas de produção de informação jornalística. Disciplinas como Teoria do Jornalismo, Legislação e Ética Jornalística e Semiótica, posso ler por conta própria.
Sou a favor da regulamentação profissional do jornalista, com uma entidade regulamentadora, forte e combativa, tal como a Ordem dos Advogados do Brasil ou o Conselho Federal de Medicina. Mas sou contra a obrigatoriedade do diploma de jornalista como única via de acesso ao jornalismo.
Para falar a verdade, a profissão de jornalista poderia ser exercida por qualquer pessoa que tivesse o nível superior, mas que tivesse no currículo 400 horas de disciplinas práticas da área de jornalismo. Ou que passasse pelos cursos de residência em jornalismo dos jornais, tais como A Gazeta, aqui de Vitória, ES, ou a Folha de S.Paulo, apesar das acusações de que esses cursos doutrinam o jornalista aos interesses dos veículos. Mas os sindicatos de jornalistas poderiam dar cursos de técnicas de jornalismo (gratuitos ou com preço simbólico) aos postulantes à profissão não diplomados na área, onde quem tivesse bom aproveitamento faria jus ao registro de jornalista na carteira de trabalho e à carteira nacional de jornalista.
Para que precários trabalhem dignamente
A Fenaj e os sindicatos associados, ao invés de perseguir os jornalistas precários, deveriam sindicalizá-los e assim ampliar a base sindical, o que causaria aumento das contribuições sindicais e, conseguintemente, teriam mais recursos financeiros para as lutas da categoria por melhores condições de trabalho. Maurício Tuffani, jornalista especializado em ciência e meio ambiente, ex-editor chefe da revista Galileu, citado pejo jornalista Victor Barone, critica a conduta dos sindicalistas:
‘Com todo o respeito aos professores e sindicalistas que são verdadeiros idealistas, a bandeira da exigência do diploma tornou-se um álibi para a falta de vontade, coragem e competência para lutar verdadeiramente por melhores condições de trabalho e pela valorização da profissão.’
Por mais que os ministros do STF posterguem a decisão do recurso extraordinário 511961, tenho esperança que eles votem pelo fim da obrigatoriedade. Para mim, será uma alegria maior até do que tive no dia 1° de fevereiro de 2008, quando vi meu nome entre os quarenta aprovados em História Diurno, na Comissão Coordenadora de Vestibulares da UFES. Mas também será a alegria de milhares de jornalistas precários em todo o país, que poderão trabalhar dignamente, com registro definitivo, sem medo de perseguição por parte dos sindicatos.
Dom de comunicar: dádiva de Deus e que o homem não tira!
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Estudante de História, UFES, Vitória, ES